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domingo, 20 de dezembro de 2020

Resistência Ashaninka

Como o povo Ashaninka chega ao fim de 2020 sem casos da Covid-19 

Dez meses após início de pandemia, os Ashaninka do rio Amônia, no Alto Rio Juruá, estão sem casos confirmados da Covid-19 em suas aldeias; rigoroso isolamento social com o mundo exterior e uso da medicina da floresta explicam o feito; campanha pelas redes sociais arrecadou recursos para ajudar comunidades extrativistas e indígenas do entorno  


Resistência e solidariedade: assim os Ashaninka do Amônia enfrentam a pandemia do coronavírus (Foto: Agência Acre) 

O povo Ashaninka chega ao fim de 2020 sem registro de casos de Covid-19 nas aldeias da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no Acre. É um feito e tanto diante do fato de que o vírus alcançou comunidades quase isoladas, cujo tempo de viagem pode levar dias. Com o rio em boas condições de navegabilidade, chega-se ao território Ashaninka em uma viagem de até oito horas a partir do município de Marechal Thaumaturgo, no Vale do Juruá. 

Os Ashaninka seguem um criterioso isolamento social. Pessoas das aldeias não podem sair e quem está nas cidades não podem entrar, mesmo que isso paralise uma de suas principais atividades econômicas: o turismo. Rodeados por uma densa floresta que lhes garante fartura de carne de caça e mais o pescado no rio, eles não têm muita necessidade de ir até Marechal Thaumaturgo, município que concentra a maior parte dos Ashaninka do Acre. Com roçados em sistema agroflorestal, obtém farta e diversa produção de frutas e legumes. A macaxeira é a base da dieta alimentar do povo. 

Para ter acesso a mantimentos como o sal, café, óleo, açúcar, uma comitiva de indígenas é encarregada de ir até a cidade fazer as compras. Os pedidos são feitos de forma prévia a um comerciante. Antes de serem embarcadas nas canoas para o retorno ao território Kampa, toda a compra é higienizada com álcool em gel para evitar que o vírus viaje junto. 

Mas foi a preservação da cultura e do modo de vida dos antepassados que têm livrado os Ashaninka de um contágio pelo novo coronavírus. Na tradição Ashenĩka, cada família tem uma casa isolada dentro da floresta, afastada daquelas localizadas às margens dos rios. Caso algum indígena venha a apresentar sintomas suspeitos, o doente fica longe do convívio com os saudáveis, evitando o contágio.

De acordo com a liderança Francisco Piyãko, essa era uma estratégia já seguida pelos antepassados quando das primeiras epidemias que dizimaram dezenas de populações indígenas da América do Sul, durante a invasão européia do continente. Quando não eram mortos por confrontos de investidas militares contra seus territórios, os sobreviventes desenvolviam doenças que seus organismos não estavam adaptados, causando mortandade. As casas isoladas ajudaram a preservar os Ashaninka.

As aldeias Apiwtxa e Igarapé Arara somam 838 pessoas. Na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia está a maior concentração Ashaninka do Acre. Ainda há aldeias pelas bacias dos rios Envira e Tarauacá, mas a maior população está no Peru, de onde vieram aqueles que hoje habitam o lado brasileiro da fronteira. 

“O povo Ashaninka do rio Amônia tem uma organização social consolidada, e que representa muito bem o interesse coletivo do povo. São várias lideranças importantes, homens, lideranças mulheres. A nossa associação é orientada por esse grupo de lideranças, e isso faz com que a base, as famílias, sigam as orientações”, explica Francisco. 

Esse tipo de organização serve de guia para todas as questões que orientam os interesses coletivos do povo Ashaninka. “Quando se fala da proteção do território tem uma estratégia, da segurança alimentar tem outra. Quando fala dos valores, dos rituais, dos conhecimentos, da educação, da saúde”, enumera Francisco.

O mesmo aconteceu diante da pandemia do novo coronavírus. Os protocolos de entrada e saída da terra indígena, quais as agendas seriam mantidas, assim como o que fazer com os projetos e programas em andamento, tudo passou por discussões coletivas. Uma vez acordado, mais que respeito, houve uma grande compreensão da comunidade diante da gravidade da situação.

Esse isolamento social que já dura 10 meses ocorre apenas com o mundo exterior, e não entre os Ashaninka dentro das aldeias. “O isolamento é para fora. Internamente a gente manteve uma vida normal, e começamos a trabalhar para que aumentasse a nossa produção. Construímos uma agenda que pudesse contribuir para, caso a pandemia durasse mais tempo, a gente estivesse seguro aqui, sem a necessidade de estar em contato com o mundo lá fora”, diz Francisco Piyãko.  


Leia a reportagem completa na agência Amazônia Real 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Os passos dessa estrada

Dnit ainda elabora edital para construção da rodovia Cruzeiro do Sul/Pucallpa 



BR-364 até Cruzeiro do Sul: asfaltada na última década, é a nova fronteira do desmatamento no Acre



Estava prevista para a primeira quinzena de dezembro o lançamento de edital, por parte do governo Jair Bolsonaro (sem partido), para a contratação de empresa que ficará responsável por elaborar o projeto de construção da rodovia internacional entre Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá, e a cidade peruana de Pucallpa. A possível construção da estrada é vista com apreensão diante dos imensuráveis impactos ambientais que causará numa das regiões mais intactas da Amazônia. 

Desde o anúncio deste empreendimento, ainda em 2019, tenho acompanhado o passo-a-passo do processo e as movimentações políticas por parte de seus principais defensores: o senador Márcio Bittar (MDB) e a deputada federal Mara Rocha (PSDB), líderes da bancada da motosserra do Acre em Brasília. 

Essa semana procurei a assessoria de imprensa do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit), responsável pela execução da obra, para saber a que pé anda o projeto. A autarquia federal informou que, no momento, trabalha na formulação do  “Termo de Referência para a contratação do projeto”. De acordo com o Dnit, ainda não é possível saber qual será a extensão da rodovia nem seu traçado. 

Estes detalhes, diz a assessoria, serão conhecidos a partir da “fase de desenvolvimento dos projetos básico/executivo”. A princípio a estimativa é que ela tenha uma extensão de 120 quilômetros até a fronteira com o Peru. Ressaltando se tratar de uma região bastante preservada da Amazônia, apresentada como uma das mais ricas em biodiversidade do mundo. 

No começo a perspectiva era de o traçado da estrada passar por Mâncio Lima - dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor - e atravessar a fronteira. Já no final de setembro, durante agenda do ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) em Cruzeiro do Sul, foi anunciado que a estrada partiria de Rodrigues Alves.  

Quanto ao processo de licenciamento ambiental, o Dnit informou ainda não haver uma titularidade sobre quem o fará. O governo do Acre quer que o mesmo seja feito pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac), em detrimento do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). 

Em 26 de outubro, o Ministério Público Federal emitiu representação para que os estudos de impacto ambiental sejam feitos pelo órgão federal e não o estadual. Além de se tratar de uma obra da União, a procuradoria aponta que o licenciamento feito pelo Imac pode estar sujeito a ingerências políticas locais, tirando sua confiabilidade técnica.  Sobre estimativas de custos, o Dnit avalia que a construção da rodovia custará meio bilhão de reais. 

Apesar de a integração rodoviária com o Peru ser apresentada por seus defensores como a redenção econômica do Acre, o estado já possui uma estrada (a Rodovia Interoceânica) que o conecta ao país vizinho pela fronteira com o departamento de Madre de Dios. Passada uma década desde a sua inauguração, até agora os acreanos não desfrutam de nenhum benefício econômico. A rodovia tem tido mais utilidade pelos traficantes de drogas e transformado o Acre numa rota internacional do tráfico de seres humanos.  


Aqui, alguns dos artigos já escritos sobre a polêmica rodovia entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa: 


Cruzeiro do Sul/Pucallpa: uma rodovia de resultados econômicos duvidosos, mas de  danos sociais e ambientais concretos











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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A política da floresta desmatada

Governo comemora pequena redução do desmatamento no Acre, mas ambiente político é desfavorável 



Atuação repressiva de forças policiais contribuiu para Acre reduzir desmate (Foto: Governo/Divulgação)


O governo Gladson Cameli (Progressistas) tem comemorado, ainda que timidamente, a tímida redução do desmatamento em 2020 no Acre, conforme apontou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por meio de seu sistema oficial de análise da área de Floresta Amazônica devastada, o Prodes. Segundo os dados, o desmatamento acumulado este ano no estado foi de 652 km2. Na comparação com 2019, o Acre deixou de perder 30 km2 de mata nativa, já que a área derrubada anteriormente foi de 682 km2. 

Apesar da redução, o desmatamento de 2020 ainda continua muito alto para os padrões acreanos. O total de floresta derrubada esse ano é o sexto pior da série histórica do Inpe, iniciada em 1988, ficando atrás de 1995, 2002, 2003, 2004 e 2019. Vale destacar que as imagens de satélite analisadas pelo Prodes referem-se sempre ao período entre agosto do ano anterior e julho do corrente. Portanto, o desmatamento de 2020 do Prodes não engloba a floresta derrubada de agosto para cá. 

Ao se analisar os dados do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real, o Deter, também do Inpe, os alertas para derrubada da floresta - entre primeiro de janeiro e 30 de novembro - somam uma área de 445 km2. O Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apontou que o Acre foi o terceiro estado que mais contribuiu para a perda de cobertura florestal do bioma em outubro: 84 km2. Um aumento de 133% quando feita a comparação com o mesmo mês de 2019.  

Ainda de acordo com o SAD, apenas entre agosto e outubro deste ano o desmatamento da Amazônia dentro do Acre foi de 435 km2 - aumento de 98% em cotejo com os mesmos meses de 2019. Ou seja, o total de floresta derrubada em três meses detectado pelo SAD/Imazon chegou bem perto do captado ao longo de todo o ano pelo Deter/Inpe: 445 km2. 

Portanto, não há muito o que comemorar. Tanto o ambiente político local quanto nacional são propícios para o avanço da destruição em 2021. A atual explosão na taxa de desmatamento - e também de queimadas - no Acre tem como única explicação a política do governo Gladson Cameli de fazer do grande agronegócio o carro-chefe da economia local - o que tenho escrito aqui reiteradas vezes. A isso se somou a política de destruição ambiental implementada em Brasília pelo governo Jair Bolsonaro. 

O governo explica a redução de 30 km2 de desmatamento de 2020 para 2019 recorrendo, justamente, à sua política do agornegócio. Isso mesmo. Os programas de assistência técnica rural ao homem e mulher do campo são apontados como uma das causas para o Acre ter reduzido seu impacto sobre a Amazônia. Outro feito apontado pelo governo foi a compra e entrega de equipamentos para melhorar a produção do campo, sem a necessidade de abrir novas áreas para agricultura ou pastagem. 

Para isso, a gestão Cameli recorreu ao  Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre (PDSA), financiado com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e criado durante os governos petistas - tão demonizados pelo atual grupo político no Palácio Rio Branco. 

Além disso, o fortalecimento das ações de “comando e controle” de combate aos crimes ambientais é apontado como outro fator para o resultado. Essa ação se dá, em particular, por meio do trabalho repressivo desenvolvido pelo Batalhão de Polícia Ambiental (BPA) da PM. 

“Importante destacar que no ano florestal 2018/2019 o incremento do desmatamento no estado do Acre foi de 706,75 km², enquanto no período de 2019/2020 foi de 554,67 km², ou seja, houve uma redução 21,5 %, em termos de incremento anual. Até 2020, o desmatamento acumulado no estado do Acre passou a representar aproximadamente 15% do seu território, ou seja, o Acre ainda detém 85% de cobertura florestal”, diz a secretária-executiva da Secretaria de Meio Ambiente,  Vera Reis. 

E aqui também vale destacar que a decisão do governo Cameli de combater o desmatamento da Amazônia não é por simpatia à causa ambiental - o que a pessoa do governador nunca demonstrou. A manutenção da floresta em pé é a garantia de o Acre receber alguns milhões de dólares e euros para manter sua pesada máquina administrativa funcionando. Menos floresta, portanto, significa menos dinheiro, menos investimento - o que compromete os planos eleitorais de qualquer político. 

Assim como a floresta acreana, a imagem do governador Gladson Cameli também estava muito queimada. Sua gestão (ou a falta dela) disparou o gatilho da devastação da Amazônia. Todavia, muito mais do que uma questão política, a preservação da floresta deve ser olhada como vital para a nossa sobrevivência. Ela é essencial para equilibrar a vida em todo o planeta - em especial a nossa que estamos aqui. 


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Seco, desmatado e queimado

Em outubro, Acre tem novo recorde em perda de cobertura florestal 


Área desmatada superou a do MT e AM; acúmulo entre agosto e outubro é de 435 km2 (Foto: Divulgação/SOS Amazônia)



O Acre aos poucos vai assumindo um deprimente protagonismo em seus níveis de contribuição para o desmatamento da Amazônia brasileira. O estado, que antes ficava quase invisível quando da apresentação deste tipo de dado, agora disputa as primeiras posições no ranking da devastação ao lado de Pará, Mato Grosso e Rondônia. Em outubro, o total de área desmatada por aqui superou até mesmo o Amazonas, estado cujas dimensões territoriais são incomparáveis com o Acre. 

Segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o Acre foi o terceiro estado que mais contribui para a perda de cobertura florestal do bioma em outubro: 84 km2. Um aumento de 133% quando feita a comparação com o mesmo mês de 2019. O Acre só teve menos floresta desmatada do que Rondônia (105 km2) e o Pará (474 km2). 

O desmatamento acreano superou até mesmo Mato Grosso, estado que costumava dividir com o Pará o primeiro lugar no ranking, mas que vem perdendo a vanguarda para o Acre. Em agosto já tínhamos superado o Mato Grosso também na quantidade de registro de queimadas, conforme os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Por falar em fogo, toda essa floresta derrubada no Acre em 2020 muito em breve vai virar em cinzas em 2021 com a chegada do “verão amazônico”. Conforme o Imazon, entre agosto e outubro o desmatamento acumulado é de 435 lm2. Por sinal, talvez nem seja preciso esperar até julho ou agosto do ano que vem para a temporada do fogaréu no Acre recomeçar - se é que ela acabou. 

Com a escassez de chuvas observada até aqui, a tendência é de todo esse material combustível (a floresta desmatada) apresentar as condições ideais para ser queimada bem antes. E com tanta mata devastada, podemos ter muito fogo em 2021 e, consequentemente, muita fumaça tóxica em nossas narinas. 

Com menos chuvas a tendência é de esse fogo também adentrar na floresta por a umidade estar muito baixa. O aumento dos dias secos acumulados e as altas temperaturas contribuem para o chamado “estresse hídrico", quando a floresta perde muita umidade, deixando-a exposta a incêndios.  

Agora, em pleno “inverno amazônico”, estamos vivendo verdadeiros dias de “verão”: quentes e secos. Dados da plataforma MAP-Fire apontam que, em algumas regiões do Acre, não há registro de chuvas há mais de 10 dias em novembro. 

O efeito inevitável é o aumento na quantidade de queimadas. Nos 22 dias do mês já são 122 focos captados pelo Inpe. Em igual intervalo de tempo do ano passado foram 14 focos; naqueles dias chovia por aqui. Durante 2020 o Acre registra 9.178 pontos de queimadas; aumento de 35% ante 2019. 

Como escrevi no artigo antes deste, há outro agravante para o Acre, em especial a capital Rio Branco, em 2021: a eleição de Tião Bocalom (PP) para a prefeitura. Com discurso voltado apenas para fortalecer a produção rural, é quase certo que a zona rural do município arda em chamas diante do aval político do novo prefeito, encobrindo a cidade com muita fumaça, deixando o ar irrespirável. 

Foi a eleição de Gladson Cameli (PP), em 2018, para o governo que tem levado o Acre a apresentar taxas recordes de desmatamento e queimadas nos últimos dois anos. Assim como Bocalom, Cameli foi eleito com a promessa de fazer do agronegócio a locomotiva econômica do estado. O resultado disso tem sido trágico para a preservação da Amazônia e a saúde da população, exposta a sofrer com mais intensidade com um ar contaminado.  

Com a intensificação das mudanças climáticas nesta parte sul da Amazônia, os cenários para o futuro da preservação da maior floresta tropical do planeta não são nada otimistas. Caminhamos a passos largos para nos tornarmos o próximo sertão brasileiro mais algumas décadas - ou até mesmo anos. Os ambientes político e natural contribuem para isso.       


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O clima das eleições

Resultado das eleições municipais coloca ainda mais em risco meio ambiente e saúde da população em 2021 


Em 2020, moradores de Rio Branco respiraram ar contaminado pela fumaça por 46 dias (Foto: Sérgio Vale)


A consolidação do resultado das eleições municipais em Rio Branco, a capital do Acre, com a quase certa vitória de Tião Bocalom (PP) em 29 de novembro, representa um grande risco não apenas para a preservação do meio ambiente, mas também a saúde da população rio-branquense. Assim como dois e dois são quatro, é certo que Bocalom adotará uma política de desmantelamento de proteção ambiental, para fazer valer seu velho clichê de incontáveis campanhas do “produzir para empregar”. 

Com uma visão voltada exclusivamente para o setor rural desde o início de suas sucessivas campanhas eleitorais desde 2006, Bocalom sempre se mostrou contrário às políticas de proteção do meio ambiente. Para ele, tais normas são um entrave para o avanço do agronegócio. Apesar de estar numa disputa para a prefeitura de uma capital, Bocalom não deixa de lado sua obsessão pelo campo, esquecendo-se de apresentar propostas concretas e reais para quem está na zona urbana. 

Conforme todas as pesquisas apontam, é muito difícil ele não ser eleito prefeito. Portanto, a partir de 2021, a tendência é de as queimadas em Rio Branco ficarem ainda mais críticas. Desde 2019, com a chegada de Gladson Cameli (PP) ao governo do estado, o Acre passa por uma crise ambiental com taxas recordes de desmatamento e fogo. 

Neste ano estamos com 9.174 focos de queimadas registrados, contra 6.802 de 2019. E Rio Branco - com uma extensa área rural no seu entorno - está nas primeiras posições entre os municípios acreanos. Ano passado ocupou a quarta colocação, com 619 focos. Em 2020, até o dia 18 de novembro, são 730 registros de queimadas no município. Os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe. 

Enquanto o fogo é captado pelos satélites da Nasa lá em cima, aqui em terra firme nós vamos inalando uma fumaça tóxica que tantos danos causam à saúde humana e das demais espécies. Em 2020, os mais de 400 mil moradores da capital acreana respiram um ar altamente tóxico por 46 dias, como apontam os dados do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama). 

Em resumo, isso significa que chegamos a respirar um ar contaminado até 10 vezes superior ao tolerado pela Organização Mundial da Saúde, a hoje demonizada OMS. O ideal é que a concentração de material particulado - o chamado PM 2,5 - no ar não ultrapasse os 25 ug/m3. Nos dias de agosto - mês de pico das queimadas - a concentração de PM 2,5 ficou perto dos 400 ug/m3. 

E tudo isso em meio a uma pandemia de um vírus mortal e a um processo de mudança climática que tem reduzido, ano após ano, o volume de chuvas no Acre, em especial Rio Branco. Não tem achado estranho estarmos vivendo um novembro seco? 

Nesta época era para dormirmos e acordamos com a chuva. Mas o aquecimento das águas do oceano Atlântico - a léguas de distância de nós -  tem nos feito vivermos dias de verão amazônico em pleno novembro. 

Portanto, com 2021 sentindo os efeitos deste 2020 seco e quente, além do ambiente político de desprezo à proteção de nossos recursos naturais, a perspectiva é de que a quantidade de queimadas e de dias de ar contaminado sejam bem maiores e impactantes do que acabamos de viver semanas atrás. 

Com Tião Bocalom na prefeitura, Gladson Cameli no governo e Jair Bolsonaro na Presidência, a tendência é de Rio Branco - assim como a Roma de Nero - ficar literalmente incendiada, e os nossos pulmões tomados por fumaça tóxica. Não vai ter vaca mecânica que sobreviva ao fogaréu nos arredores da capital acreana.  

Para nossa sorte, pode ser que já estejamos vacinados contra o coronavírus. Mas não será a hora de nos desfazermos de nossas máscaras: vamos precisar muito delas para enfrentar a fumaça das queimadas.  


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Atrasado, atrapalhado e parado

Comitê formado pelo governo para avaliar impactos da Covid entre população indígena está parado 


Governador Gladson Cameli em visita inoportuna a aldeia do povo Yawanawa mês passado; GT da Covid não foi consultado (Foto: Governo do Acre/2020)


O grupo de trabalho (GT) criado pelo governo do Acre para acompanhar - apenas acompanhar - os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas do estado está há pelo menos 20 dias sem se reunir e sem previsão de voltar a funcionar. Sem nenhum resultado prático em prol das comunidades tradicionais desde sua criação em agosto, o GT tem se resumido à realização de sucessivas reuniões em que nada se é definido de fato, ficando apenas nas boas intenções. 

Agora, nem mesmo isso vem acontecendo, conforme o blog apurou. Esta pouca efetividade do GT é o resultado da inabilidade do governo Gladson Cameli (partido incerto) em lidar com a questão indígena de um estado amazônico. Um de seus primeiros atos ao virar governador, em janeiro do ano passado, foi extinguir a Assessoria dos Povos Indígenas, ligada ao gabinete do governador até as gestões petistas (1999-2018).  

Durante a crise do coronavírus, o governo Cameli deixou toda a responsabilidade pelos cuidados dos mais de 24 mil índios acreanos nos ombros da Fundação Nacional do ìndio (Funai) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena por meio dos dois Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei’s): do Alto Rio Juruá e Alto Rio Purus. É fato que a saúde indígena é de responsabilidade da União, mas diante da gravidade da situação o reforço por parte do governo estadual poderia ter feito toda a diferença.  

De acordo com monitoramento do dia 6 de novembro, realizado pela Comissão Pró-Índio (CPI), 27 índios morreram por conta da Covid-19 no Acre. O número de infectados chega a 2.314, sendo a metade dos casos dentro das aldeias. 

Ao montar a composição do grupo de trabalho, o governo deixou de fora Funai e Sesai. Somente após recomendação expedida pelo Ministério Público Federal os dois órgãos foram incluídos. O próprio GT foi criado apenas cinco meses após o início da pandemia, quando o coronavírus já tinha chegado às mais distintas e longínquas aldeias, até mesmo àquelas vizinhas a áreas com registro da presença de grupos isolados.  

O temor é de que a segunda onda de contaminação que, aos poucos começa a emergir nos centros urbanos do estado, aos poucos também afete as comunidades indígenas. 

Em setembro escrevi artigo definindo o GT como “atrasado e atrapalhado”. O atrasado se dá por a iniciativa ter sido adotada quando a pandemia já tinha feito o estrago em todo o estado, incluindo nas comunidades indígenas.  Outra característica do GT é a sua inutilidade para o próprio governo, que atropela o colegiado quando, enfim, sinaliza certa disposição em se aproximar do movimento indígena.

O governo prepara para o próximo dia 25 uma grande reunião com as lideranças indígenas do Vale do Juruá em Cruzeiro do Sul. O objetivo do encontro é o mesmo ocorrido dias atrás na capital: garantir o acesso a recursos de projetos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas que asseguram alguns milhões de dólares e euros.   

A reunião acontece em meio ao crescimento dos casos da Covid-19 em Cruzeiro do Sul, o que deixará expostos não apenas os indígenas que forem para a cidade. Há o risco deles voltarem para suas respectivas aldeias portando o vírus, o que poderia gerar uma calamidade. O governo não consultou  o GT sobre a realização desta reunião para saber se era prudente ou não realizá-la. 

Encontros como estes que deixam ainda mais vulneráveis uma população já bastante vulnerável não são aconselháveis de se fazer, e devem ser questionados pelo Ministério Público Federal. Para um governador que não vê problema em visitar uma aldeia - com toda a sua comitiva - em plena pandemia, reunir os índios na cidade é que não será motivo de preocupação. 


Leia texto com resumo das principais reportagens produzidas pelo blog sobre a pandemia e os povos indígenas do Acre 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Análise

Mudanças climáticas e degradação do rio Acre são ameaças ao abastecimento, não a privatização 


Com margens desmatadas e impactado por poluição, rio Acre é a única fonte de água para 70% dos acreanos (Foto: Sérgio Vale)


O deficiente sistema de abastecimento de água em Rio Branco está no topo das questões debatidas entre os sete candidatos a prefeito da capital acreana. A estratégia é bater com frequência no tema da falta de água nas torneiras dos mais de 400 mil moradores da cidade para enfraquecer a candidatura à reeleição de Socorro Neri (PSB), apoiada pelo governador Gladson Cameli (partido incerto). Vamos tentar entender a situação como de fato ela é. 

Não é de hoje que o sistema de fornecimento de água deixa muito a desejar em Rio Branco e em todas as outras 21 cidades acreanas. Desde 2012, o serviço foi tirado das mãos das prefeituras, transferido para o governo estadual. A iniciativa foi do então governador Tião Viana (PT), que vendo a possibilidade de a oposição assumir a prefeitura da capital, decidiu “estadualizar” tanto a distribuição de água como a coleta de esgoto. 

Foi criado o Departamento de Pavimentação e Saneamento, o Depasa. Com a eleição de Gladson Cameli para o governo, o que já era ruim ficou pior. O governador loteou os órgãos do estado entre os aliados, entregando o Depasa ao MDB. Este ano a polícia descobriu um esquema de corrupção na estrutura da autarquia, ocupada por indicados do senador Márcio Bittar (MDB). 

Com muitos bairros ficando dias sem receber água potável, o tema não poderia ficar de fora da campanha municipal. Os adversários do governo - sobretudo o PT - acusam Gladson Cameli de querer privatizar o Depasa, o que tornaria o serviço ainda mais precário. Fazem uma analogia com a venda da antiga Eletroacre, comprada pela Energisa. Na avaliação dos críticos, além de não garantir melhorias, a privatização da água traria o mesmo efeito da luz: o aumento da tarifa ao gosto da empresa. 

Neste ponto eles estão certos. Porém, a maior ameaça a um colapso no sistema de fornecimento de água potável para os moradores de Rio Branco é outro: o longevo processo de degradação da Bacia do Rio Acre, única fonte de abastecimento para a capital e todos os demais municípios às suas margens. A perda de quase toda a mata ciliar do manancial - mais o despejo de toneladas de esgoto in natura - podem deixar o rio sem condições de garantir água para 70% da população acreana num futuro nem tão longínquo.  

A isso se soma o acelerado efeito das mudanças climáticas que afetam essa porção sul da Amazônia. Em pleno "inverno amazônico", o nível do rio Acre chegou bem perto do volume mais crítico já registrado desde 1970, em setembro de 2016, ano de El Niño. Em outubro último, quando já deveríamos ter chuvas constantes, faltaram apenas dois centímetros para a quebra do recorde. 

Os tempos estão mudando. As chuvas estão ficando cada vez mais escassas, caindo em quantidade menor. O período de chuvas está ficando cada vez mais curto, e a estiagem mais severa e longa.  E o rio Acre depende exclusivamente da água que cai do céu para ter condições de “alimentar” as estações de captação. 

Mesmo com todas essas ameaças, a questão ambiental não é debatida entre os candidatos a prefeito de Rio Branco. Aos petistas, é melhor atacar os adversários com o discurso da privatização do que reconhecer sua omissão de duas décadas de nada fazer para amenizar a degradação do rio Acre. Enquanto os candidatos fazem falsas promessas de solucionar a questão da água, nada é proposto para garantir que a principal fonte do líquido não entre em colapso de vez daqui alguns poucos anos. 

De nada fará diferença se o sistema for privado ou estatal se não houver água a ser captada. Essa é a lógica que não é apresentada ao eleitorado de Rio Branco. Muito mais do que uma questão político-ideológica, o futuro da garantia de água na torneira dos rio-branquenses passa pelo debate ambiental, da nossa capacidade de recuperar o rio Acre e adotar medidas para mitigar os efeitos das mudanças do clima. 

E na minha modesta opinião de observador político, os candidatos que mais representam ameaças à questão ambiental são Minoru Kimpara (PSDB), Tião Bocalom (PP) e Roberto Duarte (MDB). Minoru Kimpara é oficialmente o candidato da familiocracia Rocha, que tem um projeto familiar de poder liderado pelo vice-governador Major Rocha (PSL). 

Neste grupo está a deputada federal Mara Rocha, que no Congresso é uma parlamentar bolsonarista e de postura altamente antiambiental. Portanto, ao se acercar de tais pessoas, Minoru Kimpara também se torna uma ameaça ao meio ambiente. 

Roberto Duarte tem como padrinho político o senador Márcio Bittar, cuja visão de retrocesso ambiental nem precisamos comentar. Tião Bocalom é o candidato do setor rural. Sua visão está sempre voltada em fortalecer o campo, o que representa fragilizar as políticas de proteção da floresta que sobrou no entorno de Rio Branco. A atual prefeita Socorro Neri é a candidata do governador Gladson Cameli, cuja gestão leva o Acre a bater recordes nas taxas de desmatamento e queimadas.  

Portanto, este é o quadro nem tão sustentável para a capital do Acre na eleição municipal de 2020, e que será refletido pelos próximos quatro anos. Infelizmente a questão ambiental não está entre as prioridades de nossa classe política, muito menos do eleitorado. As consequências desta nossa omissão podem ser desastrosas num futuro nem tão distante assim. 

Afinal, a mudança do clima é algo que já vivemos hoje. Será nossa capacidade de resiliência que vai assegurar ou não a água nas nossas casas - e a nossa consequente sobrevivência. 


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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Proximidade estratégica

 De olho em recursos internacionais, governo Cameli busca aproximação com movimento indígena


Governador Gladson Cameli reunido com lideranças do movimento indígena; proximidade tenta desfazer imagem negativa na área ambiental (Foto: Governo do Acre)


Após quase dois anos ocupando o Palácio Rio Branco, enfim o governador do Acre, Gladson Cameli (partido indefinido), busca uma aproximação com o movimento indígena do estado. Isso depois de ele ter extinguido* a Assessoria dos Povos Indígenas - ligada à Casa Civil até o fim das gestões petistas - e de pouco ou quase nada ter feito por estas comunidades durante o período mais crítico da pandemia do novo coronavírus. 

Essa proximidade, todavia, não é resultado de uma mudança de paradigma do atual governo, eleito em 2018 com o discurso de destravar os mecanismos de proteção ambiental para fazer do agronegócio o grande carro-chefe da economia acreana. O resultado desta política tem sido o Acre alcançar níveis recordes em desmatamento e queimadas desde o ano passado. 

A guinada do governo Cameli de receber o movimento indígena no Palácio Rio Branco é estratégica; enfrentando um déficit orçamentário e diante das previsões de um 2021 nada positivo para a economia, o governo vai bater à porta de investidores e governos internacionais em busca de recursos. A contrapartida dos estrangeiros, lógico, é a manutenção da Amazônia em pé. 

Como não tem sido capaz de controlar o desmatamento, o governo Cameli busca colocar ao seu lado aqueles que melhor preservam a floresta: os indígenas. O desmatamento dentro das 34 terras indígenas acreanas - que respondem por 14% do território - chega a menos de 1%. E essa abertura de área está relacionada ao uso dos roçados, de onde é tirada a subsistência das comunidades. 

O governo afirma ter R$ 15 milhões para aplicar em projetos de gestão e monitoramento das terras indígenas. Este dinheiro é oriundo de projetos iniciados ainda nos governos petistas em parceria com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). O Acre ainda dispões de alguns outros milhões de euros enviados pelos alemães por meio do banco de fomento KFW. Como o estado não tem conseguido ficar abaixo da meta de desmatamento estabelecida pelos europeus, o governo pode perder a grana. 

Ao buscar essa aproximação com o movimento indígena e executar projetos que levem benefícios para as aldeias, Gladson Cameli sinaliza ao BIRD, KFW e outros investidores internacionais que o Acre respeita o meio ambiente e seus povos tradicionais, sendo um lugar seguro para se aplicar dinheiro em projetos que proporcionem o chamado desenvolvimento sustentável. 

Enquanto faz estes acenos verdes, o governo também patrocina obras de infraestrutura que contribuem para o avanço do desmatamento, colocando em risco a manutenção de ao menos 87% de Amazônia que cobrem o território acreano. 

Uma delas é a rodovia entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, no Peru, cujos danos ambientais são irreversíveis. Por sorte o Ministério Público Federal entrou em campo para conter a tentativa do governo de abrir a estrada sem a devida consulta aos povos indígenas - os mesmos recebidos por Cameli em seu gabinete palaciano.  

Um dia após receber as lideranças indígenas, Cameli postou em suas redes sociais fotos da abertura de uma estrada entre Feijó e Envira, no Amazonas, que terá como efeito imediato a grilagem de terras públicas, crime que está em ascensão no Acre, justamente nestas áreas vizinhas à BR-364 entre Rio Branco e o Vale do Juruá. Não se sabe se essa rodovia de 90 km conta com estudo de impacto ambiental. 

Como já escrevi aqui, confusão e ambiguidade são as marcas da atual gestão, e na área ambiental não poderia ser diferente. Enquanto prega uma coisa para tranquilizar os gringos, na prática atua de forma inversa. Os dados do Inpe objeto de incontáveis artigos neste blog estão aí como prova disso. Após um 2019 recorde em desmatamento, 2020 também entra para a história como o pior em registro de queimadas na última década. 

Deste jeito não tem visita a aldeias ou recepção honrosa de lideranças indígenas no Palácio Rio Branco que convença os investidores estrangeiros de que o Acre está cumprindo a lição de casa na proteção da mais importante floresta tropical do mundo. 

Menos discursos e fotografias, e mais prática, governador!     


*(Obs: A Assessoria dos Povos Indígenas foi recriada ainda no passado, mas colocada na Secretaria de Assistência Social, numa clara visão do atual governo de que política indígena é assistencialismo)


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Emergência climática

 A mudança climática é agora 


O mês de outubro vai caminhando para o seu final, e nada das chuvas chegarem com a sua devida intensidade comum para a época do ano. Afinal de contas, era para estarmos vivendo o começo do “inverno amazônico” nesta porção mais sul da Amazônia. A realidade que estamos vivendo aqui, todavia, é outra. A água que cai do céu está demorando cada vez para dar as caras; quando vem não tem a mesma força de outros tempos, e vai embora mais cedo do que o normal. 

Com menos chuvas, os rios ficam em níveis críticos por um período maior - comprometendo o abastecimento das cidades - e a floresta perde mais água. Sem umidade, ela deixa de ter a capacidade natural de se autoproteger das queimadas feitas em roçados, pastagens ou áreas de desmatamento recente nas bordas. É a maior concentração de água no solo, subsolo e na vegetação que impede o fogo das queimadas de avançar floresta adentro. 

Com menos dias de chuva e com mais dias de muito sol e elevadas temperaturas, o processo de evaporação realizado pela floresta se acelera, ficando seca. Com menos umidade na atmosfera, as árvores vão “sugar” toda a água no seu entorno, seja no subsolo ou nas folhagens. Com isso, cria-se o que os cientistas chamam de “estresse hidríco”. 

As queimadas feitas apenas em roçados passam, a cada ano, a ter mais chances de se transformarem em incêndios florestais, já que haverá muito material combustível dentro da mata pronto para pegar fogo. Os argumentos palacianos de que há histeria com o fogo na Amazônia por ele ocorrer apenas em áreas agricultáveis caminham para ser mais uma, entre tantas falácias proferidas pelo atual governo brasileiro. 

O sul da Amazônia - onde está o Acre, Rondônia, parte do Amazonas, além dos departamentos de Pando (Bolívia) e Madre de Dios (Amazônia) - é a mais vulnerável a sofrer com os impactos das mudanças climáticas. Alterações que já passamos a viver no nosso dia. Como apontam os especialistas, a tendência é de estas secas severas passarem a ser mais comuns, acompanhadas de enchentes também expressivas. 

A última grande cheia vivida no Acre foi em 2015, quando milhares de famílias em diferentes municípios ficaram desabrigadas pelo transbordamento do rio Acre, com impactos ainda na Bolívia e no Peru. De lá para cá houve cheias, mas nada de transbordos assustadores. Por se tratar de um rio que depende exclusivamente das chuvas para manter seu nível alto ou baixo, as enchentes estão mais raras com menos água vinda dos céus. 

Em contrapartida, o período que ele passa com volume crítico fica estendido. O rio Acre é responsável pelo abastecimento de 70% da população do estado. Sua condição fica ainda mais crítica pelo fato de já ter perdido grande parte de sua mata ciliar para o desmatamento ao longo das últimas 40 décadas, além do esgoto das cidades jogado com pouco ou nenhum tratamento. 

Em pleno "inverno amazônico" o nível do rio Acre chegou bem perto do volume mais crítico já registrado, em setembro de 2016, ano de El Niño. Faltaram apenas dois centímetros para a quebra de recorde em outubro. Os tempos estão mudando. E boa parte dos principais rios do estado (incluindo as bacias do Juruá e Purus) está ou em situação de alerta ou atenção em fins de outubro, quando já deveria estar num nível seguro. 

Enquanto o Acre passa a sentir cada vez os efeitos das mudanças climáticas, o governo local nada faz para amenizá-los. Ao contrário. Desde 2019 o Acre vem tendo níveis recordes de desmatamento e queimadas impulsionada pela atual política de fazer do agronegócio o carro-chefe da nossa economia, transformando em cinzas toda uma floresta que pode gerar muito mais recursos do que um boi por hectare.

O ano de 2020, definitivamente, consagra-se como o mais trágico da década em registro de queimadas. No dia 26 deste mês, segundo o Inpe, o Acre superou os nove mil focos detectados. Até o dia 18 já tínhamos 248 mil hectares de cicatrizes de queimadas, também a maior área em 10 anos.     

E, sim, o aumento do desmatamento aqui tem efeitos diretos não apenas nas chuvas do sul maravilha, mas sobretudo em nós, amazônidas. Com menos floresta temos menos água sendo mandada para a atmosfera, o que reduz a quantidade de chuvas tão necessária para a nossa sobrevivência, do gado e da soja nas fazendas. Essa é a lógica. 

Os atuais mandatários do Acre e dos demais estados do Norte precisam entender que já vivemos uma emergência climática. Os sinais estão aí. É preciso garantir a proteção da floresta para o clima retomar seu equilíbrio. O Acre já tem sua potencialidade para a economia do campo. Não é preciso mais desmatar um único hectare. Precisamos de políticas de valorização da economia de base florestal - assegurando valor e mercado - para garantir renda às famílias da floresta. 

Essa não é a economia do futuro, é a economia do agora, assim como são as mudanças climáticas.  


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Outubro sem água e com muito fogo

Com outubro quente e seco, queimadas na Amazônia estão 200% superiores


Além de queimadas recordes em 10 anos, Acre também teve a maior área atingida pelo fogo na década: 248 mil ha


Após 2019 já ter sido crítico para a proteção da Amazônia com a chegada ao poder de grupos políticos em Brasília e nos estados da região com uma agenda antiambiental, em 2020 a situação ficou agravada com a temporada quente e seca estando mais intensa e prolongada. As primeiras chuvas de outubro - mês de transição para o “inverno amazônico” - estão fracas e mal distribuídas, o que favorece o prolongamento do uso do fogo para além da temporada oficial de estiagem, de junho a setembro. 

Entre primeiro e vinte de outubro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)  identificou, em todo o bioma Amazônia, 12.774 focos de queimadas. Na comparação com os mesmos 20 dias de outubro do ano passado, os focos estão 211% superiores; naquele período foram 4.103 focos. De 1 de janeiro a 20 de outubro, a Amazônia tem 88.804 focos de queimada - aumento de 25% em comparação com igual intervalo do ano passado.  

Durante os 31 dias de outubro do ano passado, o Acre, por exemplo, teve 354 focos; faltando pouco mais de uma semana para o mês acabar já são 1.478.  Entre os nove estados da Amazônia Legal, o Acre ocupa a quarta colocação no ranking do fogo de outubro, à frente do Amazonas, que tem território dez vezes maior, e também enfrenta um 2020 recorde na quantidade de queimadas, sobretudo nos municípios ao sul, na divisa com Acre e Rondônia.  

Com o clima alterado que retarda o início de um “inverno amazônico” mais robusto, o impacto do fogo em 2020 é maior. De acordo com o  Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama), da Universidade Federal do Acre (Ufac), a área queimada no estado este ano é a maior já registrada na última década. 

Entre julho e o dia 18 de outubro, o Acre tem 248.200 hectares de terra queimada, chamadas de “cicatrizes”. O número se alia a outro recorde: 2020, segundo o Inpe, também é o mais grave em dez anos em registro de focos de queimadas: 8.879 do começo do ano até aqui. A quantidade só perde para 2005, quando o Acre e todo o sul da Amazônia foram impactados por uma forte estiagem causada pelo aquecimento das águas do Atlântico, fenômeno que se repetiu em 2010 e agora em 2020. 

O fenômeno é conhecido pela sigla em inglês AMO, cuja tradução para o português é Oscilação Multidecadal do Atlântico. Seu principal efeito é a redução da umidade na parte mais sul da Amazônia e uma concentração maior ao norte. Além das condições ambientais propícias à proliferação do fogo, também há o ambiente político de desmonte das estruturas de estado que deveriam atuar para a proteção da Amazônia, o que agrava o quadro. 


domingo, 11 de outubro de 2020

A mudança para pior

 Mudanças climáticas e políticas comprometem futuro da Amazônia - e dos amazônidas 


A cada dia que se passa, nós moradores da Amazônia, sentimos os efeitos das mudanças climáticas em nosso cotidiano. As temperaturas que já são altas de janeiro a dezembro estão cada vez mais elevadas. Para piorar, as chuvas ficam mais raras. É um clima quase de sertão na maior floresta tropical do mundo. Isso, por si só, desequilibra todo o ecossistema da região, agravada pela intensificação da ação humana. As alterações do clima, aliadas às políticas que fragilizam a proteção ambiental, fazem aumentar as dúvidas sobre a sobrevivência da Amazônia e seus 25 milhões de habitantes nas próximas décadas.

E aqui, neste canto do planeta chamado Acre, temos sentido muito os impactos das mudanças do clima e da aceleração  do processo de destruição da floresta ocasionado por um novo grupo político que assumiu os rumos do estado em 2019, carregando o que há de mais velho no pensamento político-econômico. Enquanto sofremos com um clima mais quente e seco em pleno período de transição para o “inverno amazônico”, os satélites do Inpe não deixam de captar o crescimento dos focos de queimadas. 

Este é o pior ano em uma década no registro de fogo em território acreano. Já superamos até 2010, visto como o mais crítico no período. Assim como agora, há dez anos enfrentávamos os efeitos de uma alteração do clima ocasionado pelo aquecimento do oceano Atlântico. Conhecido pela sigla em inglês AMO, seu efeito é reduzir a quantidade de chuvas na região sul da Amazônia. 

Entre 1 de janeiro a 10 de outubro de 2010, o estado teve 8.338 focos de queimadas. Agora, em mesmo intervalo de tempo, são 8.673. O que mudou de lá para cá? Quem ocupa a cadeira de governador. Naquele 2010 o Acre era governado por Arnóbio Marques de Oliveira Júnior, o Binho Marques (PT). Militante petista dos tempos de Chico Mendes e Marina Silva nos seringais, Binho deu continuidade à política de florestania implementada pelo antecessor, Jorge Viana (PT). 

Entre um dos objetivos dessa política estava a proteção da floresta contra o avanço da ação humana. Uma década depois, o Acre é governado por Gladson de Lima Cameli, cujo endereço partidário atual é desconhecido. Em 2018 foi eleito pelo Progressistas prometendo fazer do agronegócio a locomotiva da economia acreana, sepultando a florestania dos tempos petistas. 

Sua principal promessa para o setor era flexibilizar as regras ambientais do estado e tirar a fiscalização realizada pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac) do pescoço de quem queria produzir no campo. Em março de 2019, já como governador, Cameli declarou - em um ato público - que ninguém mais precisava pagar as multas do Imac “porque agora quem está mandando sou eu”. 

O resultado está aí: o Acre passou a quebrar recordes atrás de recordes quanto ao desmatamento e as queimadas. Em 2019 a área de floresta que veio a chão foi a maior da década. Em 2020, o rastro do fogo em solo acreano também já é o pior. Os efeitos das modificações no comportamento do clima ficaram agravadas pela mudança do ambiente político que estimula e deixa na impunidade quem agride a natureza. 

O governo nega que estimule tais práticas. Mostra que atua no combate aos crimes contra o meio ambiente. Apresenta até um centro integrado de gerenciamento, o Cigma. Ao mesmo tempo recebe em seu gabinete parte do setor ruralista insatisfeito com a atuação do Imac, cobrando a flexibilização da lei ambiental prometida na eleição de 2018. Cameli responde que trabalha para reduzir a burocracia, e o fogo vai ardendo pela zona rural.     

Todo este componente também é piorado com o cenário político em Brasília, cujo presidente e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, trabalham para a boiada passar sem o mínimo pudor. O desmonte do Ibama e ICMBio tem impacto devastador para a proteção da Amazônia, incluindo até as unidades de conservação que, em tese, deveriam estar livres desta degradação. 

A Reserva Extrativista Chico Mendes, no sudeste acreano, é a que mais queima hoje na região. Já são mais de mil focos dentro da unidade, fragilizada por falta de políticas do governo estadual e federal para o fomento à economia de base florestal. 

Enquanto a borracha e a castanha se desvalorizam, o boi fica a cada dia mais competitivo. O resultado é a transformação   dos seringais em pasto.  E ainda tem o efeito do projeto de lei (PL 6024) da deputada Mara Rocha (PSDB) e do senador Márcio Bittar (MDB) que desafeta áreas da Resex para beneficiar seus maiores desmatadores. 

O clima está mudando. Não me lembro de ter passado por um outubro com temperaturas tão quentes como nestes dias. Nesta época deveríamos estar convivendo com as primeiras chuvas de nosso inverno. Contudo, elas estão raras. As chuvas estão caindo em quantidade cada vez menor e num intervalo de tempo mais curto. Com isso, a floresta perde umidade; os rios ficam em níveis críticos. 

Na contramão, o fogo não para de se expandir. Fogo que, diga-se, é resultado não da ação da natureza, mas do homem. O homem que agora se sente respaldado pelo governador e pelo presidente para transformar a floresta em pasto, crente de que não será punido.  A “punição” passou a ser um tal Programa de Regularização Ambiental (PRA) que, na prática, não é cumprido pela grande maioria dos produtores. Ninguém quer saber de recompor a floresta desmatada, reduzir o pasto.

Com estes dois fatores atuando ao mesmo tempo - um clima diferente e a política de “passar a boiada” - aumenta-se o ceticismo sobre o futuro da maior floresta tropical do mundo, essencial para se manter a sobrevivência humana. Para justificar sua política do agronegócio, o governador do Acre disse que é fácil falar em preservação da Amazônia “quando se tem que colocar comida na boca de 26 milhões de amazônidas”. 

A se manter este ritmo de devastação da floresta, caro governador, não saberemos quantos amazônidas vão entrar em sua contabilidade para garantir comida nos próximos anos. Não dá para sobreviver sem as chuvas que alimentam nossos rios e irrigam o grão plantado pelo homem do campo. Sem floresta não há vida. Essa é a equação.     

        


quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Fumaça internacional

Na tríplice fronteira, Acre tem até oito vezes mais registros de queimadas em 2020 


Área queimada em fazenda às margens da BR-317, que interliga o Acre à Bolívia e ao Peru (Foto? Jardy Lopes/2019)


@fabiospontes 

Além de passar a não dar o melhor dos exemplos em termos de preservação da Amazônia dentro do Brasil desde o ano passado, o Acre também é boa referência na tríplice fronteira com a Bolívia e o Peru. Dos três estados que formam a região conhecida pela sigla MAP - Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia), o estado brasileiro foi o campeão em registro de focos de queimadas em 2020, tendo até oito vezes mais casos do que os vizinhos. 

De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora o fogo no MAP, o Acre teve, entre 1 de janeiro a 6 de outubro, 8.062 focos de queimadas. Logo em seguida está Madre de Dios, com 1.524 focos, e Pando com 1.346 focos. Sozinho, o Acre representou 73% do total das queimadas captadas pelos satélites do Inpe na tríplice fronteira. 

Este protagonismo do estado no uso do fogo para limpeza de roçados ou áreas com recente desmatamento desmistifica o argumento usado ao longo dos últimos anos de que a fumaça inalada pelos acreanos é oriunda das queimadas nos países e estados vizinhos. Em agosto, o Acre superou até Rondônia e Mato Grosso na quantidade de focos. De possíveis importadores de fumaça tóxica, o Acre passou a exportar ar poluído para a vizinhança. 

Em setembro do ano passado, produzi reportagem especial mostrando os impactos das queimadas na Amazônia formada por Brasil, Peru e Bolívia. Naqueles tempos sem pandemia era possível ir de um lado ao outro da fronteira; agora elas estão fechadas e sem previsão de reabertura. Já em 2019 o Acre também era o grande patinho feio na preservação da floresta entre os três países. 


Leia a reportagem especial: 


O Fogo sem Fronteiras 


domingo, 4 de outubro de 2020

Uma história de resistência

Pandemia e os povos indígenas sete meses depois


Ti Kampa do Rio Amonea, do povo Ashaninka; isolamento e modo tradicional de vida evitam chegada do coronavírus (Foto: Agência Acre) 



@fabiospontes


O Brasil chega ao sétimo mês de efeitos da pandemia do novo coronavírus. Até este começo de outubro são mais de 145 mil vidas perdidas para a Covid-19. O número poderia ser bem menor se o país tivesse contato com uma política e estratégia nacionais de enfrentamento ao problema. Porém, desde o começo, lá em março, o governo de Jair Bolsonaro atuou para boicotar todas as medidas sanitárias adotadas por governos estaduais e prefeituras para conter o contágio. 

Preferiu tratar a doença como uma “gripezinha” cujas mortes não iam passar de 800. Ultrapassamos mais de 100 mil em seis meses, com o genocídio podendo ter sido bem maior caso as lideranças locais tivessem seguido o mesmo caminho do presidente da República.  

A pandemia não fez distinção de raça, credo, condições financeiras ou localização geográfica. O coronavírus chegou até as comunidades mais isoladas e remotas da Amazônia, como as aldeias indígenas. Os índios brasileiros ficaram ainda mais vulneráveis diante de uma política claramente anti-índigena adotada pelo governo desde janeiro do ano passado. 

Não sabemos ao certo quantos deles perderam a vida ou foram contaminados pela nova doença. O governo deixa de fora da contabilidade oficial os casos de indígenas que moram nas cidades, considerando em suas estatísticas apenas os aldeados. Mesmo assim, também se trata de um dado impreciso diante da incapacidade do estado levar atendimento de saúde de qualidade às comunidades em locais de difícil acesso, esquecidas do restante do país.    

De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em todo o país estima-se em 837 índios mortos pela Covid-19, com 34.816 contaminados. São 158 diferentes povos afetados. Destes números, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), 670 mortes ocorreram aqui na região. O número se explica por a Amazônia ter a maior população indígena do país. 

No Acre, ainda conforme a entidade, são 27 mortes e 2.161 casos confirmados. Há registros de casos entre 14 das 16 etnias do estado. Desde o começo acompanhei o impacto do coronavírus entre os 24 mil indígenas acreanos que, além de sofrerem com a ineficiência do governo federal, ainda sentem o desprezo do governo local, deixando para agir apenas em agosto, e mesmo assim de forma atabalhoada. 

Para relembrar toda essa situação de março para cá, fiz uma seleção das principais reportagens publicadas aqui no blog sobre o tema. Foi e tem sido uma cobertura desafiadora. Toda apuração ocorre a distância, via telefone, conversando com as lideranças via WhatsApp desde suas aldeias nas localidades mais distantes do estado. Foi assim com a liderança Bira Yawanawa. Das cabeceiras do rio Gregório, em Tarauacá, ele contou como os Yawanawa adotaram um lockdown da floresta, construindo uma cerca no rio para controlar a entrada e a saída das embarcações.  

Não fossem essas medidas simples de autoisolamento adotadas pelos líderes, o impacto da Covid-19 entre as comunidades indígenas teria sido bem maior em toda a Amazônia. Outra medida de resultado foi recorrer à medicina tradicional, produzindo chás a partir das infinitas folhas e raízes da floresta. Muitos daqueles que apresentaram sintomas da doença foram tratados apenas com os chás e as rezas dos pajés. 

A preservação das tradições e conhecimentos seculares destes povos da Amazônia nunca se mostrou tão importante como agora. Infelizmente, parte desta memória foi perdida com a morte dos mais velhos e velhas. Agora, aos jovens cabe a missão de manter vivo tudo aquilo que aprenderam. Somente assim vão ter a sabedoria necessária para estes tempos de resistência a ataques promovidos por aquele que deveria protegê-los.   


Confira    


Coronavírus leva indígenas do Acre a "fechar aldeias" e interromper turismo


Sem assistência, Jaminawa que vivem nas cidades voltam para aldeias sem fazer exames





























quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Áreas (nem tão) protegidas

Com desmonte do ICMBio, áreas protegidas da Amazônia têm aumento de queimadas 


Flona Jamanxim e Resex Chico Mendes lideram o ranking do fogo no bioma; as duas unidades são alvo de projeto de desafetação e pressões políticas locais  


Floresta derrubada e queimada em seringal da Resex Chico Mendes, em Xapuri, campeã do fogo em 2019 e vice em 2020 (Foto: Fabio Pontes/2019)


@fabiospontes

Com a continuidade do processo de desmonte das estruturas dos órgãos ambientais conduzido pelo governo Jair Bolsonaro, os registros de focos de queimada dentro de unidades de conservação na Amazônia aumentaram em 2020. Entre janeiro e setembro deste ano foram detectados 3.953 focos nas áreas protegidas federais dentro do bioma.  A quantidade é 20% superior à registrada em igual período de 2019, com 3.290 focos. A Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, no Acre, e a Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, no Pará, se revezam nas duas primeiras posições entre as unidades mais afetadas pelo fogo. Em 2020 a UC paraense ficou na primeira posição, com 882 focos. 

Após ser a campeã das queimadas em 2019, a Resex Chico Mendes ficou em segundo, com 667 focos; ano passado foram 784 pontos. Os dados são do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A prática do queima nestas áreas tem como objetivo principal a ampliação de áreas para a criação de boi. Há uma grande pressão das fazendas de gado no entorno. 

Vale ressaltar que, além de sofrer com o desmonte dos órgãos que deveriam protegê-las, as duas unidades são pressionadas por interesses políticos locais para reduzir suas áreas, a chamada desafetação, para beneficiar o setor da agropecuária. 

Em novembro do ano passado a deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC) apresentou  projeto de lei (PL 6024) que retira de dentro da Resex Chico Mendes as áreas de moradores que transformaram os antigos seringais em médias e grandes fazendas de gado. Dois deles já foram condenados pela Justiça para deixar a reserva, mas recorrem da decisão. 

Sem previsão de a matéria ser votada pela Câmara, a deputada tem pressionado a presidência do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para que essas áreas deixem de integrar a Resex. A tucana diz agir em nome de “pequenos produtores rurais” que já desenvolviam a agropecuária antes da UC ser criada, em março de 1990. 

Este é o mesmo argumento usado por quem quer diminuir o tamanho da Flona do Jamanxim, assim como também houve o trabalho de pressão política sobre o ICMBio. Em sentença de 2018, a Justiça Federal proibiu o órgão de definir novos limites para a Jamanxim, o que só pode ser feito com aprovação do Congresso Nacional. Desde 2017 o PL 8107, que modifica os limites da Flona Jamanxim, tramita pela Câmara. 

Além da Resex Chico Mendes, o PL 6024 ainda atinge o Parque Nacional da Serra do Divisor, localizado em uma das áreas mais bem preservadas da Amazônia. O objetivo é fazer com que a unidade deixe de ser um parque e se transforme numa Área de Proteção Ambiental (APA), cujas regras de proteção são bem mais flexíveis. 

O efeito da proposta já é sentido com o aumento dos registros de queimada. Até setembro foram 104 focos dentro do parque; em igual intervalo de tempo do ano passado o Inpe registrou 60 focos. O Parque da Serra do Divisor está, até aqui, entre as 10 unidades de conservação da Amazônia mais impactadas pelo fogo. 

Há ao menos dois meses a gestão da unidade é feita de forma cumulativa; além do parque, o servidor do ICMBio ainda precisa dar conta de duas reservas extrativistas: a do Alto Juruá e a Riozinho da Liberdade. Somente a Serra do Divisor tem  uma área de 837 mil hectares. A Resex do Alto Juruá é a sétima entre as 10 mais queimadas em 2020 na Amazônia, com 126 focos. 

O ICMBio é o órgão responsável pela gestão das unidades de conservação do país e, assim como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), passa por um acelerado processo de desestruturação pelo governo Bolsonaro. 

No Acre, o ICMBio conta apenas com oito funcionários concursados; destes, seis atuam diretamente nas 11 unidades de conservação federais do estado. Este acúmulo de áreas protegidas nas mãos de um único chefe faz parte da nova estrutura desenhada pelo Ministério do Meio Ambiente, que acabou por fragilizar ainda mais a atuação.  Cada estado antes contava com uma coordenação regional. Essa estrutura foi extinta, e toda a gestão das UCs no Norte é feita a partir do escritório em Santarém, no Pará. 

Na terra de Chico Mendes o instituto ainda tem seis cargos comissionados (DAS), alguns deles nas chefias das UCs, mais estagiários e os brigadistas contratados para atuar apenas nos meses das queimadas. Como atestam os números do Inpe, o trabalho deles não foi suficiente para apagar o fogo alimentado pelo desmonte da política ambiental brasileira promovido pelo governo Bolsonaro. 


Leia mais: PL da bancada da motosserra acelera degradação da Resex Chico Mendes 

domingo, 27 de setembro de 2020

A rodovia da destruição (mais uma)

Cruzeiro do Sul/Pucallpa: uma rodovia de resultados econômicos duvidosos, mas de  danos sociais e ambientais concretos 



Parque Nacional da Serra do Divisor: UC será impactada por rodovia e é alvo de PL que o transforma em APA (Foto: Fabio Pontes/2019)


@fabiospontes 

A semana que passou foi de muita ambiguidade e confusão no governo acreano de Gladson Cameli (partido indefinido, outra confusão) no que diz respeito à questão ambiental. Aliás, ambíguo e confuso são os dois atributos da atual gestão em todos os setores. Enquanto na quarta Cameli recebia a visita do vice-presidente, Hamilton Mourão, para mostrar as ações desenvolvidas pelo Acre no combate ao desmatamento que não para de crescer, no fim de semana a agenda com ministros de Jair Bolsonaro (sem partido) foi para tratar de projeto que pode ser visto como um dos mais desastrosos para a proteção da Amazônia - não só a brasileira. 

Ao lado do ministro caçador de unicórnios Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e de Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Cameli cumpriu agenda em sua cidade natal, Cruzeiro do Sul, para tratar do projeto de interligação rodoviária da capital do Juruá - como é conhecida - com a cidade peruana de Pucallpa, departamento de Ucayali.  

Caso de fato saia do papel, a rodovia terá seu traçado passando dentro daquela que pode ser considerada uma das últimas áreas mais bem preservadas da Amazônia no continente. E isso não é uma hipérbole. Na Bacia do Rio Juruá também está concentrada uma das maiores concentrações em biodiversidade do Planeta Terra, como atestam estudos científicos. Por ali há espécies ainda desconhecidas pela Humanidade. 

Aquela densa selva amazônica dos dois lados da fronteira é a casa para dezenas de povos indígenas contactados e daqueles que optaram por viver em isolamento voluntários. Ao se olhar de cima por imagens de satélite toda a região de rios, serras e floresta que separa Cruzeiro do Sul de Pucallpa, tem-se uma dimensão do impacto que uma rodovia pode ocasionar. Como sabemos, as estradas são o principal vetor de expansão da destruição da Amazônia - e não importa em qual lado da fronteira elas estejam. 

Até agora não se tem o projeto concreto do traçado da rodovia, prometido para ser entregue até o fim do ano pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit). A rodovia tem como principal entusiasta o líder da bancada da motosserra, o senador bolsonarista e ex-marxista Márcio Bittar (MDB). Junto com a deputada federal Mara Rocha (PSDB), Bittar é autor do Projeto de Lei 6024 que transforma o Parque Nacional da Serra do Divisor em Área de Proteção Ambiental (APA), cujas regras de preservação são bem mais brandas do que um parque. 

A unidade de conservação está justamente no caminho da rodovia. O PL foi apresentado com a justificativa de eliminar a barreira legal para a construção da rodovia. Todavia, o decreto de criação do parque (de 16 de junho de 1989) já previa a possibilidade da passagem de uma estrada por aquelas bandas. 

O verdadeiro interesse em rebaixar a Serra do Divisor para APA é a de explorar as suas riquezas da superfície e subterrâneas, incluindo o gás xisto. Bittar também é entusiasta da atividade minerária e extrativa das pedras que compõem aquele cenário de serras que separam o Brasil do Peru.  

Ao que tudo indica, o entusiasmo pela estrada Cruzeiro do Sul/Pucallpa se dá de forma mais intensa muito mais (e talvez apenas) do lado de cá da fronteira. Pucallpa não precisa nem um pouco desta interligação com o Acre, por já possuir rodovias que a conectam com todo o Peru. E, sejamos sinceros, não temos nada a oferecer para o mercado de Ucayali.   

Até o momento não se sabe qual seria o empenho do governo peruano em também tocar o projeto. A agenda do chanceler Ernesto Araújo aqui foi o sinal da disposição de Brasília em iniciar as negociações diplomáticas com Lima. A dúvida é saber até onde os vizinhos estariam dispostos a tirar alguns milhões de soles de seu orçamento para bancar o empreendimento. 

A rodovia da integração entre Acre e Peru construída na primeira década dos anos 2000 teve praticamente toda a sua construção arcada pelo governo brasileiro. Estaria o posto Ipiranga com disposição para liberar alguns milhões e até bilhões de reais para um empreendimento de resultados econômicos questionáveis? 

Lá de cima percebe-se que os peruanos estão totalmente de costas para a fronteira amazônica com o Brasil, muito mais voltados para sua relação histórica com o oceano Pacífico. Para Cruzeiro do Sul a estrada também não demonstra trazer grandes benefícios, pois o município está conectado ao restante do Brasil pela BR-364. 

A interligação com o Pacífico é o principal argumento dos atuais líderes acreanos para defender a ligação rodoviária de Cruzeiro do Sul com Pucallpa, apresentando como a grande redenção econômica do estado. Apresentam tal argumento como se fosse a descoberta da pólvora, a invenção da roda. Contudo, o Acre já tem uma conexão com os portos peruanos por meio da Rodovia Interoceânica, ou a Carretera del Pacífico, que até hoje também não nos trouxe a redenção econômica tão prometida por seus idealizadores (os petistas). 

Portanto, não existe nenhum argumento lógico do ponto de vista ambiental, econômico e logístico para uma rodovia cujo único legado seria a devastação de um dos últimos santuários da Amazônia. Já não bastasse as consequências de uma política desastrosa para a proteção da maior riqueza acreana, o governo Gladson Cameli atua para bancar uma estrada que ligaria o nada a lugar-nenhum. 

“Vai ser uma esculhambação total. Não vai ter controle de nada. A expansão das margens de desmatamento vai ocorrer de maneira intensa. Se hoje o órgão ambiental [ICMBio] não tem controle, imagine com uma estrada. Vai ser pura especulação fundiária. Isso vai servir para facilitar a invasão de terras públicas”, disse Miguel Scarcello, secretário da SOS Amazônia em entrevista ao blog em julho. 

O governo Gladson Cameli proporcionaria muito mais desenvolvimento e garantiria a “comida na boca dos amazônidas” - como ele próprio afirmou essa semana - se investisse em políticas públicas de valorização dos produtos florestais tão abundantes no Vale do Juruá e tão subestimados. Garantir mercado e preço a estes produtos é assegurar renda e qualidade de vida para milhares de acreanos que vivem na floresta sem ser preciso destruí-la para colocar boi ou soja. 

Ao invés de querer privilegiar o grande agronegócio que beneficia apenas um punhado de ruralistas, Cameli deveria centrar esforços para fortalecer a agricultura familiar, que é quem realmente coloca comida na boca dos amazônidas. Indo no sentido contrário, prefere deixar como legado projetos que contribuem para acelerar a devastação da mais importante floresta tropical do Planeta. 



Imagem de satélite mostra a separação entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, formada por uma selva intocada - até agora (Fonte: Google Earth)



quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Uma resposta à altura

Temos o cuidado para o fogo não entrar na floresta, diz liderança indígena 


Desde que os biomas brasileiros passaram a sofrer com o desmatamento e as queimadas recordes a partir de sua chegada ao Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem preferido transferir a responsabilidade pelo caos para os outros. Enquanto ele e seu ministro da destruição do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atuam para desmontar a estrutura dos órgãos ambientais do país, a estratégia é responsabilizar setores da sociedade pela atual tragédia ambiental brasileira. 

Em 2019 a opção foi culpar as ONG’s; agora em 2020 os povos indígenas e as demais populações tradicionais da Amazônia e do Pantanal passaram a ser alvo dos discursos presidenciais. De acordo com Bolsonaro, as atuais queimadas registradas nos dois biomas é resultado do fogo feito em roçado por indígenas e pequenos produtores que sai do controle e adentra na mata fechada. 

Não é novidade para ninguém que os povos indígenas fazem uso do fogo para limpeza de seus roçados. Detentores de uma relação ancestral com o fogo, eles sabem como poucos fazer o uso controlado para evitar, justamente, aquilo de que são acusados agora. 

“Ele não conhece a realidade da população indígena. Não conhece o trabalho que a gente faz no roçado. Nunca esteve numa aldeia para saber como nós queimamos um roçado”, diz Ismael Shanenawa, agente agroflorestal indígena da aldeia Shane Kaya, da Terra Indígena Katukina/Kaxinawá, no município de Feijó (AC). 

“A gente vem aprendendo isso de geração em geração. O meu avô, o meu pai, que derrubam um roçado, a gente faz uma queimada controlada. A gente sabe queimar, não deixa o fogo espalhar. A gente tem o maior cuidado quando vai tocar fogo para ele não se espalhar pela floresta”, ressalta ele. 

A pedido do blog, Ismael gravou este vídeo com o depoimento sobre como o povo Shanenawa faz o uso da queima para preparo do solo, além de comentar as atuais afirmações do presidente da República. 


Assista: 





Nota: Dos 151 mil hectares de áreas queimadas no Acre entre o fim de julho até o dia 19 de setembro, apenas 1% está dentro de terras indígenas, conforme levantamento do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (Labgama), da Universidade Federal do Acre. Já dos 6.553 focos de queimadas detectados pelo Inpe entre agosto e 24 de setembro, somente 179 foram dentro de terras indígenas, que correspondem por 14,56% do território acreano. Ou seja, o impacto dos indígenas no ambiente é mínimo.    


terça-feira, 22 de setembro de 2020

Análise

 Os governos militares são um desastre para a Amazônia 


As falas e as práticas dos integrantes do alto escalão (todos oriundos dos quartéis) do atual governo brasileiro atestam: os militares na condução dos rumos políticos do Brasil representam um verdadeiro desastre na proteção da Floresta Amazônica. Foi assim no passado durante os 20 anos de ditadura resultante de um golpe em 1964, e agora no governo democraticamente eleito de Jair Bolsonaro, que não tem muita afeição pela democracia. 

Desde o retorno dos militares ao Palácio do Planalto no início do ano passado, a Amazônia - e todos os demais biomas - voltou a registrar níveis recordes de desmatamento e queimadas. Não que os comandantes das Forças Armadas sejam os responsáveis diretos pela atual devastação ambiental do Brasil, mas sim seu comandante-em-chefe, o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, um militar dono de uma carreira bastante questionável nos quadros do Exército. 

Bolsonaro tem uma posição claramente contrária à proteção dos recursos naturais do país, bem como das populações tradicionais que vivem nestes biomas. Sua visão é a do desenvolvimento a todo e qualquer custo, nem que para isso tenha que passar a boiada. 

A sua eleição e consequente chegada ao Planalto foi a libertação tão desejada por aqueles que se sentiam reprimidos pelos órgãos ambientais durante os governos passados, e se sentem à vontade para cometer os mais variados crimes aqui na região - da grilagem de terras públicas à ampliação dos garimpos -  convictos de que têm o respaldo do líder máximo da nação. 

Tanto assim que uma das principais práticas do governo Bolsonaro é o desmonte de órgãos como Ibama e ICMBio. O resultado está aí para o mundo todo ver e se aterrorizar. As duas atitudes do governo para lidar com a situação são a de 1) colocar a culpa pelo caos nas costas das comunidades tradicionais e 2) recorrer aos militares para tentar amenizar os prejuízos e mostrar à comunidade internacional que algo está sendo feito para não prejudicar seu principal avalista político-econômico: o agronegócio. 

O mesmo agronegócio que por aqui chegou e se expandiu durante a ditadura militar (1964-1985) da qual Bolsonaro é um saudosista. A política de “ocupação” e “desenvolvimento” adotada pelo regime foi a de entregar vastas áreas da Amazônia para produtores do centro-sul do país para a transformarem em pasto. Em contrapartida, o Estado abria estradas cujos efeitos são sentidos até hoje. 

O resultado dessa política do “integrar para não entregar” e da “terra sem homem para homens sem-terra” foi a expulsão de milhares de famílias que moravam no interior da floresta para formar grotões de miséria nas periferias das cidades, além de criar confrontos pela posse da terra que resultaram em dezenas, centenas, de assassinatos. 

É essa mesma política destruidora que agora ganha corpo no Brasil, passados 30 anos do fim da ditadura militar - e com o retorno dos militares ao poder. Enquanto um capitão com a faixa presidencial abre a porteira para a boiada passar, um general no cargo de vice tenta (sem sucesso) proteger a Amazônia de seu próprio governo. 

Como os dados atestam, nesta disputa o general está sem muito poder de fogo diante de um capitão que não está nem um pouco preocupado em proteger a maior riqueza natural brasileira da qual os militares tanto dizem se orgulhar: a Amazônia Os militares precisam entender que os maiores inimigos da Amazônia não estão fora, mas dentro do próprio quintal. 

Ao que tudo indica, se a devastação continuar no ritmo que está, nem mais uma floresta as Forças Armadas terão para defender da “cobiça internacional”. Os próprios militares podem entrar para a história como os principais responsáveis pela perda da Floresta Amazônica por meio de políticas desastrosas quando governavam o país nos anos de chumbo e agora nesta nossa cambaleante democracia.    


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