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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Seco, desmatado e queimado

Em outubro, Acre tem novo recorde em perda de cobertura florestal 


Área desmatada superou a do MT e AM; acúmulo entre agosto e outubro é de 435 km2 (Foto: Divulgação/SOS Amazônia)



O Acre aos poucos vai assumindo um deprimente protagonismo em seus níveis de contribuição para o desmatamento da Amazônia brasileira. O estado, que antes ficava quase invisível quando da apresentação deste tipo de dado, agora disputa as primeiras posições no ranking da devastação ao lado de Pará, Mato Grosso e Rondônia. Em outubro, o total de área desmatada por aqui superou até mesmo o Amazonas, estado cujas dimensões territoriais são incomparáveis com o Acre. 

Segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o Acre foi o terceiro estado que mais contribui para a perda de cobertura florestal do bioma em outubro: 84 km2. Um aumento de 133% quando feita a comparação com o mesmo mês de 2019. O Acre só teve menos floresta desmatada do que Rondônia (105 km2) e o Pará (474 km2). 

O desmatamento acreano superou até mesmo Mato Grosso, estado que costumava dividir com o Pará o primeiro lugar no ranking, mas que vem perdendo a vanguarda para o Acre. Em agosto já tínhamos superado o Mato Grosso também na quantidade de registro de queimadas, conforme os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Por falar em fogo, toda essa floresta derrubada no Acre em 2020 muito em breve vai virar em cinzas em 2021 com a chegada do “verão amazônico”. Conforme o Imazon, entre agosto e outubro o desmatamento acumulado é de 435 lm2. Por sinal, talvez nem seja preciso esperar até julho ou agosto do ano que vem para a temporada do fogaréu no Acre recomeçar - se é que ela acabou. 

Com a escassez de chuvas observada até aqui, a tendência é de todo esse material combustível (a floresta desmatada) apresentar as condições ideais para ser queimada bem antes. E com tanta mata devastada, podemos ter muito fogo em 2021 e, consequentemente, muita fumaça tóxica em nossas narinas. 

Com menos chuvas a tendência é de esse fogo também adentrar na floresta por a umidade estar muito baixa. O aumento dos dias secos acumulados e as altas temperaturas contribuem para o chamado “estresse hídrico", quando a floresta perde muita umidade, deixando-a exposta a incêndios.  

Agora, em pleno “inverno amazônico”, estamos vivendo verdadeiros dias de “verão”: quentes e secos. Dados da plataforma MAP-Fire apontam que, em algumas regiões do Acre, não há registro de chuvas há mais de 10 dias em novembro. 

O efeito inevitável é o aumento na quantidade de queimadas. Nos 22 dias do mês já são 122 focos captados pelo Inpe. Em igual intervalo de tempo do ano passado foram 14 focos; naqueles dias chovia por aqui. Durante 2020 o Acre registra 9.178 pontos de queimadas; aumento de 35% ante 2019. 

Como escrevi no artigo antes deste, há outro agravante para o Acre, em especial a capital Rio Branco, em 2021: a eleição de Tião Bocalom (PP) para a prefeitura. Com discurso voltado apenas para fortalecer a produção rural, é quase certo que a zona rural do município arda em chamas diante do aval político do novo prefeito, encobrindo a cidade com muita fumaça, deixando o ar irrespirável. 

Foi a eleição de Gladson Cameli (PP), em 2018, para o governo que tem levado o Acre a apresentar taxas recordes de desmatamento e queimadas nos últimos dois anos. Assim como Bocalom, Cameli foi eleito com a promessa de fazer do agronegócio a locomotiva econômica do estado. O resultado disso tem sido trágico para a preservação da Amazônia e a saúde da população, exposta a sofrer com mais intensidade com um ar contaminado.  

Com a intensificação das mudanças climáticas nesta parte sul da Amazônia, os cenários para o futuro da preservação da maior floresta tropical do planeta não são nada otimistas. Caminhamos a passos largos para nos tornarmos o próximo sertão brasileiro mais algumas décadas - ou até mesmo anos. Os ambientes político e natural contribuem para isso.       


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O clima das eleições

Resultado das eleições municipais coloca ainda mais em risco meio ambiente e saúde da população em 2021 


Em 2020, moradores de Rio Branco respiraram ar contaminado pela fumaça por 46 dias (Foto: Sérgio Vale)


A consolidação do resultado das eleições municipais em Rio Branco, a capital do Acre, com a quase certa vitória de Tião Bocalom (PP) em 29 de novembro, representa um grande risco não apenas para a preservação do meio ambiente, mas também a saúde da população rio-branquense. Assim como dois e dois são quatro, é certo que Bocalom adotará uma política de desmantelamento de proteção ambiental, para fazer valer seu velho clichê de incontáveis campanhas do “produzir para empregar”. 

Com uma visão voltada exclusivamente para o setor rural desde o início de suas sucessivas campanhas eleitorais desde 2006, Bocalom sempre se mostrou contrário às políticas de proteção do meio ambiente. Para ele, tais normas são um entrave para o avanço do agronegócio. Apesar de estar numa disputa para a prefeitura de uma capital, Bocalom não deixa de lado sua obsessão pelo campo, esquecendo-se de apresentar propostas concretas e reais para quem está na zona urbana. 

Conforme todas as pesquisas apontam, é muito difícil ele não ser eleito prefeito. Portanto, a partir de 2021, a tendência é de as queimadas em Rio Branco ficarem ainda mais críticas. Desde 2019, com a chegada de Gladson Cameli (PP) ao governo do estado, o Acre passa por uma crise ambiental com taxas recordes de desmatamento e fogo. 

Neste ano estamos com 9.174 focos de queimadas registrados, contra 6.802 de 2019. E Rio Branco - com uma extensa área rural no seu entorno - está nas primeiras posições entre os municípios acreanos. Ano passado ocupou a quarta colocação, com 619 focos. Em 2020, até o dia 18 de novembro, são 730 registros de queimadas no município. Os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe. 

Enquanto o fogo é captado pelos satélites da Nasa lá em cima, aqui em terra firme nós vamos inalando uma fumaça tóxica que tantos danos causam à saúde humana e das demais espécies. Em 2020, os mais de 400 mil moradores da capital acreana respiram um ar altamente tóxico por 46 dias, como apontam os dados do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama). 

Em resumo, isso significa que chegamos a respirar um ar contaminado até 10 vezes superior ao tolerado pela Organização Mundial da Saúde, a hoje demonizada OMS. O ideal é que a concentração de material particulado - o chamado PM 2,5 - no ar não ultrapasse os 25 ug/m3. Nos dias de agosto - mês de pico das queimadas - a concentração de PM 2,5 ficou perto dos 400 ug/m3. 

E tudo isso em meio a uma pandemia de um vírus mortal e a um processo de mudança climática que tem reduzido, ano após ano, o volume de chuvas no Acre, em especial Rio Branco. Não tem achado estranho estarmos vivendo um novembro seco? 

Nesta época era para dormirmos e acordamos com a chuva. Mas o aquecimento das águas do oceano Atlântico - a léguas de distância de nós -  tem nos feito vivermos dias de verão amazônico em pleno novembro. 

Portanto, com 2021 sentindo os efeitos deste 2020 seco e quente, além do ambiente político de desprezo à proteção de nossos recursos naturais, a perspectiva é de que a quantidade de queimadas e de dias de ar contaminado sejam bem maiores e impactantes do que acabamos de viver semanas atrás. 

Com Tião Bocalom na prefeitura, Gladson Cameli no governo e Jair Bolsonaro na Presidência, a tendência é de Rio Branco - assim como a Roma de Nero - ficar literalmente incendiada, e os nossos pulmões tomados por fumaça tóxica. Não vai ter vaca mecânica que sobreviva ao fogaréu nos arredores da capital acreana.  

Para nossa sorte, pode ser que já estejamos vacinados contra o coronavírus. Mas não será a hora de nos desfazermos de nossas máscaras: vamos precisar muito delas para enfrentar a fumaça das queimadas.  


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Atrasado, atrapalhado e parado

Comitê formado pelo governo para avaliar impactos da Covid entre população indígena está parado 


Governador Gladson Cameli em visita inoportuna a aldeia do povo Yawanawa mês passado; GT da Covid não foi consultado (Foto: Governo do Acre/2020)


O grupo de trabalho (GT) criado pelo governo do Acre para acompanhar - apenas acompanhar - os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas do estado está há pelo menos 20 dias sem se reunir e sem previsão de voltar a funcionar. Sem nenhum resultado prático em prol das comunidades tradicionais desde sua criação em agosto, o GT tem se resumido à realização de sucessivas reuniões em que nada se é definido de fato, ficando apenas nas boas intenções. 

Agora, nem mesmo isso vem acontecendo, conforme o blog apurou. Esta pouca efetividade do GT é o resultado da inabilidade do governo Gladson Cameli (partido incerto) em lidar com a questão indígena de um estado amazônico. Um de seus primeiros atos ao virar governador, em janeiro do ano passado, foi extinguir a Assessoria dos Povos Indígenas, ligada ao gabinete do governador até as gestões petistas (1999-2018).  

Durante a crise do coronavírus, o governo Cameli deixou toda a responsabilidade pelos cuidados dos mais de 24 mil índios acreanos nos ombros da Fundação Nacional do ìndio (Funai) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena por meio dos dois Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei’s): do Alto Rio Juruá e Alto Rio Purus. É fato que a saúde indígena é de responsabilidade da União, mas diante da gravidade da situação o reforço por parte do governo estadual poderia ter feito toda a diferença.  

De acordo com monitoramento do dia 6 de novembro, realizado pela Comissão Pró-Índio (CPI), 27 índios morreram por conta da Covid-19 no Acre. O número de infectados chega a 2.314, sendo a metade dos casos dentro das aldeias. 

Ao montar a composição do grupo de trabalho, o governo deixou de fora Funai e Sesai. Somente após recomendação expedida pelo Ministério Público Federal os dois órgãos foram incluídos. O próprio GT foi criado apenas cinco meses após o início da pandemia, quando o coronavírus já tinha chegado às mais distintas e longínquas aldeias, até mesmo àquelas vizinhas a áreas com registro da presença de grupos isolados.  

O temor é de que a segunda onda de contaminação que, aos poucos começa a emergir nos centros urbanos do estado, aos poucos também afete as comunidades indígenas. 

Em setembro escrevi artigo definindo o GT como “atrasado e atrapalhado”. O atrasado se dá por a iniciativa ter sido adotada quando a pandemia já tinha feito o estrago em todo o estado, incluindo nas comunidades indígenas.  Outra característica do GT é a sua inutilidade para o próprio governo, que atropela o colegiado quando, enfim, sinaliza certa disposição em se aproximar do movimento indígena.

O governo prepara para o próximo dia 25 uma grande reunião com as lideranças indígenas do Vale do Juruá em Cruzeiro do Sul. O objetivo do encontro é o mesmo ocorrido dias atrás na capital: garantir o acesso a recursos de projetos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas que asseguram alguns milhões de dólares e euros.   

A reunião acontece em meio ao crescimento dos casos da Covid-19 em Cruzeiro do Sul, o que deixará expostos não apenas os indígenas que forem para a cidade. Há o risco deles voltarem para suas respectivas aldeias portando o vírus, o que poderia gerar uma calamidade. O governo não consultou  o GT sobre a realização desta reunião para saber se era prudente ou não realizá-la. 

Encontros como estes que deixam ainda mais vulneráveis uma população já bastante vulnerável não são aconselháveis de se fazer, e devem ser questionados pelo Ministério Público Federal. Para um governador que não vê problema em visitar uma aldeia - com toda a sua comitiva - em plena pandemia, reunir os índios na cidade é que não será motivo de preocupação. 


Leia texto com resumo das principais reportagens produzidas pelo blog sobre a pandemia e os povos indígenas do Acre 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Análise

Mudanças climáticas e degradação do rio Acre são ameaças ao abastecimento, não a privatização 


Com margens desmatadas e impactado por poluição, rio Acre é a única fonte de água para 70% dos acreanos (Foto: Sérgio Vale)


O deficiente sistema de abastecimento de água em Rio Branco está no topo das questões debatidas entre os sete candidatos a prefeito da capital acreana. A estratégia é bater com frequência no tema da falta de água nas torneiras dos mais de 400 mil moradores da cidade para enfraquecer a candidatura à reeleição de Socorro Neri (PSB), apoiada pelo governador Gladson Cameli (partido incerto). Vamos tentar entender a situação como de fato ela é. 

Não é de hoje que o sistema de fornecimento de água deixa muito a desejar em Rio Branco e em todas as outras 21 cidades acreanas. Desde 2012, o serviço foi tirado das mãos das prefeituras, transferido para o governo estadual. A iniciativa foi do então governador Tião Viana (PT), que vendo a possibilidade de a oposição assumir a prefeitura da capital, decidiu “estadualizar” tanto a distribuição de água como a coleta de esgoto. 

Foi criado o Departamento de Pavimentação e Saneamento, o Depasa. Com a eleição de Gladson Cameli para o governo, o que já era ruim ficou pior. O governador loteou os órgãos do estado entre os aliados, entregando o Depasa ao MDB. Este ano a polícia descobriu um esquema de corrupção na estrutura da autarquia, ocupada por indicados do senador Márcio Bittar (MDB). 

Com muitos bairros ficando dias sem receber água potável, o tema não poderia ficar de fora da campanha municipal. Os adversários do governo - sobretudo o PT - acusam Gladson Cameli de querer privatizar o Depasa, o que tornaria o serviço ainda mais precário. Fazem uma analogia com a venda da antiga Eletroacre, comprada pela Energisa. Na avaliação dos críticos, além de não garantir melhorias, a privatização da água traria o mesmo efeito da luz: o aumento da tarifa ao gosto da empresa. 

Neste ponto eles estão certos. Porém, a maior ameaça a um colapso no sistema de fornecimento de água potável para os moradores de Rio Branco é outro: o longevo processo de degradação da Bacia do Rio Acre, única fonte de abastecimento para a capital e todos os demais municípios às suas margens. A perda de quase toda a mata ciliar do manancial - mais o despejo de toneladas de esgoto in natura - podem deixar o rio sem condições de garantir água para 70% da população acreana num futuro nem tão longínquo.  

A isso se soma o acelerado efeito das mudanças climáticas que afetam essa porção sul da Amazônia. Em pleno "inverno amazônico", o nível do rio Acre chegou bem perto do volume mais crítico já registrado desde 1970, em setembro de 2016, ano de El Niño. Em outubro último, quando já deveríamos ter chuvas constantes, faltaram apenas dois centímetros para a quebra do recorde. 

Os tempos estão mudando. As chuvas estão ficando cada vez mais escassas, caindo em quantidade menor. O período de chuvas está ficando cada vez mais curto, e a estiagem mais severa e longa.  E o rio Acre depende exclusivamente da água que cai do céu para ter condições de “alimentar” as estações de captação. 

Mesmo com todas essas ameaças, a questão ambiental não é debatida entre os candidatos a prefeito de Rio Branco. Aos petistas, é melhor atacar os adversários com o discurso da privatização do que reconhecer sua omissão de duas décadas de nada fazer para amenizar a degradação do rio Acre. Enquanto os candidatos fazem falsas promessas de solucionar a questão da água, nada é proposto para garantir que a principal fonte do líquido não entre em colapso de vez daqui alguns poucos anos. 

De nada fará diferença se o sistema for privado ou estatal se não houver água a ser captada. Essa é a lógica que não é apresentada ao eleitorado de Rio Branco. Muito mais do que uma questão político-ideológica, o futuro da garantia de água na torneira dos rio-branquenses passa pelo debate ambiental, da nossa capacidade de recuperar o rio Acre e adotar medidas para mitigar os efeitos das mudanças do clima. 

E na minha modesta opinião de observador político, os candidatos que mais representam ameaças à questão ambiental são Minoru Kimpara (PSDB), Tião Bocalom (PP) e Roberto Duarte (MDB). Minoru Kimpara é oficialmente o candidato da familiocracia Rocha, que tem um projeto familiar de poder liderado pelo vice-governador Major Rocha (PSL). 

Neste grupo está a deputada federal Mara Rocha, que no Congresso é uma parlamentar bolsonarista e de postura altamente antiambiental. Portanto, ao se acercar de tais pessoas, Minoru Kimpara também se torna uma ameaça ao meio ambiente. 

Roberto Duarte tem como padrinho político o senador Márcio Bittar, cuja visão de retrocesso ambiental nem precisamos comentar. Tião Bocalom é o candidato do setor rural. Sua visão está sempre voltada em fortalecer o campo, o que representa fragilizar as políticas de proteção da floresta que sobrou no entorno de Rio Branco. A atual prefeita Socorro Neri é a candidata do governador Gladson Cameli, cuja gestão leva o Acre a bater recordes nas taxas de desmatamento e queimadas.  

Portanto, este é o quadro nem tão sustentável para a capital do Acre na eleição municipal de 2020, e que será refletido pelos próximos quatro anos. Infelizmente a questão ambiental não está entre as prioridades de nossa classe política, muito menos do eleitorado. As consequências desta nossa omissão podem ser desastrosas num futuro nem tão distante assim. 

Afinal, a mudança do clima é algo que já vivemos hoje. Será nossa capacidade de resiliência que vai assegurar ou não a água nas nossas casas - e a nossa consequente sobrevivência. 


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