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domingo, 30 de agosto de 2020

A fumaça e o vírus

Fumaça das queimadas aumenta risco de doenças respiratórias no Acre 


Nos dias mais críticos de incêndios, ar respirado pelos moradores da capital Rio Branco apresentava níveis de contaminação até 10 vezes superior recomendado pela OMS; falta de chuvas também ameaça abastecimento de água para 70% da população  


Bombeiro combate fogo em área de vegetação numa manhã de Rio Branco; já são mais de 3 mil ocorrências do tipo (Foto: Sérgio Vale/Amazônia Real)



@fabiospontes

Na noite do dia 16 de agosto, a taxa de poluição no ar respirado pela população em Rio Branco, capital do Acre, foi de 160.3 ug/m3 (microgramma por metro cúbico). O recomendado à saúde humana pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 25 ug/m3; ou seja, os rio-branquenses inalaram um ar seis vezes mais poluído. Dez dias depois, na madrugada de quinta-feira, 27, o sensor que mede a qualidade do ar instalado na região central de Rio Branco registrou uma máxima concentração de material particulado PM2.5 (material particulado fino ou, em inglês, particulate matter) de 386,11 ug/m3. 

A causa para um ar tão contaminado é a fumaça das queimadas que tem entre os seus componentes o monóxido de carbono e o dióxido de nitrogênio, além de micropartículas conhecidas como PM2.5. Estudos apontam que uma exposição prolongada a estes componentes pode levar ao desenvolvimento de doenças cardíacas por também entrarem na corrente sanguínea.

A “temporada de queimadas” começou no mês de julho e acontece em áreas de pecuária e agricultura após os desmatamentos, inclusive em áreas de floresta nativa. Em 2020 os efeitos da poluição da fumaça ficaram mais críticos diante da pandemia do novo coronavírus, decretada em 11 de março pelo OMS. Os sintomas da Covid-19 são semelhantes ao de problemas de saúde causados pela exposição a um ar poluído. Dessa forma, todos os casos de problemas respiratórios - seja por conta da infecção pelo Sars-CoV 2 ou por inalar fumaça -  vão para as estatísticas oficiais como SRAG: Síndrome Respiratória Aguda Grave.

A jornalista Angélica Paiva é o exemplo de como a saúde humana pode ser afetada pela fumaça das queimadas em tempos de coronavírus. No começo de agosto ela foi diagnosticada com Covid. Apresentou sintomas leves e fez o tratamento em casa. O principal problema, lembra ela, era ter que conviver com o vírus, mais as consequências de um ar tomado pela fumaça das queimadas.

 “Houve um dia em que o cheiro de fumaça estava tão forte que fiquei sem ar, e precisei fazer nebulização. Eu tive a sorte de a Covid não afetar os meus pulmões, mas o estrago que ela não fez, as queimadas completaram”, define Angélica Paiva.

Essa maior presença de material poluente no ar está relacionada diretamente com o aumento no registro das queimadas urbanas e rurais. Quanto mais vegetação é incendiada, mais partículas são emitidas e inaladas pela população, afetando, sobretudo, o sistema respiratório.

“Quando acontece a queimada ela vai emitir material particulado no ar. Essas partículas, dependendo do tamanho, causam problemas que vão desde algo simples como uma tosse, uma irritação no nariz ou nos olhos, até se desenvolver uma infecção pulmonar, a depender do tempo de exposição a esse ar poluído”, explica William Flores, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Ciências das Florestas Tropicais pelo Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Flores lidera a equipe do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama), responsável pela produção e análise de dados sobre a qualidade do ar no Acre. De acordo com ele, a maior presença de material particulado no ar agrava o quadro de saúde de pessoas infectadas pelo coronavírus, cujos efeitos principais é o ataque ao sistema respiratório. Pessoas portadoras de doenças respiratórias crônicas como a asma integram o chamado grupo de risco da Covid-19, e também são prejudicadas pela fumaça. 

 “Há estudos publicados nos Estados Unidos mostrando que em regiões onde o nível de poluição do ar é muito elevado você aumenta significativamente a probabilidade de morte por Covid”, comenta Flores.  

“Historicamente a Amazônia não é vista como uma região com ar poluído como são os grandes centros urbanos do país. Mas aqui temos esta atipicidade entre agosto, setembro e outubro que é o uso do fogo como uma tecnologia para a conversão de biomassa florestal para fins de adubação do solo”, diz. Porém, como o pesquisador ressalta, essa queima da biomassa também tem como efeito a liberação de gases poluentes que é absorvido pelo sistema respiratório. 

De acordo com o boletim epidemiológico desta sexta-feira (28) da Secretaria de Saúde do Acre (Sesacre), o estado tem registrado, desde o dia 17 de março, 24.462 pessoas foram infectadas pelo coronavírus, com 608 mortes.   

Ainda de acordo com dados da Sesacre, 1.316 pessoas foram hospitalizadas em Rio Branco, capital do Acre, durante este ano por SRAG. O pico das internações aconteceu em maio, quando a capital do estado estava em curva crescente nos casos da Covid-19, e as queimadas ainda eram uma realidade distante do cotidiano dos acreanos, como passou a ser desde meados de julho. 

Em junho e julho a quantidade de pessoas hospitalizadas por SRAG foi reduzido após o pico de maio. Foi exatamente neste período que o Acre começou a apresentar redução nos casos de infectados pelo coronavírus. Os dados da secretaria apontam uma expressiva diminuição de SRAG em agosto, quando o estado atingiu o maior nível na redução de contaminados e mortos por Covid-19, mas está no pico do registro de queimadas. 

De 274 pessoas internadas em julho, o número caiu para 71 até o dia 18 de agosto. Enquanto a Covid-19 parecia estar sob controle, o ar nas cidades ia ficando sem condições de respirar pela fumaça das queimadas que não paravam de aumentar nos meses mais secos e quentes.

Estimativa de estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), aponta que, em 2019, 2.195 pessoas moradoras dos estados que formam o bioma Amazônia foram hospitalizadas por problemas respiratórios causados pela fumaça oriunda do desmatamento. A maioria dos pacientes (1.080) era composta por pessoas acima de 60 anos, que também integram o grupo de risco da Covid-19.

Dos 3.325 focos de calor registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no acumulado deste ano, 2.098 ocorreram entre 1 e 28 de agosto. Este pico se justifica por agosto ser o mês que apresenta as condições ideais para o uso do fogo: longos dias sucessivos sem chuva, baixa umidade e temperatura elevada. E é também em agosto que o ar respirado pelos acreanos está em suas piores condições. A situação é ainda mais preocupante por os 30 dias de setembro também apresentarem as mesmas caraterísticas. 

Em relação a 1o. de janeiro a 28 de agosto de 2009, quando o Inpe registrou 3.009 focos de calor no Acre, em 2020 o aumento de queimadas é de 10,5% em relação ao mesmo período do ano passado. 

As queimadas típicas desta época do ano na Amazônia - seja para fins de limpeza de roçados e pastagens ou para a queima de floresta recém-desmatada - representam a principal contribuição do Brasil para a emissão de gases do efeito estufa. Além de causar impactos diretos para o meio ambiente e a saúde da população local, estes incêndios causam desequilíbrio no clima de todo o planeta. 


Leia a reportagem completa na agência Amazônia Real  

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Os ventos da fumaça

Passagem de frente fria pode agravar situação da seca e das queimadas no Acre em 2020 


Rio Branco, a capital do Acre, tomada pela fumaça das queimadas (Foto: Sérgio Vale/2020)


@fabiospontes 


A passagem da forte massa de ar polar que derrubou as temperaturas no Acre no fim da semana passada trouxe um certo alívio para a população quanto ao desconforto causado pelo intenso calor, além de ter limpado o ar da fumaça das queimadas. Contudo, por ter sido uma frente fria bastante seca - trazendo pouquíssimo nível de chuvas - ela pode agravar a situação de um “verão amazônico” com previsão de ser um dos mais intensos e secos dos últimos anos. 

Em maio, a agência espacial americana, a Nasa, divulgou estudo apontando que, entre os estados da Amazônia brasileira, o Acre é o que tem a maior probabilidade de ser atingido por incêndios florestais: 85%. O principal motivo para isso, segundo a Nasa, é o aquecimento das águas do Oceano Atlântico, que tem como principal efeito a redução da umidade na parte mais sul da Amazônia e uma concentração maior ao norte.

O fenômeno é conhecido pela sigla em inglês AMO, cuja tradução para o português é Oscilação Multidecadal do Atlântico. Este foi o mesmo fenômeno que levou o Acre a sofrer uma seca severa no ano de 2005, que provocou a queima de 350 mil hectares de floresta em pé. 

Antes da passagem da frente fria, o clima no Acre já estava muito seco por conta do baixo volume de chuvas registrado desde meados de julho. Os fortes ventos gelados que sopraram no estado durante os últimos dias contribuiu ainda mais para se reduzir a umidade relativa do ar, deixando o ambiente bastante seco. Essa baixa umidade é o que os cientistas chamam de estresse hídrico, que cria a “tempestade perfeita” para que queimadas feitas em roçados ou pastagens adentrem na floresta fechada. 

“Toda vez que a gente tem uma friagem, a tendência é que ocorra uma diminuição da umidade. E essa que passou não tivemos grandes chuvas. Há a perspectiva que tenhamos um quadro de piora dos incêndios, na medida em que a umidade vai baixar””, explica o professor e pesquisador da Universidade Federal do Acre (Ufac) William Flores, doutor em Ciências das Florestas Tropicais.  

“Quando falamos em estresse hídrico nós estamos, em tese, falando direta ou indiretamente da redução de umidade no solo que vai causar um prejuízo para o bom funcionamento das plantas, das árvores. Ou seja, teremos um estresse por falta de água.” 

“Uma árvore funciona como se fosse uma bomba d’água. Como todo e qualquer ser vivo, ela usa muita água. Quando você tem muita disponibilidade de água essa bomba funciona de forma positiva. Mas quando temos uma situação de baixa pluviosidade, que é o caso agora, a planta via contribuir para a redução da umidade do solo, ela vai absorver mais água, fazendo com que tenhamos uma condição de seca do solo. Com o soco selo ela vai buscar água no seu entorno, que são os galhos e as folhas ainda úmidas caídas no chão”, completa ele. 

Ao ter sua água puxada pelas árvores, toda vegetação vai secar, transformando-se em material combustível, propenso a pegar fogo. Se antes aquelas folhas e galhos úmidos serviam como barreira para a entrada do fogo feto num roçado próximo, por exemplo, agora há muito mais chances daquela queimada se transformar num incêndio florestal. 

Foram essas as condições ambientais que levaram o Acre a sofrer com grandes incêndios no interior da floresta em 2005 e 2010. Este ano o estado tem conseguido reduzir sua quantidade de focos de queimadas, quando comparado com igual período de 2019, ano em que as queimadas ficaram quase fora de controle. Segundo dados do Inpe, o Acre diminuiu em 20% a quantidade de queimadas detectadas por seus satélites. 

Saber se essa redução vai se manter até o fim da temporada seca que tende a ser mais longa não se sabe. Ainda há o mês inteiro de setembro pela frente, marcado por altas temperaturas e baixa umidade, também marcado por um número elevado de queimadas.  

Mais queimadas representam mais fumaça sendo expelida para o ar respirado pelos acreanos.    


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O interior do Acre está queimando

Municípios com floresta preservadas lideram ranking de queimadas no Acre 



Os dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostram um dado preocupante: o interior do Acre - onde está concentrada a maior área de floresta em pé - está pegando fogo, e muito fogo. No acumulado do ano, o Acre registra 2.120 focos de queimadas. Destes, mais de 80% são detectados em municípios que, até anos atrás, passavam longe das estatísticas de destruição da Amazônia no estado. 

É o caso do isolado Jordão, município cujo acesso só é possível via aérea ou fluvial. Essa dificuldade logística não detém o avanço do desmatamento e do fogo. Até essa segunda, 24, Jordão tinha registrado a mesma quantidade de focos de queimadas do que a capital Rio Branco, cujo entorno já está bastante devastado e tomado por fazendas: 88. 

Logo abaixo de Rio Branco está Marechal Thaumaturgo, outro município isolado cuja área é formada por terras indígenas e unidades de conservação. O município tem 75 focos de calor; são 30 a mais do que Xapuri, localizado em uma área já bastante devastada e pressionada pelo agronegócio. 

Juntos, os municípios dos Vale do Juruá, Purus e Tarauacá/Envira respondem por mais de 80% dos incêndios em vegetação capturados pelos satélites do Inpe em 2020; ressaltando que essas ainda são as regiões mais bem preservadas do Acre, mas que correm sérios riscos de sofrer com a degradação nos próximos anos. 

O campeão de queimadas este ano continua sendo Feijó, após já ocupar as primeiras posições em 2019, o ano do fogo no Acre. São 515 focos já registrados, o que representa 24% do total. 

Logo depois vem a vizinha Tarauacá: 439. Chama a atenção a terceira posição ser ocupada por Cruzeiro do Sul: 160. A capital do Juruá é outra região de floresta muito intacta, e os dados do Inpe acendem o alerta sobre o nível de destruição que avança sobre o município.  

Essa interiorização da destruição não fica apenas às margens de rodovias ou ramais; as margens de rios e igarapés nestes municípios também passam a concentrar grandes áreas queimadas. Com a previsão de um ano mais quente e seco no Acre, a concentração do fogo próximo a área de florestas em pé preocupa diante da possibilidade de ocorrer incêndios florestais, conforme relatei em reportagem para a Amazônia Real: 


Leia:  Florestas do Acre podem ser mais afetadas por incêndios, diz Nasa 


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A violência e o terror se espalham

Facções criminosas ameaçam integridade dos povos indígenas do Acre 


Essa semana, dois jovens Huni Kuin de Feijó foram executados de forma bárbara por integrantes da facção que domina a região do Tarauacá/Envira 


Porto do rio Envira, em Feijó, local de intenso movimento de indígenas no caminho entre cidade e aldeias (Foto: Fabio Pontes/2020)


@fabiospontes 

Além da invasão de seus territórios para retirada de madeira, pesca e caça ilegais, a pressão do desmatamento no entorno para expansão da pastagem e grilagem, as comunidades indígenas do Acre passaram a se ver ameaçadas por outro grave problema: o assédio das facções criminosas. A morte cruel de dois jovens Huni Kuin menores de idade essa semana no município de Feijó é o exemplo da infiltração destas organizações do crime entre uma parcela da população indígena acreana. 

Desde 2016, o Acre enfrenta uma crise de segurança pública por conta da atuação das facções oriundas de São Paulo e do Rio de Janeiro pelo controle da rota internacional do tráfico da droga produzida pela Bolívia e o Peru. Por ter uma extensa faixa de fronteira com estes dois países, o Acre se tornou estratégico para a entrada, no Brasil, da cocaína produzida pelos vizinhos. 

Com a quase ausência das forças policiais nesta faixa de fronteira formada por uma densa selva, os traficantes usam os rios e as trilhas na floresta para o transporte da droga. Outra estratégia de escoamento são os ramais (estradas de terra) que vão de um país a outro. Assim, comunidades ribeirinhas, indígenas e assentamentos passaram a ser assediadas pelas organizações criminosas. 

Cooptar jovens indígenas é visto como estratégico por eles dominarem o modo de sobrevivência no meio de uma floresta hostil. Com as habilidades de quem nasceu e foi criado na mata, eles sabem como poucos andar por dias em caminhos longe dos olhos da polícia.  

Dessa forma se tornam “soldados do crime”, podendo integrar uma das duas principais facções atuantes no Acre: o Comando Vermelho e o B13, grupo local aliado ao Primeiro Comando da Capital (PCC). 

Ao se alistarem neste exército do crime, os jovens indígenas precisam seguir as suas regras de conduta. Desrespeitá-las tem como punição o pagamento com a própria vida - e geralmente uma morte bárbara. É o que pode ter ocorrido com os dois jovens Huni Kuin encontrados mortos na manhã de quinta, 20, às margens do igarapé do Diabinho, entre Feijó e Tarauacá. 

Um deles estava sem a cabeça; o outro com as orelhas cortadas. Os corpos foram encontrados por uma pessoa que passava pelo local e chamou a polícia. De acordo com o comandante da PM de Feijó, tenente Mendonça, as primeiras investigações apontam que os jovens foram mortos por quebra das regras da facção a que pertenciam, o Comando Vermelho. 

Eles foram retirados de suas casas na cidade às nove horas de terça-feira, 18, e achados mortos dois dias depois. Segundo o comandante, dois suspeitos foram presos por participação na execução, entre eles um menor; outros dois estão foragidos, incluindo também um menor de 16 anos. 

Em dezembro, o Comando Vermelho tomou de assalto o município de Tarauacá após, dias antes, ter conquistado 100% o território de Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do Acre. Tarauacá e Feijó são cidades vizinhas, separadas menos de 50 km pela BR-364. Antes dessa invasão a região era controlada pelo B13/PCC. Ter seu domínio é estratégico para o tráfico de cocaína peruana, por os seus rios nasceram no país vizinho.  

É nesta região dos Vales do Juruá e Tarauacá/Envira que se concentram 90% das terras indígenas do Acre e, consequentemente, da população indígena. Por suas aldeias passam os rios mais estratégicos para o tráfico de drogas, deixando-os expostos a atuação destas organizações do crime. 

Em março do ano passado a agência Amazônia Real publicou reportagem mostrando as ameaças a que comunidades indígenas do Acre estavam expostas diante do avanço das facções pela zona rural, após deixar um banho de sangue pelas periferias das cidades acreanas. A reportagem citava a Terra Indígena Katukina/Kaxinawá - de onde eram os jovens executados  - como uma das mais expostas. 

A situação é grave e mostra a necessidade de proteger as populações indígenas e seus territórios da influência destes grupos criminosos que tanto mal têm feito ao Acre nos últimos anos, matando cruelmente centenas de jovens e aterrorizando a população. Que esta chaga urbana não se expanda para as comunidades ribeirinhas e indígenas onde ainda há um pouco de paz. O mal precisa ser cortado pela raiz. 


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Clima para fogo

Florestas do Acre podem ser as mais afetadas por incêndios, diz Nasa 


Margem do rio Gregório, em Tarauacá, queimada em agosto do ano passado (Foto: Sérgio Vale/2019)


O aumento expressivo nas taxas de desmatamento no estado do Acre, as elevadas temperaturas e a previsão de um “verão amazônico” mais seco, fazem dessa porção da Amazônia Ocidental mais vulnerável e a sofrer com incêndios florestais neste ano de 2020. O número de queimadas deste ano na região é 23,5% maior do que o registrado há quatro anos, quando a região estava afetada pelo fenômeno El Niño. De 1º de janeiro a 13 de agosto deste ano, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 1.497 focos de calor no estado contra 1.212 no mesmo de 2016. No igual período de 2019 foram 1.583 focos de calor, que apontam para uma queda de 5,4% nas queimadas.

A situação de 2020 é ainda preocupante diante dos dados levantados por instituições de pesquisas que apontam elevada concentração de desmate e queimadas nas regiões com a maior concentração de floresta nativa.

Em maio, a agência espacial dos Estados Unidos, a Nasa, divulgou estudo apontando que, entre os estados da Amazônia brasileira, o Acre é o que tem a maior probabilidade de ser atingido por incêndios florestais: 85%. O principal motivo para isso, segundo a Nasa, é o aquecimento das águas do Oceano Atlântico, que tem como principal efeito a redução da umidade na parte mais sul da Amazônia e uma concentração maior ao norte.

O fenômeno é conhecido pela sigla em inglês AMO, cuja tradução para o português é Oscilação Multidecadal do Atlântico. Além do Acre, seus efeitos são sentidos no sul do Amazonas, sudoeste do Pará, Mato Grosso e Rondônia. Os departamentos de Pando, na Bolívia, e Madre de Dios, no Peru, também são atingidos. Entre os três países, o departamento boliviano de Santa Cruz de la Sierra tende a ser o mais afetado por fogo em vegetação: 92%.

“A previsão da temporada de incêndios é consistente com o que vimos em 2005 e 2010, quando as temperaturas quentes da superfície do oceano Atlântico geraram uma série de furacões severos e provocaram secas recordes em todo o sul da Amazônia, que culminaram em incêndios florestais generalizados na Amazônia”, disse Doug Morton, chefe do Laboratório de Ciências Biosféricas do Goddard Space Flight, da Nasa, em entrevista publicada no site da agência norte-americana.

“Do ponto de vista das condições meteorológicas a probabilidade é tanto de termos chuvas abaixo da média ou temperaturas acima da média. Então você tem as condições para as ocorrências de algum tipo de incêndio florestal. Temos um cenário propício para isso”, diz Liana O. Anderson, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

“Existe essa relação do aumento da temperatura do oceano Atlântico que acaba deslocando a zona de convergência, que é o grande processo responsável pelas chuvas na Amazônia, um pouquinho mais para o norte. O deslocamento dessa grande massa de chuva que cruza toda região tropical move um pouquinho para o norte, provocando mais chuvas, e a parte sul da Amazônia enfrenta uma seca”, explica ela.

“Com essas condições de seca mais proeminente e tendendo a se agravar nos próximos meses, os riscos de incêndios florestais aumentam bastante”, completa.

O estudo da Nasa levou em consideração para elaborar o risco de incêndio florestal na Amazônia não apenas as condições climáticas causados pelo AMO, como também o histórico recente de desmatamento e registro de focos de queimada dos últimos anos. Em 2019, a maior floresta tropical do mundo concentrou níveis recordes de derrubada e queimadas, tendência que se mantém agora em 2020.

De acordo com o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre janeiro e julho foram emitidos avisos de desmate para uma área de 4.730 km2 na Amazônia Legal.  Entre 1o. de janeiro e 13 de agosto foram 40.059 focos de queimadas na região.



domingo, 16 de agosto de 2020

A estratégia genocida

Se a pandemia matasse todos os índios, eles estariam comemorando, afirma líder Ashaninka sobre governo Bolsonaro 


Na avaliação de Francisco Piyãko, discursos e práticas do atual governo brasileiro passam a impressão de que a morte de indígenas pelo coronavírus seria a estratégia para a apropriação dos territórios tradicionais


"Nós somos muito fortes e estamos muito bem preparados para resistir." (Foto: Governo do Acre)



@fabiospontes 

A ineficiência do governo Jair Bolsonaro (sem partido) em conter o avanço do novo coronavírus sobre as comunidades indígenas do país é uma estratégia para causar o maior impacto possível nestas populações e, assim, pôr fim aos seus territórios tradicionais. Essa é a avaliação da liderança Francisco Piyãko, do povo Ashaninka, do Acre. 

“Qualquer doença que vier para matar os povos indígenas eles vão comemorar. Para eles, seria um ganho muito grande se os povos desaparecessem com esta pandemia”, afirma Piyãko. Até agora ele tem liderado um processo bem-sucedido de contenção do coronavírus entre o povo Ashaninka morador das aldeias da Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, no município acreano de Marechal Thaumaturgo. 

Entre as ações desenvolvidas por eles está a ajuda aos Ashaninka que moram no outro lado da fronteira, no Peru. Os Ashaninka são descendentes do Império Inca e habitam esta região da Amazônia dividida por fronteiras imaginárias pelo colonizador europeu. 

Segundo Francisco Piyãko, não fossem as medidas adotadas pelas próprias populações indígenas para enfrentar a pandemia - como o autoisolamento dentro das aldeias e o uso de tratamentos tradicionais a partir de plantas da floresta - o impacto da Covid-19 teria sido bem mais devastador. “Se não tivéssemos força para suportar esta doença, teria sido um genocídio mesmo.” 

Nesta entrevista ao blog, concedida via ligação por WhatsApp desde uma área Ashaninka conhecida como Centro Yorenka Ãtame, Piyãko ainda comentou sobre a importância dos povos indígenas na preservação da Amazônia em meio ao mais novo avanço da destruição da floresta, com aumento recorde do desmatamento e das queimadas que ameaçam se transformar em grandes incêndios florestais. 


Leia a conversa: 


Quais aprendizados o isolamento social nas aldeias a que os povos indígenas tiveram de se submeter para escapar da pandemia do novo coronavírus trouxeram?    

Piyãko: Eu acho que todos os povos indígenas tiveram oportunidade de perceber a importância que tem o seu território, os seus costumes e tradições. Deu para fazer uma reflexão muito grande, porque por muito tempo tivemos dificuldades de compreender estes valores. Até hoje vivemos uma relação meio que confusa nos negócios ou num meio de vida fora da aldeia. O isolamento nos fez voltar um pouco para entender o porquê de aquele território protegido, rico de alimento, com suas roças tradicionais e seus conhecimentos tradicionais, não sentiram tanto impacto. Tem o seu conhecimento. Sem dependência de fora, então não sentiram tanto o impacto. Agora, aqueles que tinham uma dependência muito forte com a cidade, que viveram muito pouco a sua origem, o seu mundo, eles sentiram mais. Dá para perceber esta diferença. É um momento para uma grande reflexão sobre estes valores, e que talvez sejam uma oportunidade para se reconectar com seus princípios e para a valorização de seu território, para valorizar sua autonomia do ponto de vista do abastecimento e uma série de coisas.


E para os Ashaninkas do Rio Amônea, como está sendo essa experiência?

Piyãko: Na história do povo Ashaninka teve muitos momentos de enfrentamento de situações como esta, e creio que na história de outros povos indígenas também. Teve o tempo do sarampo, da coqueluche, da catapora e outras doenças que apareceram aqui na região e que mataram bastante o nosso povo, quando ainda não tinha vacina. Para enfrentar isso fazia o isolamento e esperava por anos até este tempo passar para poder retomar o contato. Então, agora, o nosso povo tem duas moradas, uma na aldeia e outra de refúgio. Cada família tem uma roça e uma casinha lá num cantinho, e num momento como este vai para este lugar. O que aconteceu agora foi uma demonstração que chamou muita atenção para nossa própria organização. Não esperávamos esta crise. Tivemos que reorganizar nosso comportamento. As famílias, de maneira individual, iam até a sede do município [Marechal Thaumaturgo] para buscar os benefícios de aposentadoria ou Bolsa Família. Então quase todas as famílias iam para a cidade de dois em dois meses. Mas, quando isso [a pandemia] aconteceu, a gente fez uma reunião e foi tomada uma decisão coletiva de que ninguém vinha mais. Enquanto esta doença estiver acontecendo ficou decidido que a organização assumiria o abastecimento através da cooperativa. A cooperativa centralizou todo o abastecimento na aldeia. Qual seria o básico para isso: passar um, dois ou três anos sem ir para a sede. Toda a necessidade de deslocamento será feita através de comissão representando o coletivo. Então a gente fez uma lista de prioridades, como o sal, o isqueiro, coisas básicas. Dez itens atendiam a demanda porque nossa comunidade tem um estoque muito grande [de alimentos a partir dos roçados]. Depende pouquíssimo de fora, de alimento ou vestimentas. Muitas coisas não são necessárias. Historicamente já temos esta estratégia, e até agora isso funcionou. Tanto que a gente não tem nenhum caso lá na aldeia [da Covid-19]. 


Como foi o efeito da pandemia na relação de vocês com os Ashaninkas que vivem na fronteira peruana?

Piyãko: Quando a gente está numa situação de guerra, a gente busca encontrar pessoas que estão lutando por uma mesma causa. O povo lá do Peru também está nesta mesma luta, então nós procuramos fazer reuniões com eles e nos colocamos à disposição para ajudá-los, porque eles estão numa situação difícil. Todos os seus negócios são do lado do Brasil. Eles não têm estradas e nem como receber mercadorias por avião [pelo lado peruano]. Encontramos eles numa situação de não ter o sal, o isqueiro, o básico para sobreviver. Estavam numa aflição muito grande, e nós fizemos uma reunião grande, nos colocamos à disposição e fizemos uma doação de suprimentos para que pudessem atravessar estas dificuldades todas. Eles agradeceram muito e são parceiros nossos. Esta situação não foi a primeira em que os apoiamos. Mas foi muito marcante, pois eles esperavam que nós ficássemos isolados do lado do Brasil e não buscássemos mais contatos. Mas, fizemos o contrário, pois evitamos que a pandemia chegasse até eles e que dali chegasse até nossa comunidade pela fronteira.


Na semana passada, o STF aprovou a ação movida pela Apib obrigando o governo federal a auxiliar os povos indígenas que sofrem com uma estratégia ineficaz de conter o coronavírus nas aldeias. Que avaliação você faz deste momento político em meio a uma crise de saúde?

Piyãko: Falar do governo brasileiro com relação à pandemia é afirmar que ele não levou a sério em momento nenhum. É muito triste ter um governante que não respeitou [as medidas de evitar a proliferação do vírus] e sempre procurou fazer com que muitos o seguissem. O governo tem uma influência muito grande. O que ele fala, sendo ou não verdade, conduz muitas pessoas para um caminho. Deveria ter se colocado numa postura de representar o povo. A gente tem um Ministério da Saúde sem ministro. E um governo que atira para todo lado e ainda querendo responsabilizar os outros. A Apib está atuando para proteger, tenta chamar a responsabilidade do Estado. Porque eu tenho certeza que se não tivéssemos adotado nossas próprias medidas como a gente fez em todas as terras indígenas, seria muito pior, porque o Estado não chegou em nossas terras com medidas preventivas. Foi muito pouco, a gente só lamenta isso.


Então na sua avaliação se os próprios povos não tivessem adotado medidas de proteção a situação seria ainda pior?

Piyãko: Muito pior. A sobrevivência foi baseada na força da natureza. Foi nossa força que salvou muitas vidas, incluindo os que foram contaminados e escaparam. Baseados na força da natureza, nos conhecimentos, nas crenças e na medicina tradicional. Isso nos ajudou muito. Se não tivéssemos força para suportar esta doença teria sido um genocídio mesmo. Teria morrido muito mais gente. Nosso entendimento é o mesmo que a Apib está falando, de que eles queriam que as comunidades fossem contaminadas e se acabassem. Em muitos momentos está clara a posição do governo brasileiro, não de todo o governo, mas dentro da Presidência. Porque se não tivesse os órgãos de defesa dos direitos dos povos indígenas, o Judiciário, o Supremo, o Ministério Público, para defender, nós teríamos pistoleiros em massa entrando nas aldeias paras tomar este território.


Você fala sobre a questão das terras indígenas também? 

Piyãko: Eu sinto que não é simplesmente uma ignorância do governo. Há uma intenção clara. Se a pandemia matasse todos os índios eles estariam comemorando.


O governo Jair Bolsonaro teria interesse no extermínio das populações indígenas para se apropriar de suas terras?

Piyãko: De tudo o que ele falou eu entendo isso. O que ele falou e alguns ministros já falaram, o coronavírus veio de mão cheia para que pudessem botar a mão nas terras. Afirmo a partir da leitura dos discursos do Jair Bolsonaro e todos os ministros que compactuam com a leitura dele. Não tenho outra explicação. Qualquer doença que vier para matar os povos indígenas eles vão comemorar. Está mais que claro que querem isso. Mas, dentro do governo, há as instituições que ainda cumprem seus papéis no que está assegurado no direito dos povos indígenas. Mas a partir da Presidência e de alguns ministros, eles inclusive entraram com um processo de reestruturação na Funai, no Ministério do Meio Ambiente e outras instituições. Eu estou falando do primeiro decreto, de 1º de janeiro de 2019, o que eles falaram sobre as comunidades indígenas. Tem uma clara intenção, sim. Para eles seria um ganho muito grande se os povos desaparecessem com esta pandemia. Para se apropriar do território estão tentando com estratégias e decretos, anular processos de demarcação de terras indígenas. Então é isso. Eu estou falando de leitura que faço, mas se você pegar o histórico do Jair Bolsonaro e dos ministros, vai ver que não acabaram ainda [com os territórios tradicionais] porque temos leis e instituições que estão segurando. Eu não estou inventando isso. A gente está vivendo isso em pleno século 21 a postura deste governo atual, do Jair Bolsonaro. Tudo de ruim que acontecer eles podem comemorar. Esta pandemia se acabasse com as terras eles iam fazer uma grande festa, soltar fogos.


Como os povos indígenas vão sair deste processo? Temos ainda uma pandemia e mais dois anos de Jair Bolsonaro - isso se não for reeleito em 2022.  Qual sua avaliação para o futuro?

Piyãko: Eu acho que o Jair Bolsonaro não vai conseguir acabar com os povos indígenas. Nós somos muito fortes e estamos muito bem preparados para resistir e atravessar, porque eu estou considerando isso uma tempestade que vai passar e o sol vai brilhar mais na frente e vamos viver tempos melhores. Nós vamos sair muito mais fortalecidos porque está juntando duas coisas: a questão ambiental e os povos indígenas estão numa mesma posição em relação ao seu valor de importância. Mas a sociedade brasileira está percebendo, como o mundo está percebendo, o erro que este governo está cometendo. Então é uma reação natural daqueles povos e da sociedade brasileira e do mundo reagir e não permitir que o interesse dele avance. Pois o que está ali não é o interesse do povo, é postura de um presidente com um mandato, e este mandato vai passar. Vamos sair mais fortes, pois nossa aliança passa a ser maior, não vamos permitir que o que conquistamos ao longo do tempo seja derrotado em quatro anos. Só teria um caminho para ele vencer os povos, que seria usar a força do Estado brasileiro e pôr as Forças Armadas para matar os índios, pois de outro jeito não tem. Nós temos os meios. Ninguém está fazendo guerra, se armando para enfrentar o governo, mas temos o meio para colocar para a sociedade brasileira e o mundo o que estamos passando neste governo. 


Nós estamos assistindo a um processo acelerado de destruição da Amazônia no governo Jair Bolsonaro. Qual o papel dos povos indígenas na manutenção desta floresta em pé? 

Piyãko: Já foi provado que os povos indígenas, as florestas e o meio ambiente como um todo nunca tiveram problema. Vivem numa harmonia muito grande. Se tirar a floresta, destruir a floresta, queimar a floresta os povos indígenas vão juntos. Se quiser usar a Amazônia para ajudar na economia do país tem que atualizar a visão para o século 21, sair do século passado. Nós temos muitos recursos. Basta apenas investir em tecnologia, ciência, para que ela produza sem ser destruída. Ela é sustentável. Nós precisamos pensar que a Amazônia é muito produtiva do ponto de vista do ponto de vista econômico também, mas não pode ser pensada para a soja, para o gado, para o garimpo, para o formato que está aí, pois este formato já está ultrapassado. Não existe mais. Nós defendemos um modelo de desenvolvimento econômico que respeite os povos, as tradições da Amazônia   


Os Ashaninka do Amônea fizeram uma Live para arrecadar recursos para auxiliar outras comunidades indígenas e ribeirinhas neste momento de dificuldade ocasionado pela pandemia. Como está a campanha? 

Piyãko: Nossa Campanha Ashaninka Pelos Povos da Floresta tem uma proposta clara, entendemos que a pandemia não vai passar tão cedo, não tem tempo determinado. Baseado nesta realidade e conhecendo a realidade regional entendemos que o apoio não deve ser um sacolão [cesta-básica]. Temos que pensar em um kit que dê mais força e tempo para as pessoas se organizarem e enfrentar esta situação no médio prazo. Isso começa num trabalho interno de passar a se sentir mais responsável por ela própria, e não passar este cuidado, esta responsabilidade, para o governo cuidar deles. A gente está tentando chegar até estas pessoas da floresta que muitas vezes não têm o canal. Não podem colocar a sua voz para atender suas demandas e suas necessidades. A partir desta semana estamos recebendo os primeiros 400 kits e vamos fazer as primeiras entregas. Já atingimos quase 400 mil reais de doações e para nós é uma satisfação muito grande. É muito importante poder circular com este apoio. Tem áreas que a gente vem trabalhando, para que estas regiões contem com nosso apoio. Eles sempre contaram. A gente tem um espaço e a gente estava sentindo que estamos protegidos na nossa casa, nossa terra. A gente quer que toda população da floresta possa viver isso. A gente entende que o isolamento na cidade é cruel, ficar entre quatro paredes, esperando o tempo passar, saindo com medo nas ruas. Numa floresta, basta fechar para que não entrem e saiam, mas a vida dentro é normal, no rio, nas florestas, no roçado, na família. Não tem um isolamento como o da cidade.  


Acesse ao site da campanha Ashaninka 


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Agressão à História

Abandonada, casa de Chico Mendes se deteriora; memória de líder seringueiro é ameaçada


Em Xapuri, casa de Chico Mendes está fechada desde janeiro de 2019

@fabiospontes

Na terra natal do líder seringueiro Chico Mendes, não é só a reserva extrativista que leva seu nome que está ameaçada pelo desmatamento ocasionado pelo avanço da agropecuária e por projetos de leis apresentados pela bancada da motosserra que visam beneficiar o grupo formado pelos maiores desmatadores da unidade. Com o governo Gladson Cameli (PP), a própria História do acreano mais famoso no Brasil e no mundo está em risco. 

Desde que assumiu os rumos políticos do estado em janeiro do ano passado, o atual grupo de partidos tenta destruir tudo aquilo que esteja ligado à preservação da Amazônia e à proteção de suas populações tradicionais. Para eles, tudo isso não passa de coisa de petista. Ainda na visão deles, desprezar estas duas áreas é também uma forma de sepultar a memória de duas décadas de governos do PT no Acre. 

Essa visão estúpida tem se mostrado desastrosa e custado muito caro para o Acre. Em 2019 tivemos o maior registro de desmatamento dos últimos 11 anos - e um dos maiores em queimadas. Com perdão do trocadilho, mas nunca antes nossa imagem lá fora esteve tão queimada como agora. O Acre que servia de exemplo em políticas de proteção da floresta, agora supera o Mato Grosso em devastação. 

Além de pouco fazer para a manutenção da floresta em pé, o governo Gladson Cameli contribui para deixar em último plano a história de vida de uma das pessoas que mais lutaram pela defesa deste patrimônio, que foi Chico Mendes. Desde janeiro do ano passado, a casa de Chico Mendes, em Xapuri, transformada em museu para receber visitantes de todas as partes do mundo, está fechada. 

A gestão estadual decidiu não renovar o contrato que permitia a locação do imóvel pelo governo. O valor do aluguel era repassado para a família de Chico Mendes. Ainda no ano passado procurei o governo para saber se havia a perspectiva de o museu ser reaberto. Informaram-me de que negociações seriam feitas para tal. Quase dois anos depois, a situação é a mesma. 

Semanas atrás estive em Xapuri. A casa permanece fechada, deteriorando-se com a ação do tempo, do sol e da chuva. Os fios de energia que a ligavam ao poste agora estão pendurados na cerca. Sem o pagamento das faturas se acumulam na cerca, a empresa cortou o fornecimento. Para quem já viu e visitou a casa de Chico no auge de seu funcionamento enquanto museu, é desolador se deparar com ela em tal situação. 

O fechamento do imóvel não representa um ataque apenas à memória de Chico Mendes, mas também ao seu legado de lutas que fez o Acre ser conhecido internacionalmente e também o município de Xapuri. A história do filho mais ilustre da cidade a faz (ou fazia) receber dezenas - talvez centenas - de turistas todos os anos, movimentando a economia local. Restaurantes e hospedarias de Xapuri dependem diretamente deste fluxo de turistas em busca de conhecer melhor a vida de Chico Mendes; com a casa fechada, o movimento é zero. 

Outro retrato do desprezo pela região onde nasceu e viveu Chico Mendes é a pousada Cachoeira, no Seringal Cachoeira, onde ocorreram os últimos empates liderados por ele. Abandonada, a pousada vai se deteriorando dentro de uma área de floresta. Uma outra tristeza para quem já viu o apogeu daquele empreendimento. 

O governo pode alegar que a pandemia levou ao fechamento de ambos os lugares. No caso da pousada até pode ser, mas a casa de Chico Mendes está jogada às traças por pura omissão desde o começo do ano passado. Repetindo: este é um ataque não apenas à memória do líder seringueiro, mas à toda história do Acre e de Xapuri. 

Que Gladson Cameli possa rever seus conceitos de governança e pense mais como um estadista. É isso o que o Acre merece.       



Obs: O Ministério Público Federal poderia cobrar providências já que se trata de um patrimônio da União, pois a casa foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional  -  IPHAN.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Fronteira seca - muito seca

Vazante do rio Acre torna ineficaz fechamento da tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru


Fronteira Brasil/Bolívia entre os estados do Acre e Pando, separada pelo igarapé Bahia (Foto: FPontes/2020)



O rio Acre é a demarcação natural da tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru. Contudo, o acesso de um lado ao outro não se dá por via fluvial, mas por uma rodovia - a BR-317 -, as pontes e os ramais, que são as nossas estradas de terra. Essa interligação terrestre entre os países é conhecida como fronteira seca. Com a intensificação do “verão amazônico”, que reduz de forma significativa as chuvas na região, e, consequentemente, o nível dos rios, a fronteira fica ainda mais seca. 

No caso do rio Acre - manancial que depende diretamente da água que cai do céu para ficar num volume seguro para a navegação - nesta época do ano é possível ir de um lado ao outro da fronteira cruzando-o a pé. O nível é tão baixo que as praias às margens quase se conectam ao bancos de areia no leito do manancial. Tal comportamento ocorre com mais frequência nas regiões de cabeceira do rio, onde fica a tríplice fronteira.

Desde 20 de março as fronteiras brasileiras com os vizinhos estão fechadas por conta da pandemia do novo coronavírus. O trânsito de pessoas e veículos está proibido. Nas pontes que conectam um país ao outro apenas barricadas e soldados dos exércitos de ambos os países são vistos. A presença deles é o que impede o fluxo, sobretudo, de pessoas.

Com o nível crítico do rio Acre neste mês de agosto, brasileiros, bolivianos e peruanos conseguem se reconectar atravessando a pé o manancial - longe dos olhos dos guardas. Esta facilidade é também aproveitada pelos imigrantes que há meses esperam pela oportunidade de entrar ou sair do Brasil. Um grupo de venezuelanos mora em barracas montadas na ponte binacional Brasil-Peru, no município de Assis Brasil.

Atingidos em cheio pelo fechamento das fronteiras, traficantes de drogas também aproveitam a conexão geográfica facilitada pelo clima seco para fazer circular suas “mercadorias”. Não à toa a quantidade de drogas apreendidas nos últimos tempos no Acre disparou, após a escassez observada logo nas primeiras semanas após o fechamento das fronteiras. À época escrevi uma reportagem para a piauí relatando o caso.

O fechamento da tríplice fronteira causa muitos transtornos para os moradores da região conhecida como MAP, que é a sigla para Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia). Cobija, a capital do departamento de Pando, é a mais afetada por depender diretamente das integração econômica com as cidades acreanas de Brasileia e Epitaciolândia. Parte dos alimentos consumido na cidade de 100 mil pessoas sai dos mercados do outro lado da fronteira. 

A fronteira Pando-Acre também depende do turismo para movimentar sua economia. Muitos brasileiros vão a Cobija para comprar bugigangas baratas em Cobija, além de buscar atendimento médico mais em conta. Na capital de Pando também há faculdades de medicina onde estudam dezenas de brasileiros.

Com os guardas impedindo o vaivém de pessoas pelas passagens oficiais da fronteira, muitos se arriscam a atravessar o rio Acre e igarapés que separam um país do outro. Com a escassez de chuvas típica de agosto, é possível fazer a travessia internacional como a “água nas canela”, como diz o bom acreanês.

Segundo o boletim desta segunda-feira, 6, da Sala de Situação mantida pelo governo para acompanhar o nível dos rios e a quantidade de queimadas no estado, o rio Acre, em Brasíleia, atingiu a marca de 1,30m, o que o deixa em situação de alerta máximo por conta da vazante. O boletim não apresenta a medição em Assis Brasil, onde está a cabeceira do manancial.

A previsão para o trimestre julho-agosto-setembro do Instituto Nacional de Meteorologia (inmet) aponta uma probabilidade de chuvas abaixo do normal para o período na região da Bacia do Rio Acre; ou seja, com menos chuva o nível do rio vai descer ainda mais. Sinal nada bom, já que ele é a única fonte de abastecimento de água para 70% dos moradores do estado.

Se houver um colapso no fornecimento de água por aqui, bom seria que o governo brasileiro liberasse as fronteiras para sairmos por aí em busca de uma fonte. Aliás, creio ser muito difícil algum de nossos vizinhos aceitar a presença de pessoas oriundas de um país que é um dos epicentros do coronavírus no mundo.

Só nos resta fazer a dança da chuva para não morrermos de sede na pandemia...
    

Leia também: Destruição da Resex Chico Mendes ameaça acesso à água potável de quase 70% dos acreanos 

domingo, 9 de agosto de 2020

Um ano de fogo

Avanço do desmatamento e tempo seco fazem do Acre o mais propício para incêndios florestais

Área desmatada e queimada na Resex Chico Mendes, em Xapuri (Foto: Fabio Pontes/2019)

 

@fabiospontes

O ano de 2005 ainda está fresco na memória dos acrianos como um dos mais críticos quando o assunto são os meses de estiagem, que têm como uma de suas principais características as queimadas que destroem dezenas de quilômetros quadrados de vegetação, piorando a qualidade do ar numa época marcada pela baixa umidade. Há exatos 15 anos, o Acre vivia um de seus “verões amazônicos” mais intensos e trágicos.

Pelas cidades, os dias quase se transformavam em noite pela fumaça das queimadas que encobria o sol. Com os longos dias sucessivos sem chuva, o fogo que era usado para a limpeza dos roçados não encontrava dificuldades para se alastrar pelo interior da floresta cheia de vegetação seca.

Em 2005, o Acre teve 350 mil hectares de floresta em pé atingidos pelo fogo. Agora, em 2020, o Acre e todo o Sul da Amazônia podem voltar a viver uma tragédia ambiental como a de 15 anos atrás. Ao menos é o que aponta estudo da Nasa, a agência espacial norte-americana.

 Coordenador do Setor de Estudos de uso da Terra e Mudanças Globais (SETEM), da Universidade Federal do Acre, o ecólogo Foster Brown diz que o padrão climático de 2020 é semelhante ao das secas severas de 2005 e 2010. Para ele, apenas se houver algum nível de chuva a partir da segunda quinzena de agosto pode se amenizar os impactos do fogo, reduzindo os riscos de incêndios florestais.

O “verão amazônico” na porção mais sul do bioma costuma ocorrer entre maio e setembro, sendo seu pico de agosto a setembro. E é justamente nesses meses que as queimadas ocorrem com mais intensidade. Com os dias acumulados sem chuvas ou chuvas escassas, a vegetação está seca e no ponto ideal para ser queimada. As temperaturas altas mais a baixa umidade do ar também ajudam o fogo a agir com mais poder de destruição. 

“Tudo indica que vamos ter muitas queimadas. Se a floresta aguenta e não deixa o fogo entrar seria excelente. Mas se a seca se prolonga até o ponto em que a floresta fica suscetível, os incêndios nas áreas de derrubada vão penetrar e queimar grandes áreas de floresta”, diz Brown.

Entre os estados da Amazônia brasileira, segundo a Nasa, o Acre é o que apresenta o mais elevado nível de risco de queimadas descontroladas por conta do ambiente atmosférico, ocasionado pelo aquecimento do Atlântico: 85%. Em seguida estão Pará e Mato Grosso (82%), Rondônia (80%) e Amazonas (63%).
Recordes de desmatamento

Em 2020, a situação climática é agravada pelos níveis recordes de desmatamento da Amazônia detectados desde 2019, impulsionados pelo desmonte da política de proteção ambiental promovido pelo governo Jair Bolsonaro. Esta mesma postura foi seguida pelo atual governo acriano, que tem como sua principal política econômica para o estado o fortalecimento do agronegócio.

O resultado foi o incremento da área de floresta destruída, alcançado a marca de 706,75 km², o pior resultado dos últimos 11 anos na série histórica do Prodes/Inpe. 

Em 2020, a tendência de alta de derrubadas se mantém. De acordo com o Sistema de Alerta de Desmatamento em Tempo Real (Deter), também do Inpe, os avisos de desmatamento no Acre entre 1º de janeiro e 31 de julho representam uma área de 197,58 km².


Nova fronteira do desmatamento

O que chama a atenção é o “deslocamento” da concentração da área desmatada. Nos últimos tempos, a região com maior concentração de floresta destruída saiu do Leste do estado para o Centro e o Oeste. Essa mudança é preocupante por ser os Vales do Juruá e Tarauacá/Envira os que ainda apresentam a maior área de floresta preservada no estado.

Em 2019, os municípios de Feijó, Sena Madureira e Tarauacá foram os campeões no registro de focos de queimadas, com 1078, 856 e 722 focos, respectivamente. Em todo o Acre, foram 6.802 focos de calor detectados pelos satélites do Inpe. Estimativas apontam que 180 mil hectares de vegetação se transformaram em cinzas.

No acumulado de 2020 (até 6 de agosto), o estado tinha 830 focos, ocupando a oitava posição na Amazônia Legal. Tarauacá (182) e Feijó (141) voltam a liderar o ranking.

“Diante das projeções da Nasa de um ambiente propício para a propagação do fogo estamos preocupados que estas queimadas feitas em roçados ou para limpeza das áreas desmatadas saiam do controle e adentrem a floresta”, diz a pesquisadora Sonaira Silva, da Universidade Federal do Acre (Ufac). Ela é coordenadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama), que monitora os níveis de desmatamento e queimadas no estado, além da poluição do ar provocada pela fumaça.

 “Quando eu começo a analisar o que aconteceu no ano passado [em termos de desmate], o que aconteceu já em 2018 e o que está acontecendo agora em 2020, eu acho que a situação será muito pior”, afirma Sonaira.

Essa avaliação pessimista se dá exatamente por conta da nova fronteira do desmatamento no Acre.

Ameaça em região isolada da floresta

A Reserva Extrativista Alto Juruá é o exemplo do risco de o fogo sair do controle e entrar numa área de floresta intacta. Em 2019, segundo o Inpe, a unidade de conservação teve 8,46 km² desmatados. Durante os 12 meses do ano passado, a Resex teve 139 focos de queimada. Impacto que ocorre numa das regiões mais isoladas da Amazônia.

“Já está faltando chuva nesta região desde o último mês. Com a previsão da Nasa de que teremos agosto e setembro com chuvas baixas, estamos nos preparando para mapear incêndio florestal de novo este ano, e numa proporção maior”, diz Sonaira. Os incêndios florestais são aqueles que ocorrem no interior da mata fechada, enquanto as queimadas são em roçados, pastagens ou áreas desmatadas.

De acordo com Sonaira, a única forma de conter os incêndios florestais é a ocorrência de chuvas, mas que não conteriam as queimadas para os fins agrícolas. Dados da Sala de Situação mantida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente apontam os municípios dos Vales do Tarauacá/Envira, Juruá e Purus como de risco alto e crítico para o fogo. Essa medição é feita com base no número sucessivo de dias sem chuvas.

Em 2020, o nível de chuvas no Acre ficou abaixo da média no período do “inverno amazônico”, que são os meses chuvosos de outubro a março. “O clima está mudando. Teve um evento anormal entre janeiro e março. Teve uma onda de calor muito forte, ocasionando uma interrupção nas chuvas. Já em janeiro observamos focos de calor em campo”, afirma a professora da Ufac.


Estratégias de combate ao fogo

Um dos resultados dos trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores do LabGAMA e do SETEM é fornecer informações às autoridades ambientais do estado e federais sobre as áreas mais críticas de desmatamento e risco de fogo no Acre. A partir destes levantamentos, os órgãos de fiscalização podem definir suas estratégias de ações, coibindo o problema onde de fato ocorre.

Na última segunda-feira, 3, o governo estadual lançou a operação Focus II, reunindo a Secretaria de Meio Ambiente (Sema), o Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac), Corpo de Bombeiros e Batalhão de Polícia Ambiental (BPA). Um dos focos é combater o desmate e a queima para a invasão de terras públicas, crime que se intensificou nos últimos três anos.

As ações federais no estado se resumem à Operação Verde Brasil 2, liderada pelo Exército. Até o momento, porém, não se tem observado atividades de grandes impactos. A principal atuação dos militares é garantir a escolta de agentes do ICMBio e Ibama em suas ações de fiscalização nas Unidades de Conservação federais, em especial a Resex Chico Mendes, bastante pressionada pelo avanço da pecuária e a venda ilegal de lotes de terra.


Queimadas de 2005: dia virava noite


Uma das áreas de floresta do Acre mais atingidas em 2005 foi a Reserva Extrativista Chico Mendes, no sudeste do estado. Do céu se via o fumaceiro a sair pelas copas das árvores. No chão, bombeiros e brigadistas tentavam controlar as chamas.

Morador da unidade de conservação, Júlio Barbosa de Aquino vivenciou o grande incêndio de 2005. Segundo ele, o fogo se estendeu durante todo o mês de setembro, sendo controlado apenas em outubro com o início das primeiras chuvas. Ele lembra que o incêndio dentro da mata começou a partir das pequenas queimadas nos roçados dos seringais. 

“O incêndio de 2005 foi causado, grande parcela dele, de forma acidental, se alastrou e perdemos o controle. Tinha mais de 200 brigadistas lutando contra o fogo, mais as pessoas da comunidade, mas naquele ano a seca estava muito forte”, diz ele, que hoje preside o Conselho Nacional das Populações Extrativistas, o antigo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS).

Júlio Barbosa diz que os extrativistas aprenderam com a lição de 15 anos atrás. “Eu acho que estamos vivendo um cenário diferente de 2005. Apesar de ter a pressão muito grande do desmatamento, também há o receio de muita gente quanto ao uso do fogo. No meu entendimento há uma consciência maior”, diz. A apreensão de que as previsões de risco se concretizem e que grandes incêndios voltem a castigar a Reserva serão postas à prova nas próximas semanas.


Veja imagens de satélites e gráficos completos na página do InfoAmazônia


domingo, 2 de agosto de 2020

A fronteira da insensatez

Projetos de infraestrutura e extração predatória ameaçam isolamento de índios na Amazônia


Fronteira do Brasil com Peru - onde há um dos maiores registros de indígenas isolados - é uma das mais cobiçadas para a construção de estradas; hoje a  região já sofre com os impactos causados pela exploração descontrolada da madeira e de minérios.  



Registro de índios isolados na fronteira do Brasil com o Peru; mesmo de difícil acesso, região é cobiçada por atividades de alto impacto (Foto: Gleilson Miranda/2009)




O isolamento a que muitos povos indígenas da Amazônia escolheram viver para fugir dos massacres de séculos de colonização para a exploração econômica da região aparenta não ser mais suficiente para protegê-los dos impactos causados pelo “avanço da modernidade”, o que inclui o surgimento de doenças que provocam pandemias. Os últimos homens e mulheres que optam por viver longe do “mundo civilizado” - em lugares remotos da Floresta Amazônica - são exemplo do lado perverso da globalização sem fronteiras - e sem escrúpulos. 

Os projetos de infraestrutura e de exploração dos recursos naturais (da madeira aos minérios) na fronteira do Brasil com o Peru pressionam essas populações em isolamento voluntário, colocando em risco seus territórios e, consequentemente, sua sobrevivência.

A estes fatores, agora, soma-se a pandemia do novo coronavírus, que, graças à ineficiência do governo brasileiro de implementar uma estratégia nacional de enfrentamento à Covid-19, vai se espalhando pelos locais mais distantes do país, sendo uma ameaça real aos índios isolados.

Além de contaminar e causar centenas de mortes entre os indígenas já contactados, o coronavírus pode chegar aos grupos que vivem em isolamento, cujo efeito seria o extermínio. Para essas pessoas, uma simples gripe já poderia levar à morte, quanto mais o contágio de um vírus que mata, em questão de dias, jovens saudáveis e pessoas com histórico de atleta. 

Para os céticos (ou negacionistas) a questão é: se vivem em isolamento no meio da selva e com comportamento “arredio”, como o coronavírus poderia alcançá-los? O isolamento não significa necessariamente que estejam impedidos de manter certas interações com aldeias de terras indígenas demarcadas ou com comunidades ribeirinhas. Quando precisam reforçar a alimentação ou buscar tecnologias que ajudem em sua vida na floresta (como facões, machados, enxadas e panelas) eles vão buscar nestes vilarejos.

Como já há casos de morte e infectados em aldeias de terras indígenas do Acre próximas onde ocorre o registro de isolados, eles podem acabar levando utensílios que estejam contaminados. Uma contaminação não necessariamente com o coronavírus, mas com outros vírus ou bactérias que teriam efeitos tão devastadores em seus organismos quanto o atual que já matou mais de 600 mil pessoas no mundo. 

E o risco de isso acontecer é alto diante dos relatos de aproximações mais frequentes nestas regiões remotas, mas povoadas e com pessoas doentes. É o caso da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, no município acreano de Feijó. Lá, há o registro de uma morte suspeita por Covid-19 e de 14 casos confirmados até agora. As cabeceiras do rio Humaitá são onde há elevados vestígios da presença de isolados.

Outra Ti com relatos da presença ou passagem de isolados é a Mamoadate, com 36 testados positivos com Covid-19, e a Kaxinawá Rio Jordão, com 15. Em todo o Acre já são mais de 1.000 indígenas infectados, com 23 mortes, segundo levantamento da Comissão Pró-Índio (CPI).


Contatos mais constantes

Se antes a aproximação ocorria com mais intensidade nos meses secos do “verão amazônico”  - quando os rios estão em vazante e é mais fácil de se locomover pelas praias formadas nas margens - agora os povos indígenas isolados estão “andando de inverno a verão", conforme o relato de uma liderança Huni Kuin morador da TI Kaxinawá do Rio Humaitá.

“Eles [os Huni Kuin] têm uma casa de monitoramento nas cabeceiras do Rio Humuitá  com roçados diversificados, onde deixam algumas ferramentas como enxadas e terçados. Isso é uma forma que encontraram para evitar a aproximação dos isolados nas aldeias”, diz José Frank, pesquisador da Comissão Pró-Índio (CPI) do Acre.

Ele desenvolve projetos para monitoramento e proteção da TI Kaxinawá do Rio Humaitá e dos isolados do entorno. Os aldeados fazem o monitoramento nesta região das cabeceiras de três a quatro vezes por ano para saber como está sendo a ida dos isolados até lá. Os Huni Kuin também trabalham com as comunidades ribeirinhas não-indígenas sobre a conscientização sobre os cuidados para eventual aparição dos isolados.

De acordo com José Frank, a estratégia dos Huni Kuin é a política do não contato com seus “parentes isolados”, como eles se referem aos seus vizinhos. Apesar de todas essas cautelas, Frank avalia que estes grupos não estão de todo protegidos. Alguns deles têm características quase nômades, com deslocamentos constantes nesta faixa fronteiriça do Brasil com o Peru.

“Os isolados perambulam não só pela Kaxinawá do Rio Humaitá. Eles andam muito. O deslocamento deles são de dezenas de quilômetros quadrados. Eles sabem onde fica tudo naquela região, as fazendas, as aldeias na região do Muru, do Envira. O risco é alto, é preocupante”, avalia ele.

Este risco se eleva à medida em que há o aumento de casos confirmados da Covid-19 entre as aldeias próximas. Para Frank, a estratégia dos Huni Kuin e de outros povos que habitam as cabeceiras dos rios acreanos de manter o menor contato possível com os parentes isolados é o que o pode evitar o contágio.


Ameaças sem fronteiras  

 
A fronteira do Acre com o Peru é uma das regiões com maior registro da presença de índios em isolamento voluntário da Amazônia e também do mundo. Na última década, muitos grupos que habitavam o lado peruano da fronteira migraram para o Brasil fugindo das pressões e ameaças resultantes da retirada desenfreada de madeira e da exploração minerária. As florestas acreanas protegidas por territórios indígenas demarcados e unidades de conservação passaram a ser um refúgio para estes grupos. 

As cabeceiras dos rios, que ficam em regiões de difícil acesso e com viagens que duram dias, passaram a ser os pontos mais comuns de avistamento dos isolados em monitoramento por avião - como os registros da fotografia que ilustra a reportagem feitas entre 2008 e 2011.

No Acre há quatro territórios oficiais de proteção aos grupos em isolamento voluntário: Terra Indígena (TI) Kampa e Isolados do Rio Envira, TI Alto Tarauacá, TI Riozinho do Alto Envira e o Igarapé Taboca Alto Tarauacá (esta última terra se encontra em processo de demarcação).

Segundo a CPI, juntas essas áreas somam 636 mil hectares. No Acre eles também se espalham pela linha de fronteira com o Peru pelos municípios de Jordão, Marechal Thaumaturgo e Mâncio Lima, no Vale do Juruá, estendendo-se pelo Amazonas no Vale do Javari, outra região com bastante presença dos isolados.

A fronteira sul entre Brasil e Peru tem o grupo em isolamento identificado como Mashco Piro. Do lado brasileiro sua presença é observada na Terra Indígena Mamoadate, que é o maior território indígena acreano, com 313 mil hectares.

Nesta região a principal ameaça para os povos isolados e da preservação da Floresta Amazônica como um todo é o projeto para a construção de uma rodovia entre Puerto Esperanza e Iñapari, cidades que ficam no departamento de Madre de Dios. No Peru, seu traçado passará dentro de áreas destinadas aos povos indígenas - incluindo os isolados - mais o Parque Nacional Alto Purus.

Do lado brasileiro ela estará muito próximo aos limites das Terras Indígenas Cabeceira do Rio Acre e Mamoadate, mais as unidades de conservação Estação Ecológica do Rio Acre e o Parque Estadual Chandless.  

Como se pode observar a partir destes projetos e daquilo já em execução, é possível constatar que viver em locais remotos, de escasso acesso, não deixa essas populações livres do avanço de atividades econômicas realizadas de forma predatória. Todos estes “investimentos” para a Amazônia têm o apoio dos políticos e empresários de ambos os lados da fronteira em nome de uma integração econômica entre os dois mercados.

Se até bem pouco tempo atrás o lado brasileiros da fronteira podia ser visto como seguro para os isolados, essa segurança ruiu desde a ascensão de políticos com uma visão anti-indígena e antiambiental no país e nos estados do Norte a partir de 2019. O lado acreano, por exemplo, já não pode mais ser tido tão seguro assim para suas populações tradicionais nem as em isolamento. 

O afrouxamento das políticas de proteção ambiental tanto pelo governo federal quanto pelo estadual contribuem para o aumento do desmatamento e das queimadas no estado, incluindo áreas estavam livres destes impactos. Além disso, projetos para a construção de estradas em locais que hoje são santuários de biodiversidade na Amazônia colocam em risco a preservação da Amazônia.

O projeto para construir uma rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, a segunda maior do Acre, e Pucallpa, capital do departamento peruano de Ucayali, é aquela que mais pode causar danos irreparáveis para uma das áreas mais intactas da maior floresta tropical do mundo, com registro da presença e passagem de grupos isolados. A estrada já causará impactos em uma terra indígena demarcada, a dos Puyanawa.

Além da retirada agressiva de madeira do lado peruano, de garimpos clandestinos e a entrega de áreas de floresta pelo governo do país vizinho a grandes multinacionais da mineração, projetos para a construção de rodovias dos dois lados da fronteira e o aumento do desmatamento para o avanço do agronegócio são os principais fatores a exercer pressão sobre os povos isolados da Amazônia.

Essas pressões acabam levando a migrações forçadas, empurrando-os para áreas mais próximas ao contato com o “homem branco” e indígenas já contactados, deixando-os vulneráveis a confrontos e contágio com doenças que levariam ao seu extermínio. Todos estes cenários de ameaças precisam chamar a atenção da comunidade internacional em um momento tão frágil para a proteção da Amazônia.