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domingo, 2 de agosto de 2020

A fronteira da insensatez

Projetos de infraestrutura e extração predatória ameaçam isolamento de índios na Amazônia


Fronteira do Brasil com Peru - onde há um dos maiores registros de indígenas isolados - é uma das mais cobiçadas para a construção de estradas; hoje a  região já sofre com os impactos causados pela exploração descontrolada da madeira e de minérios.  



Registro de índios isolados na fronteira do Brasil com o Peru; mesmo de difícil acesso, região é cobiçada por atividades de alto impacto (Foto: Gleilson Miranda/2009)




O isolamento a que muitos povos indígenas da Amazônia escolheram viver para fugir dos massacres de séculos de colonização para a exploração econômica da região aparenta não ser mais suficiente para protegê-los dos impactos causados pelo “avanço da modernidade”, o que inclui o surgimento de doenças que provocam pandemias. Os últimos homens e mulheres que optam por viver longe do “mundo civilizado” - em lugares remotos da Floresta Amazônica - são exemplo do lado perverso da globalização sem fronteiras - e sem escrúpulos. 

Os projetos de infraestrutura e de exploração dos recursos naturais (da madeira aos minérios) na fronteira do Brasil com o Peru pressionam essas populações em isolamento voluntário, colocando em risco seus territórios e, consequentemente, sua sobrevivência.

A estes fatores, agora, soma-se a pandemia do novo coronavírus, que, graças à ineficiência do governo brasileiro de implementar uma estratégia nacional de enfrentamento à Covid-19, vai se espalhando pelos locais mais distantes do país, sendo uma ameaça real aos índios isolados.

Além de contaminar e causar centenas de mortes entre os indígenas já contactados, o coronavírus pode chegar aos grupos que vivem em isolamento, cujo efeito seria o extermínio. Para essas pessoas, uma simples gripe já poderia levar à morte, quanto mais o contágio de um vírus que mata, em questão de dias, jovens saudáveis e pessoas com histórico de atleta. 

Para os céticos (ou negacionistas) a questão é: se vivem em isolamento no meio da selva e com comportamento “arredio”, como o coronavírus poderia alcançá-los? O isolamento não significa necessariamente que estejam impedidos de manter certas interações com aldeias de terras indígenas demarcadas ou com comunidades ribeirinhas. Quando precisam reforçar a alimentação ou buscar tecnologias que ajudem em sua vida na floresta (como facões, machados, enxadas e panelas) eles vão buscar nestes vilarejos.

Como já há casos de morte e infectados em aldeias de terras indígenas do Acre próximas onde ocorre o registro de isolados, eles podem acabar levando utensílios que estejam contaminados. Uma contaminação não necessariamente com o coronavírus, mas com outros vírus ou bactérias que teriam efeitos tão devastadores em seus organismos quanto o atual que já matou mais de 600 mil pessoas no mundo. 

E o risco de isso acontecer é alto diante dos relatos de aproximações mais frequentes nestas regiões remotas, mas povoadas e com pessoas doentes. É o caso da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, no município acreano de Feijó. Lá, há o registro de uma morte suspeita por Covid-19 e de 14 casos confirmados até agora. As cabeceiras do rio Humaitá são onde há elevados vestígios da presença de isolados.

Outra Ti com relatos da presença ou passagem de isolados é a Mamoadate, com 36 testados positivos com Covid-19, e a Kaxinawá Rio Jordão, com 15. Em todo o Acre já são mais de 1.000 indígenas infectados, com 23 mortes, segundo levantamento da Comissão Pró-Índio (CPI).


Contatos mais constantes

Se antes a aproximação ocorria com mais intensidade nos meses secos do “verão amazônico”  - quando os rios estão em vazante e é mais fácil de se locomover pelas praias formadas nas margens - agora os povos indígenas isolados estão “andando de inverno a verão", conforme o relato de uma liderança Huni Kuin morador da TI Kaxinawá do Rio Humaitá.

“Eles [os Huni Kuin] têm uma casa de monitoramento nas cabeceiras do Rio Humuitá  com roçados diversificados, onde deixam algumas ferramentas como enxadas e terçados. Isso é uma forma que encontraram para evitar a aproximação dos isolados nas aldeias”, diz José Frank, pesquisador da Comissão Pró-Índio (CPI) do Acre.

Ele desenvolve projetos para monitoramento e proteção da TI Kaxinawá do Rio Humaitá e dos isolados do entorno. Os aldeados fazem o monitoramento nesta região das cabeceiras de três a quatro vezes por ano para saber como está sendo a ida dos isolados até lá. Os Huni Kuin também trabalham com as comunidades ribeirinhas não-indígenas sobre a conscientização sobre os cuidados para eventual aparição dos isolados.

De acordo com José Frank, a estratégia dos Huni Kuin é a política do não contato com seus “parentes isolados”, como eles se referem aos seus vizinhos. Apesar de todas essas cautelas, Frank avalia que estes grupos não estão de todo protegidos. Alguns deles têm características quase nômades, com deslocamentos constantes nesta faixa fronteiriça do Brasil com o Peru.

“Os isolados perambulam não só pela Kaxinawá do Rio Humaitá. Eles andam muito. O deslocamento deles são de dezenas de quilômetros quadrados. Eles sabem onde fica tudo naquela região, as fazendas, as aldeias na região do Muru, do Envira. O risco é alto, é preocupante”, avalia ele.

Este risco se eleva à medida em que há o aumento de casos confirmados da Covid-19 entre as aldeias próximas. Para Frank, a estratégia dos Huni Kuin e de outros povos que habitam as cabeceiras dos rios acreanos de manter o menor contato possível com os parentes isolados é o que o pode evitar o contágio.


Ameaças sem fronteiras  

 
A fronteira do Acre com o Peru é uma das regiões com maior registro da presença de índios em isolamento voluntário da Amazônia e também do mundo. Na última década, muitos grupos que habitavam o lado peruano da fronteira migraram para o Brasil fugindo das pressões e ameaças resultantes da retirada desenfreada de madeira e da exploração minerária. As florestas acreanas protegidas por territórios indígenas demarcados e unidades de conservação passaram a ser um refúgio para estes grupos. 

As cabeceiras dos rios, que ficam em regiões de difícil acesso e com viagens que duram dias, passaram a ser os pontos mais comuns de avistamento dos isolados em monitoramento por avião - como os registros da fotografia que ilustra a reportagem feitas entre 2008 e 2011.

No Acre há quatro territórios oficiais de proteção aos grupos em isolamento voluntário: Terra Indígena (TI) Kampa e Isolados do Rio Envira, TI Alto Tarauacá, TI Riozinho do Alto Envira e o Igarapé Taboca Alto Tarauacá (esta última terra se encontra em processo de demarcação).

Segundo a CPI, juntas essas áreas somam 636 mil hectares. No Acre eles também se espalham pela linha de fronteira com o Peru pelos municípios de Jordão, Marechal Thaumaturgo e Mâncio Lima, no Vale do Juruá, estendendo-se pelo Amazonas no Vale do Javari, outra região com bastante presença dos isolados.

A fronteira sul entre Brasil e Peru tem o grupo em isolamento identificado como Mashco Piro. Do lado brasileiro sua presença é observada na Terra Indígena Mamoadate, que é o maior território indígena acreano, com 313 mil hectares.

Nesta região a principal ameaça para os povos isolados e da preservação da Floresta Amazônica como um todo é o projeto para a construção de uma rodovia entre Puerto Esperanza e Iñapari, cidades que ficam no departamento de Madre de Dios. No Peru, seu traçado passará dentro de áreas destinadas aos povos indígenas - incluindo os isolados - mais o Parque Nacional Alto Purus.

Do lado brasileiro ela estará muito próximo aos limites das Terras Indígenas Cabeceira do Rio Acre e Mamoadate, mais as unidades de conservação Estação Ecológica do Rio Acre e o Parque Estadual Chandless.  

Como se pode observar a partir destes projetos e daquilo já em execução, é possível constatar que viver em locais remotos, de escasso acesso, não deixa essas populações livres do avanço de atividades econômicas realizadas de forma predatória. Todos estes “investimentos” para a Amazônia têm o apoio dos políticos e empresários de ambos os lados da fronteira em nome de uma integração econômica entre os dois mercados.

Se até bem pouco tempo atrás o lado brasileiros da fronteira podia ser visto como seguro para os isolados, essa segurança ruiu desde a ascensão de políticos com uma visão anti-indígena e antiambiental no país e nos estados do Norte a partir de 2019. O lado acreano, por exemplo, já não pode mais ser tido tão seguro assim para suas populações tradicionais nem as em isolamento. 

O afrouxamento das políticas de proteção ambiental tanto pelo governo federal quanto pelo estadual contribuem para o aumento do desmatamento e das queimadas no estado, incluindo áreas estavam livres destes impactos. Além disso, projetos para a construção de estradas em locais que hoje são santuários de biodiversidade na Amazônia colocam em risco a preservação da Amazônia.

O projeto para construir uma rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, a segunda maior do Acre, e Pucallpa, capital do departamento peruano de Ucayali, é aquela que mais pode causar danos irreparáveis para uma das áreas mais intactas da maior floresta tropical do mundo, com registro da presença e passagem de grupos isolados. A estrada já causará impactos em uma terra indígena demarcada, a dos Puyanawa.

Além da retirada agressiva de madeira do lado peruano, de garimpos clandestinos e a entrega de áreas de floresta pelo governo do país vizinho a grandes multinacionais da mineração, projetos para a construção de rodovias dos dois lados da fronteira e o aumento do desmatamento para o avanço do agronegócio são os principais fatores a exercer pressão sobre os povos isolados da Amazônia.

Essas pressões acabam levando a migrações forçadas, empurrando-os para áreas mais próximas ao contato com o “homem branco” e indígenas já contactados, deixando-os vulneráveis a confrontos e contágio com doenças que levariam ao seu extermínio. Todos estes cenários de ameaças precisam chamar a atenção da comunidade internacional em um momento tão frágil para a proteção da Amazônia.     



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