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quinta-feira, 23 de julho de 2020

Nokun Txai

Produção acreana sobre povos indígenas será exibida em plataforma da Amazon



Bastidores da gravação de Nokun Txai, produção acreana disponível em plataforma da Amazon (Foto: Talita Oliveira)


@fabiospontes


A produção cinematográfica Nokun Txai, que mostra um pouco da riqueza e da diversidade cultural das populações indígenas acreanas, poderá ser assistida numa das maiores exibidoras streaming de filme do mundo, a Prime Video.  A veiculação da série pela plataforma da Amazon é vista como um reconhecimento aos povos tradicionais da Amazônia num dos momentos maiores ofensivas de retirada de seus direitos, e da elevada vulnerabilidade a que estão expostos na pandemia do novo coronavírus.

São 13 episódios de 26 minutos cada, retratando o modo de vida tradicional e contemporâneo dos povos indígenas, incluindo as mobilizações pela não retirada de direitos em movimentos pelo Brasil e o exterior. Entre os episódios há o com o povo Puyanawa, de Mâncio Lima, cujo o patriarca, Mário Puyanawa, morreu vítima da Covid-19.

O filme retrata como os Puyanawa tentam recuperar seu modo de vida e espiritualidade ancestral após décadas de escravização e imposição da “cultura ocidental” nos seringais amazônicos.

O episódio tem como pano de fundo a realização de uma das principais festas Puyanawa, o Festival Atsa, que é a recuperação do consumo da caiçuma - a bebida fermentada da macaxeira. O processo de produção da Nokun Txai teve a participação direta dos protagonistas. O episódio Beiradão, por exemplo, contou com a co-direção do cineasta Huni Kuin Zezinho Yube.

Nele é retratado como parte dos indígenas de Tarauacá passa por uma escravização dos tempos modernos, ao ter seus cartões para saques dos benefícios sociais - como o Bolsa Família - retidos por alguns comerciantes da cidade, que são chamados por eles de “patrões”, remetendo aos tempos das relações servis dos seringais no século passado.

“Junto com os indígenas pensamos quais eram os temas mais relevantes para tratarmos. A ideia era fazer uma série que não partisse do exotismo, só do ritual, mas também que pudéssemos fazer um recorte da cultura indígena a partir do contemporâneo, do encontro de universos”, explica o diretor da Nokun Txai, Sérgio de Carvalho. Os produtores também buscaram orientações com os principais indigenistas do Acre, entre eles Terri Aquino e José Meireles.

“Essa exibição pela Amazon é importante porque é um filme acreano, uma produção amazônica. É uma afirmação de uma produção amazônica. E neste momento de perda de direitos, com a ampliação dessa visão conservadora e discriminatória contra os povos indígenas, é oportuno mostrar essa valorização dos povos amazônicos”, diz Carvalho.  

Ao todo foram dois anos (2016-17) de produção da série, que foi financiada com recursos da Agência Nacional do Cinema (Ancine), desmontada pelo atual governo federal. Seu lançamento ocorreu em exibição nas emissoras públicas de TV do país entre 2018 e 2019. Agora, também estará disponível no sistema streaming para os assinantes da Amazon no Brasil. Ainda não se tem a data precisa da estreia, podendo ocorrer a qualquer momento. 

        


terça-feira, 21 de julho de 2020

Não esqueceremos

No último fim de semana Rio Branco, a capital acreana, literalmente pegou fogo, e isso quando estamos apenas no começo do período mais quente e seco do "verão amazônico". Ainda nem bem nos recuperamos da tragédia ambiental de de 2019, que, em partes, fpo impulsionada pela fala incendiária do governador do Acre, Gladson Cameli, desmoralizando a atuação do órgão ambiental do estado, o Imac, dizendo que a partir de sua chegada ao governo ninguém mais precisava pagar as multas porque quem "agora quem está mandando sou eu".


Assista à análise no vídeo





segunda-feira, 20 de julho de 2020

Fogo na floresta (urbana)

O fogaréu começou; vamos ter que sobreviver ao vírus e à fumaça


Incêndio em uma área de vegetação na tarde de domingo (Foto: Jardy Lopes)



Os dias de julho vão chegando ao fim. Agosto dá as caras, assim como o nosso verão amazônico com toda a sua intensidade. A tarde de domingo 19 de julho foi o retrato do grave problema que poderemos viver com as queimadas na Amazônia neste 2020, ano em que já vivemos uma situação muito delicada com a pandemia do novo coronavírus. Os moradores de Rio Branco, a capital do Acre, aos poucos vão sentindo o efeito de uma prática perversa, que é a de incendiar áreas de vegetação apenas por puro prazer e insanidade.

As imagens do fotógrafo acreano Jardy Lopes - feitas do chão e do céu - são um triste exemplo desta insensatez que não se aplaca nem mesmo em tempos de uma crise de saúde que já matou quase 500 acreanos em quatro meses. Este incêndio ocorreu no fim de domingo numa área que era a cabeceira do antigo aeroporto de Rio Branco, no Segundo Distrito. Trata-se de uma grande área de mato de propriedade da Aeronáutica.

Uma parte dela foi cedida para a construção da seda da Controladoria Geral da União (CGU) no Acre, que é este prédio para onde vão as chamas. Não se sabe por qual razão alguém coloca fogo numa área dessa, pois não há vizinhança urbana no entorno. Pode-se suspeitar que a queima foi feita em algum dos terrenos de chácaras no entorno, saído do controle e invadido ali.

O fato é que o dano foi feito e a fumaça tomou de conta de boa parte de Rio Branco. Bem ali próximo fica a UPA que é a unidade de referência para o tratamento da Covid-19. Certamente quem estava por lá respirou todo esse fumaceiro. Cabe agora às autoridades investigarem e punir os responsáveis, para que fatos assim não voltem a acontecer.

Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que, em 2020, os registros de focos de calor no Acre estão maiores. De primeiro de janeiro até esta segunda, 20, já são 220 pontos detectados. No mesmo período de 2019 foram 201. Pode parecer pouca coisa, mas mostra a tendência de alta caso providências não sejam adotadas.   

Os números também apontam a tendência de o Vale do Tarauacá/Envira ser o campeão no registro de queimadas este ano, assim como foi em 2019. Feijó teve nesta mesma época do ano passado 13 focos detectados pelo Inpe, enquanto Tarauacá tinha 25. Agora Tarauacá está no topo (30 focos), seguida por Feijó (22 focos).

Vale ressaltar que essa é uma das regiões (ainda) mais bem preservadas da Amazônia no Acre, e o aumento no registro de queimadas mostra que, aos poucos, a floresta ali vem sendo destruída. 

Em 2019 o Acre já viveu sua tragédia ocasionada pelas queimadas que causam a destruição de todo um ecossistema, como também na saúde dos humanos. E o governador Gladson Cameli será lembrado pela História como um dos responsáveis por isso, jogando gasolina na fogueira. (entenda aqui: Uma fala incendiária)


E agora fica uma questão: onde está a campanha publicitária de combate às queimadas lançada pelo governo? Por que não é mais veiculada justamente no momento mais crítico? 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Uma ameaça sem limites

No Acre, coronavírus se aproxima de áreas de indígenas isolados e de recente contato


Já há casos confirmados da Covid-19 em aldeias localizadas próximas às regiões da presença de indígenas em isolamento voluntário, na fronteira do Brasil com o Peru; efeitos podem ser devastadores para essas populações



Apesar do isolamento, grupos mantêm contatos rápidos com povos contactados há décadas em busca de comida e ferramentas; aproximação é fator de risco para contágio (Foto: Gleilson Miranda/2009)


@fabiospontes

Após infectar e causar mortes entre os povos indígenas do Acre moradores de aldeias em territórios já reconhecidos, agora o coronavírus passa a ser uma ameaça real aos grupos que vivem em isolamento voluntário e de recente contato. Os casos confirmados da Covid-19 entre os Huni Kuin moradores da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, no município de Feijó, levantam a suspeita de vir a ocorrer a infecção também dos isolados por manterem certo contato com estas comunidades, sobretudo quando precisam de alimentos ou ferramentas.

Este contato com outros indígenas e não-indígenas ocorre justamente agora nos meses secos do “verão amazônico”, e quando a epidemia parece não dar sinais de tréguas no Acre.

No último fim de semana houve o registro da morte de um idoso Huni Kuin de 83 anos morador de aldeia Vigilante, localizada na Ti Kaxinawá do Rio Humaitá. Ele morreu na própria aldeia. A causa foi dada como parada cardíaca, mas há a suspeita de que tenha sido por Covid-19. Há o registro de ao menos 25 pessoas infectadas. O mais grave é que houve velório para sepultar o idoso, o que provocou aglomeração e a ida de pessoas de outras aldeias, contribuindo para espalhar o vírus. 

O caso chama a atenção devido a comunidade estar em um território muito distante dos centros urbanos vizinhos (Feijó e Tarauacá). Para se chegar até lá a viagem pode durar até cinco dias de barco pelos rio Muru e Humaitá. A contaminação mostra que o vírus de fato não encontra barreira, e vem se espalhando de forma assustadora pelas comunidades mais remotas da Amazônia, ameaçando até os povos em isolamento voluntário. 

“Se a Covid-19 chegou realmente às aldeias da TI Kaxinawá do Rio Humaitá, não só os Huni Kuin estão vulneráveis, mas também a população de um povo ainda desconhecido que vive em isolamento voluntário nas cabeceiras daquele rio”, diz o trecho de uma mensagem redigida pelo indigenista Terri Aquino, conselheiro e fundador da Comissão Pró-Índio (CPI-Acre).  

“Se essas populações do entorno forem contaminadas pelo novo coronavírus, os "isolados do Humaitá" também correm o sério risco de serem contagiados por essa doença respiratória aguda grave,  contagiosa, que poderá levar ao seu extermínio, como aconteceu com muitos grupos indígenas durante as epidemias do século passado.”

As cabeceiras dos rios Humaitá e Envira - além do Muru e Tarauacá - estão na fronteira do Brasil com o Peru, sendo conhecidas por abrigar incontáveis grupos de indígenas em isolamento. A estimativa é que eles variem entre 30 e 70 grupos que decidiram manter seu modo tradicional de vida no meio da floresta, sem manter relações com o “mundo civilizado” ou seus parentes mais próximos.

Foi nessa região da fronteira do Acre com o Peru que foram registradas as primeiras imagens de indígenas isolados que rodaram o mundo. Na primeira delas, de 2009 (como esta que ilustra a reportagem), feitas de um avião, eles apontam suas flechas na direção da aeronave. Em outra, de 2014, é feito o vídeo de uma interação entre os isolados e os Ashaninka que vivem nas cabeceiras do rio Envira. O anfitrião entrega um cacho de banana para o visitante, que lhe retribui com um jabuti.

Depois eles são filmados levando ferramentas como terçados e machados. O contato aconteceu numa região do Envira conhecida como Xinane. Este grupo, por sinal, acabou deixando o isolamento, e hoje é definido como de recente contato, morando numa base da Funai nas cabeceiras do Envira. Com frequência eles também vão à cidade de Feijó, que é um fator de risco para eles e para os isolados por manterem interações.

Se de fato ocorrer uma contaminação entre estes povos, o efeito seria catastrófico. Por seus organismos não terem os anticorpos para as doenças mais básicas da “civilização”, o contato com o coronavírus seria devastador.   

Em geral, os povos indígenas são mais vulneráveis às infecções do trato respiratório, porém, no caso dos indígenas de recente contato, ou em isolamento voluntário, as estimativas científicas estabelecem que seu sistema imunológico estaria 'defasado' em cerca de 300 anos, justamente devido ao fato de não terem sido expostos e, por conseguinte, não terem desenvolvido imunidade a vírus, fungos e bactérias que são presentes no mundo dos brancos. 

Além do município de Feijó, há registros de grupos isolados por quase toda a extensão da fronteira do Brasil com o Peru, indo da cidade acreana de Assis Brasil, onde fica o território dos Manchineri, até o Vale do Javari, no Amazonas. Conforme mostrou reportagem da Amazônia Real, do último dia 2, havia o registro de ao menos 26 pessoas testadas positivas para a Covid-19 na Terra Indígena Vale do Javari. 


A catequização dos isolados

Desde que Jair Messias Bolsonaro chegou à Presidência da República, os evangélicos iniciaram uma ofensiva para prevalecer seus interesses na política indigenista. O objetivo é eliminar barreiras impostas pelo corpo técnico da Fundação Nacional do Índio (Funai) à entrada de missionários nas aldeias. Um dos principais alvos dos religiosos é a “catequização” dos povos em isolamento voluntário.

No começo de fevereiro, o governo nomeou um missionário evangélico para o cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), da Diretoria de Proteção Territorial da Funai. A nomeação gerou polêmica, levando o MPF a entrar com ação para suspender a posse. O processo está em tramitação na Justiça.

Em março, quando o país começava a sentir os efeitos da pandemia do novo coronavírus, a presidência da Funai emitiu portaria que permitia às coordenaçoes regionais (CRs) autorizar o contato de não-indígenas com as populações em isolamento.

Apesar de um dos artigos vetar atividades que “impliquem em contato com comunidades indígenas isoladas”, em outro há uma brecha ao permitir que as CRs concedam a autorização  “caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado.” Diante da repercussão negativa a Funai voltou atrás. Qualquer tentativa de contato com os isolados só pode ocorrer com o aval da CGIIRC.


A Covid entre os povos indígenas


Passados quatro meses de pandemia no país, o coronavírus aumenta seu número de vítimas fatais entre as populações indígenas.  Segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 517 indígenas já morreram vítimas da Covid-19. Os casos de pessoas contaminadas já passam dos 15 mil. A doença causou impactos, até aqui, em 129 diferentes povos.

Deste casos, a grande maioria está entre as populações da Amazônia: 461 óbitos e 11.029 infectados. Os dados são da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). No Acre, análise da Comissão Pró-Índio (CPI) aponta 654 indígenas testados positivos (entre aldeados e moradores das cidades) e 21 mortes.


Outro lado

A reportagem entrou em contato com a chefia da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, que é a responsável pelas ações de proteção aos povos isolados e de recente contato do Acre. A resposta foi a de que a orientação dada pela Funai é que todas as demandas de imprensa sejam encaminhadas para a assessoria de comunicação em Brasília.

A coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Juruá, que cuida do atendimento médico às comunidades de Feijó, não retornou aos pedidos do blog.


domingo, 12 de julho de 2020

A reserva de um futuro

Destruição da Resex Chico Mendes ameaça acesso à água potável de quase 70% dos acreanos


Unidade de conservação é uma das últimas áreas de floresta do rio Acre, manancial que já perdeu grande parte de sua mata ciliar; Se não fosse essa reserva nós estaríamos hoje numa situação quase irreversível de água, diz geógrafo



Em 2016, volume de água chegou a nível crítico, sendo necessário adaptações para se fazer a captação, evitando colapso na distribuição em Rio Branco (Foto: Governo do Acre/2016)




O avanço do desmatamento da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes é um elevado fator de risco para provocar o colapso no abastecimento de água potável para quase 70% da população acreana pelos próximos anos. Por ser uma das últimas áreas de floresta às margens do rio Acre, a Resex exerce papel essencial para garantir alguma sobrevida ao manancial já bastante impactado pela destruição de sua mata ciliar e pelo despejo de esgoto sem tratamento ao longo das últimas cinco décadas. 

A cada período do “verão amazônico”, o rio Acre atinge níveis críticos em seu volume de água, levando as autoridades a adotar medidas que assegurem a não interrupção na captação e distribuição de água para as cidades dos vales do Alto e Baixo Acre. Para estes municípios, o rio é a única fonte de água, e seu “esvaziamento” levaria 65% dos 407 mil moradores da capital Rio Branco que dependem do sistema estadual de distribuição a ficar com as torneiras vazias.

O processo de degradação da floresta às margens do rio ao longo das últimas décadas - sem a contrapartida de políticas públicas que visassem a sua recuperação - é apontado como o principal motivo para essas ameaças mais frequentes, como secas e enchentes severas que desabrigam milhares de famílias. Em 2012, quando foi elaborado o Plano Estadual de Recursos Hídricos, apontava-se uma deficiência de ao menos 98 mil hectares de mata ciliar que precisava ser recuperada de forma imediata; oito anos depois, nada avançou.

Em 2020, mais uma vez, com o avançar dos dias acumulados sem chuvas, o rio Acre volta a atingir níveis críticos. Segundo o Monitoramento Hidrometeorológico elaborado pela Sala de Situação da Secretaria de Meio Ambiente (Sema), na sexta-feira, 10, o rio Acre atingiu o nível de 1,46m em Brasileia e de 2,29m em Rio Branco. Desde o início da semana o manancial apresentou uma vazante constante. De segunda para sexta ela foi de 10 centímetros na capital. A situação é classificada como “alerta máximo”.

O cenário é preocupante por ainda ter o restante de julho e os meses de agosto e setembro sem chuvas ou escassas. Por ser um rio argiloso, ele depende basicamente da quantidade de chuva para estar com volume de água que não comprometa a captação e distribuição de água potável. A presença de floresta às suas margens também evitaria o risco de um colapso total.  

A cada “verão amazônico”  os alertas sobre um possível colapso do rio Acre são dados, incluindo a adoção de medidas como rodízio no sistema de distribuição de água para os moradores de Rio Branco. A situação mais crítica ocorreu em 2016, quando por conta de um El Niño o rio chegou a um nível tão crítico que adaptações foram feitas para se captar a água. No início de agosto daquele ano, a marca do rio Acre ficou abaixo do 1,40m na capital.    

Em 2020 também há o agravante da pandemia do novo coronavírus, cuja recomendação principal para se evitar o contágio é a constante higienização do corpo e de objetos pessoais com bastante uso de água. Com menos líquido ou até sem nas torneiras, estas medidas ficam comprometidas. 


Última reserva de floresta - e de água

A situação fica mais preocupante diante do acelerado processo de degradação da última reserva de floresta do rio Acre e seu principal afluente, o Xapuri. A Resex Chico Mendes está numa das áreas mais cruciais para o rio, que é a região do Alto Acre, onde está a cabeceira, já na fronteira com o Peru. Por sinal, o completo colapso também afetaria populações do país vizinho, mais a Bolívia.

Os 930 mil hectares da Reserva Extrativista Chico Mendes pode ser considerada como uma das últimas áreas da floresta preservada na região do estado mais impactada pelo desmatamento: os Vales do Alto e Baixo Acre, no leste do território. Desde o processo de ocupação do estado por famílias do centro-sul do país - a partir da década de 1970 - imensas áreas de mata foram derrubadas para o surgimento das fazendas de gado.  

Desde o ano passado, a Resex Chico Mendes sofre com o avanço do desmatamento. A falta de políticas públicas que fometem o extrativismo empurra muitos moradores para a pecuária, alimentando a destruição da floresta para a abertura de pastagens.

“Se não fosse essa reserva nós estaríamos hoje numa situação quase irreversível de água na cidade de Rio Branco e as demais. Graças a Deus existe essa reserva que pelo menos mantém as nascentes do rio Xapuri numa situação ainda confortável para manter o rio Acre pelo menos nestes poucos anos que ainda restam para ele perene”, diz o geógrafo Clodomir Mesquita.

“Se a reserva chegar ao ponto de escassear a água do rio Xapuri, que é o maior afluente do rio Acre aqui no estado, certamente estaremos numa pandemia de sede.”

Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Mesquita é a referência nos estudos sobre o manancial, os impactos que vem sofrendo e as perspectivas nada otimistas para o futuro caso nada seja feito. Mesmo que ações sejam desenvolvidas agora, afirma ele, os resultados são a longo prazo.

“As cidades que se encontram no Vale do Acre são as que mais crescem, as que mais demandam água e são as que mais usam as margens para o desmatamento. Então você vê que a equação não vai fechar. Você tem uma população crescendo e um rio morrendo”, avalia ele.

O geógrafo defende que políticas sejam colocadas em prática não só no sentido de recuperar parte da mata ciliar, como também proteger a Resex Chico Mendes de um processo de degradação que está em plena aceleração. Como lembra o pesquisador, caso ocorra o colapso do rio, “não há um plano B”.  

“É urgente que os gestores entrem na reserva e vejam o que está acontecendo lá, vejam o tamanho da abertura de campos, o tamanho do impacto que está ocorrendo para que a gente ainda possa beber água. Se continuarmos com os olhos fechados para a reserva que existe, ela não vai reservar o nosso futuro e nem sanar a nossa sede. Enquanto os homens não abrirem os olhos para manterem a nossa reserva florestal em pé, a vida vai perecer sim”.  

A falta de fiscalização por parte do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a venda ilegal de lotes de terra também impactam a unidade de conservação. Todos estes processos foram acelerados com a apresentação do projeto de lei 6024, de autoria da deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), cujo propósito é desafetar áreas dentro da Resex, beneficiando os maiores desmatadores.


Leia mais: PL da bancada da motosserra acelera degradação da Resex Chico Mendes 



Para ambientalistas, a aprovação da matéria vai ser o gatilho para completa degradação da área de proteção. Sem sua mata ciliar restante, o rio Acre entra em completo colapso, deixando milhares de acreanos sem acesso à água potável. Os defensores do projeto negam este impacto, dizendo que a área desafetada fica em propriedades próximas às margens da BR-317.

Contudo, o receio é o de que, com a aprovação do projeto, mais e mais moradores que já vêm desmatando a floresta para colocar o boi se sintam motivados a ampliar as áreas derrubadas, vindo a, no futuro, reivindicar a desafetação. Seria o efeito dominó da destruição da unidade de conservação.



Outro lado

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) foi procurada para comentar o assunto. A reportagem questionou se a  pasta tem projetos de recuperação da mata ciliar do rio Acre. A assessoria limitou-se a informar que essa recuperação se dará em conjunto com os donos de propriedades rurais localizadas às margens do manancial por meio do Programa de Regularização Ambiental (PRA), do Cadastro Ambiental Rural (CAR).

“Os projetos do PRA da Sema estão em etapa de elaboração e licitação e pretende-se sua execução com início ainda em 2021, com planejamento até o ano de 2022. 

“Toda iniciativa pública ou privada de recuperação de áreas às margens do rio Acre, em sua extensa grande maioria, classificadas como de Preservação Permanente (APP), deve ser aportada por meio da adesão ao PRA, com vistas a sua regularização ambiental e o apoio disponibilizado pela Sema.”

Completa a nota: “A Sema irá apoiar a recuperação destas APPs, considerando o espectro de abrangência dos projetos pilotos, distribuídos dentro do Sistema da Bacia do Rio Acre nos municípios das regionais do Alto e Baixo Acre, bem como nas APAs no município de Rio Branco”.

Em junho do ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, desceu e subiu os barrancos do rio Acre na capital para ver de perto a agressão sofrida pelo manancial, com toneladas de esgoto sendo despejados sem nenhum tipo de tratamento, responsabilizando os 20 anos de governos do PT pelo descaso. À época prometeu ajuda financeira para mitigar estes efeitos. Passado um ano, nada de concreto ocorreu, além do discurso político.
     

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Legítmo sem legitimidade

Ao tentar legitimar PL da desafetação, deputada reforça apoio dos maiores desmatadores da Resex Chico Mendes



Sem máscaras e sem distância segura, principais beneficiados pela desafetação da Resex Chico Mendes tentam legitimar apoio ao PL por meio de uma associação (Foto: Assessoria)





As declarações da vice-presidente da Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes de Brasileia e Epitaciolândia (Amoprebe), Luíza Carlota, dada em entrevista ao blog em 28 de junho, levaram os integrantes da bancada da motosserra a buscar uma reação. A primeira delas foi tentar desmistificar as falas da liderança comunitária de que os parlamentares defensores do projeto (PL 6024) que desafeta áreas da unidade de conservação não consultaram os moradores antes de propor a matéria.  

Além de não ter realizado audiências dentro da Resex para ouvir os extrativistas, a bancada propôs um PL que beneficia os maiores desmatadores e infratores ambientais que hoje são donos de fazendas de gado dentro da unidade.

“Não posso falar em nome do presidente [da associação], mas posso afirmar que não aconteceu nenhuma consulta aos moradores. Eles [os extrativistas] ficaram sabendo do projeto porque eu fui na reserva e comuniquei. Mas nós, enquanto morador ou como integrante da diretoria, nunca fomos consultados”, disse Carlota ao blog.

As declarações causaram impacto negativo e deslegitimam a proposta de lei, apresentada no final do ano passado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC) na Câmara. Mal redigido e sem apresentar uma área contínua para ser desmembrada, o PL 6024 tem como principal proposta retirar de dentro da reserva diferentes áreas (polígonos) espalhadas pela UC, beneficiando apenas os moradores que já desmataram em mais de 50% suas propriedades e respondem a processos movidos pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio.

Para passar a imagem de certa legitimidade social ao seu projeto, a deputada Mara Rocha distribuiu para a imprensa local release de sua assessoria sobre reunião com moradores da Reserva Chico Mendes na qual eles manifestam, por meio de carta, apoio à matéria legislativa.  O problema é que os participantes da reunião são os mesmos que, em outubro do ano passado, reuniram-se com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para pedir o fim das fiscalizações pelo ICMBio dentro da unidade.

Entre eles está Rodrigo Oliveira Santos, condenado por crime de grilagem de terras públicas. Ele já chegou a ser preso em flagrante por desmatamento e indiciado pela Polícia Federal por ameaças a fiscal do ICMBio. Para passar a imagem de que são lideranças de base representantes das comunidades, eles criaram uma associação: a dos produtores rurais da comunidade Maloca e Comunidades do Rubicon, Porvir, Ramal dos Pereira e da Torre. Essas são, justamente, as colocações mais desmatadas e alvo de processos judiciais, que podem resultar até na expulsão dos donos.  

As associações consideradas como representantes legítimas dos moradores e que possuem assento no conselho deliberativo da Resex, com poder de voto para definir os rumos da reserva, não são favoráveis ao projeto de lei.

São cinco as associações que reúnem os extrativistas dos sete municípios onde fica a área da Resex: a Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes de Xapuri (Amoprex), a associação de Assis Brasil (Amopreab), a associação de Brasileia e Epitaciolândia (Amoprebe), a associação de Sena Madureira (Amopresema) e a de Capixaba e Rio Branco (Amoprecarb).   Na reunião da deputada Mara Rocha não estava presente nenhuma liderança destas associações.

O que também chamou a atenção foi a foto oficial do encontro: nenhum dos representantes fazia o uso de máscaras nem se manteve a distância de dois metros, como recomendam as autoridades de saúde como forma de evitar a contaminação pelo novo coronavírus. Uma carta de apoio ao projeto foi entregue por estas lideranças não reconhecidas de forma oficial.

Outro problema encontrado: na reportagem da própria deputada é reconhecida uma ilegalidade cometida por seus apoiadores; parte deles chegaram à área após a criação da reserva, comprando lotes de terra. O comércio de áreas de terra dentro de unidades de conservação no país é proibido por lei por se tratarem de propriedade da União; portanto, sua venda é crime.

Diz um trecho da carta: “a parte de terra contemplada no PL é uma pequena área localizada dentro da Resex Chico Mendes, porém, já totalmente devastada há bastante tempo, sendo que em muitos casos, os desmatamentos não foram feitos pelos atuais moradores e sim pelos antigos, que fatiaram e venderam pequenas posses com documento de compra e venda, fato esse, comprobatório de que os atuais moradores são posseiros, e não invasores ou grileiros como afirmam os ambientalistas”.

A venda de pedaços de terra dentro da unidade de conservação se acelerou no último ano, ganhando ainda mais força desde a apresentação do projeto de lei de Mara Rocha, cujo efeito principal é o aumento do desmatamento.

“O impacto já aconteceu. A quantidade de famílias que estão vendendo pedaços da colocação porque ouviram dizer que [a reserva] vai ser cortada você não tem noção.  A quantidade de famílias que estão aumentando suas áreas de pasto pensando que vai virar assentamento também está grande”, disse Luíza Carlota ao blog. 

Nada que a presença das lideranças ilustres e principais beneficiadas com a eventual aprovação do projeto de lei pudesse causar algum tipo de constrangimento à parlamentar, que diz ter ficado alegre com o apoio: “Essa carta demonstra que não estamos querendo destruir o meio-ambiente, o que queremos é resolver um litígio que se arrasta por anos a fio e atender ao interesse daqueles que já produziam em suas terras, antes mesmo da reserva ser criada”.

Ao que se vê, não há como tentar legitimar um projeto de lei cujo objetivo principal é dar aspecto de legalidade ou que ocorreu de forma ilegal. 


 

domingo, 5 de julho de 2020

Passado e futuro em risco

Maior população indígena do Acre, Huni Kuin veem memória do povo ameaçada com mortes dos mais velhos


Até agora 11 Huni Kuin morreram vítimas da Covid-19, sendo 80% deles idosos; povo trabalha para recuperar modo de vida ancestral após quase desaparecer durante as “correrias” e trabalhos escravos nos seringais da Amazônia no século 20



Ninawa Huni Kuin: desafio é proteger os mais idosos para resguardar as vidas e a memória de um povo vítima de um período sombrio da Amazônia (Foto:Divulgação)




O povo Huni Kuin pode ser considerado uma das principais referências da história de resistência e sobrevivência de um dos períodos mais sombrios para os povos indígenas da Amazônia: os ciclos da borracha. Assim é a definição para a época áurea de exploração do látex na Floresta Amazônica entre o fim do século 19 e a primeira metade do século 20. Este apogeu, contudo, foi marcado pela escravização da mão-de-obra formada por nordestinos e pelos povos nativos da região.

Originários do rio Envira, os Huni Kuin constituíam a maior população indígena daquela região que formava o que hoje é o estado do Acre, uma das áreas da Amazônia com maior abundância da seringueira (hevea brasiliensis), espécie de onde era retirado o látex para a produção de borracha que, por sua vez, era enviada para as fábricas de pneus da ascendente indústria automobilística.

Em um primeiro momento, os indígenas eram vistos como empecilho para a expansão das estradas de seringa, por isso eram caçados e mortos numa tática conhecida como “correrias”. Após um tempo, os donos dos seringais passam a enxergar os nativos como potencial força de trabalho na extração do látex, e as “correrias” passam a ter o viés de caça para captura para trabalhos forçados.

Muitos resistiam a uma forma de trabalho baseada na escravidão, fugindo das colocações dos seringais e indo habitar as cabeceiras dos rios, nos locais mais distantes possíveis do colonizador.

No Acre, os Huni Kuin foram uma das principais vítimas deste período, com marcas presentes até hoje. A sua atual espacialização pelo território acreano é o resultado de deslocamentos forçados que eram obrigados a fazer para trabalhar nos seringais localizados nos diferentes rios da região. O resultado disso foi a separação de famílias inteiras por gerações, ocorrendo o reencontro muitas décadas depois.

“Os Huni Kuin foram os primeiros povos a trabalhar como escravos nos seringais. Foram marcados em ferro em brasa, eram assassinados nas correrias. Tudo isso foram sequelas que deixaram um sentimento muito negativo para o nosso povo. E também acabaram com muitos de nossos rituais, muito de nossa medicina foi prejudicada”, diz a liderança Ninawa Huni Kuin, 41 anos, presidente da Federação do Povo Huni Kuin do Acre, a Fephac.

Toda esse período cruel não foi capaz, porém, de acabar com a existência física do povo, ainda permanecendo com o de maior número de pessoas entre as 16 etnias do Acre. Dos 23 mil indígenas acreanos, eles representam aproximadamente 15 mil. O modo de vida cultural que inclui sua relação espiritual com a floresta vem aos poucos sendo recuperado nos últimos anos, graças ao ensinamento oral transmitido pelos mais velhos.

Essa recuperação agora está ameaçada pela pandemia do novo coronavírus, que tem entre as suas principais vítimas justamente os idosos, guardiões de toda a memória ancestral Huni Kuin.  Até agora 11 Huni Kuin morreram vítimas da Covid-19, sendo 80% deles idosos; outros dois estão internados na UTI em hospitais de Rio Branco.

Segundo dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), 17 indígenas acreanos já morreram por conta da Covid-19. Na análise da Fepahc, mais de 14 Huni Kuin - entre moradores das aldeias e das cidades - testaram positivo para a doença.  

“Estamos perdendo exatamente os mais idosos, que são quem mais temos tentado preservar por conta dos conhecimentos da tradição que são repassados aos mais jovens por meio dos idosos. Quando a gente perde os idosos, a gente perde aquele conhecimento que foi. Então, a gente tem que aproveitar tudo bem, porque infelizmente o que foi não contará mais aquela história”, comenta Ninawa.

As aldeias tidas como as em situação mais delicada ficam nos municípios de Santa Rosa do Purus, Tarauacá, Feijó e Jordão. Ao todo, os Huni Kuin têm 11 terras indígenas demarcadas e uma em processo de reconhecimento. Por estarem em maior número e em comunidades nos mais distintos rios da Bacia Amazônica, os Huni Kuin padecem com a falta de assistência médica nestes tempos de pandemia.

Na avaliação do presidente da Fephac, a atuação “solitária” dos distritos sanitários especiais agrava a situação por a estrutura e a quantidade de pessoal da secretaria ligada ao Ministério da Saúde, a Sesai, ser muito limitada. Para ele, a ajuda do governo estadual e das prefeituras seria essencial neste momento para reduzir os efeitos da pandemia nas comunidades indígenas.

“Não existe um plano de governo. O governo do estado não se manifestou em relação aos povos indígenas, com exceção da semana passada em que falou que ia liberar uns aparelhos de oxigênio, mas por enquanto foi só fala. Até o momento não foi enviado para nenhum pólo-base”, afirma ele. Um idoso Huni Kuin de 84 anos chegou a morrer dentro de uma embarcação quando chegava a Santa Rosa do Purus pela falta de oxigênio.


A medicina que vem da floresta


Diante da pouca ou nenhuma eficiência do poder público, os Huni Kuin têm recorrido à medicina da floresta para evitar o pior dentro das aldeias. O uso de chá naturais é o principal remédio recorrido por eles. O chá é feito a partir de plantas encontradas na Amazônia e usadas já há muito tempo, desde os antepassados, e cujos ensinamentos são transmitidos de geração para geração.

“Estamos tomando estas medidas porque nas comunidades que achávamos que teriam grandes desastres, como Santa Rosa, Jordão, Tarauacá e Feijó, estamos tendo uma resposta alternativa que é através do uso da medicina tradicional. Se não fosse o chá em vez dos 11 óbitos poderíamos estar com centenas de óbitos. O que preocupa mais são os idosos que têm problemas de respiração, o que exige atendimento da equipe médica, equipamentos e medicamentos”, analisa ele.

Como destaca Ninawa, a ingestão do chá não é a “cloroquina” para o tratamento da Covid-19. Seu uso é apenas uma forma preventiva para lidar com os sintomas da doença em seu estágio inicial, e cujos efeitos são mais evidentes entre os mais jovens. Além da medicina tradicional, os Huni Kuin recorrem ao isolamento dentro das aldeias como outra estratégia de amenizar os impactos da pandemia.

O problema é que há aldeias muito próximas das cidades, tornando o distanciamento social pouco eficaz. Como essas comunidades dependem da compra de alimento em supermercados, o deslocamento acaba sendo inevitável. Outros também vão às cidades receber seus benefícios sociais em agência bancárias ou lotérica, locais tidos como vetores de transmissão do coronavírus.  Nestas saídas elas podem ser infectados, voltando para as aldeias com o vírus no organismo, contaminando outras pessoas.

Como a assistência oferecida pelo governo é insuficiente e o vírus avança entre as aldeias, Ninawa busca ajuda de setores da sociedade civil para mitigar os efeitos.

“Por isso tomamos algumas medidas e estamos fazendo algumas articulações alternativas, buscando mesmo aqueles parceiros dos festivais indígenas, entidades de direitos humanos, com questões de saúde em nível internacional. Fizemos contato com a rede de Médicos Sem Fronteira, a Fiocruz. Então, também estamos buscando instituições que apoiam diretamente .”

O povo Huni Kuin não só resistiu como saiu maior dos tempos da escravidão nos seringais amazônicos. Suas vestimentas e indumentárias ricas em cores vivas ofuscam um passado sombrio que deve ficar lá: no passado. Isso não significa, todavia,  deixar seus idosos expostos ao vírus. A memória que eles carregam foi e é essencial para recuperar a ancestralidade e construir um novo futuro para os Huni Kuin. Protegê-los é garantir não só as suas vidas, mas as das gerações vindouras.





quinta-feira, 2 de julho de 2020

Alerta internacional

Vai ser uma destruição insana da natureza, diz secretário-geral da SOS Amazônia ao analisar impactos do PL 6024 no Juruá 


Para Miguel Scarcello, a construção de uma rodovia entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, no Peru, é uma ameaça não apenas para o ambiente, mas também para a segurança de centenas de famílias tradicionais; "Vai ser pura especulação fundiária. Isso vai servir para facilitar a invasão de terras públicas."



Miguel Scarcello: comunidade internacional deve estar atenta aos efeitos que podem ocorrer numa das regiões mais bem preservadas da Amazônia (Foto:Divulgação/SOS Amazônia)





O Vale do Juruá, localizado no extremo oeste do Acre, é uma das regiões mais bem preservadas da Amazônia, além de ser apontada como uma das mais ricas em biodiversidade do planeta. A Bacia do Juruá se estende entre os dois lados da fronteira do Brasil com o Peru.  A presença de unidades de conservação e de terras indígenas é o que assegura a permanência da floresta em pé nas últimas décadas. O isolamento geográfico do Vale do Juruá do restante do Acre por conta da não pavimentação da BR-364, por mais de quarenta anos, também contribuiu para a região estar preservada.  Hoje a rodovia está asfaltada em toda a sua extensão. 

Toda essa riqueza biológica está ameaçada por meio de um projeto de lei: o 6024. Isso mesmo, o famigerado PL 6024 de autoria da deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), cujo propósito principal é a desafetação de áreas da Reserva Extrativista Chico Mendes, localizada no Vale do Acre. Dentro da proposta está incluído um artigo que também impacta o Vale do Juruá. 

A intenção é transformar o Parque Nacional da Serra do Divisor em uma simples Área de Proteção Ambiental (APA), cujas regras ambientais são bem mais flexíveis do que a categoria parque, que são unidades de conservação de proteção integral. Outra proposta para a região – que tem o apoio do governo Gladson Cameli (PP) - é a construção de uma estrada entre as cidades de Cruzeiro do Sul e Pucallpa, no Peru, o que ampliará os impactos sociais e ambientais para os dois lados da fronteira. 

O rebaixamento de classificação da Serra do Divisor, mais a construção da estrada, representam uma grave ameaça para a sobrevivência da fauna, da flora e das centenas de famílias tradicionais que vivem na região e entorno.  

“Vão transformar aquelas colônias, aqueles locais de moradia das famílias tradicionais, em negócios. Não tem regulamento nenhum. Já é complicado com as regras de um parque, imagina sem. Para mim vai ser uma destruição insana da natureza da maior diversidade biológica do estado”, diz Miguel Scarcello, secretário-geral da organização não-governamental acreana S.O.S Amazônia. 

“Não dá pra esperar nada de positivo no sentido de conservar e para trazer benefícios às famílias locais. O jeito é torcer para que haja reação internacional contra isso, porque o horizonte é muito preocupante.”

Leia a entrevista de Scarcello ao blog na qual analisa os efeitos do PL 6024 para a Resex Chico Mendes e o Parque Nacional da Serra do Divisor, duas áreas onde a SOS Amazônia já teve atuação.  



Qual sua avaliação sobre os impactos que a aprovação do projeto 6024 pode provocar dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes? 

Scarcello: O risco para a conservação é enorme, porque vai prevalecer, se aprovarem o que o senador defende e a deputada também defende, é que as atividades econômicas que estão lá fazendo a destruição da floresta, que estão descumprindo as regras da reserva [sejam legalizadas], sejam validadas. Isso é uma demonstração de mudança de regras no meio do jogo.  É uma coisa Inadequada na perspectiva de uso sustentável da floresta. Por conta de um processo que nunca foi empreendido, ou foi de forma parcial e incompleta, e que não produziu o efeito que deveria ter que era para fazer a reserva extrativista produzir em todo o seu universo com produtos madeireiros e não madeireiros, e até mesmo com a produção agroextrativista típico da produção familiar. Isso não foi implementado, tiveram a chance de receber o apoio para implementar, mas não houve por parte do gestor o investimento que deveria ter havido. Isso não aconteceu e eles estão complicando. [Os defensores do PL] implementam atividade incompatível com a finalidade da reserva e vão ter um privilegio.


E o que representaria a aprovação dessa proposta? 

Scarcello: Uma defesa ilegal, desacertada que não poderia ser aprovada, pois indica que pode haver qualquer tipo de mudança em outro momento, já que o poder público não tem eficácia e efetividade que deveria ter. Aquilo é um território federal, que deveria ter cumprido as suas etapas, mas não cumpriu. Teve até parceria com o governo do estado tempos atrás, teve muitas iniciativas de organizações no sentido de agilizar, mas a gente percebe que não é em toda a sua plenitude. Infelizmente, boa parte da reserva não recebeu o apoio que deveria, não houve esforço para estudar o potencial madeireiro e não-madeireiro que a floresta tem para implementar. Nada foi feito na amplitude que deveria, foi tudo parcialmente num território específico. Foi insuficiente. Agora, fazer mudança por lei por conta de que isso não acontecia; penalizar a conservação e as famílias que têm esta finalidade, é para beneficiar um grupo de um setor econômico e, consequentemente, não dá o benefício ambiental que toda a sociedade merece. O benefício do funcionamento da reserva não é só para os seus moradores, é para a sociedade como um todo. É para a preservação do rio Acre, para a manutenção do manancial de água para abastecimento das cidades. A expansão desordenada do desmatamento da Bacia do Rio Acre ao longo da BR-317 está entrando na marra, não existe uma cena efetiva no sentido de instruir um processo de desenvolvimento da reserva como deveria ser feita. Eu acho que o PL vem para favorecer os infratores. Favorecer a um grupo e não a sociedade. Um grupo pequeno de famílias que se aproveitou da situação que implantou na marra, sem autorização, ilegalmente. Não seriam autorizados nunca, fizeram na marra. 


E quais seriam as consequências de transformar o Parque Nacional da Serra do Divisor numa APA?

Scarcello: Transformar para a categoria de APA é um crime enorme, porque APA é uma categoria que não protege nada, só releva que a área tem que ser protegida, mas não tem impedimento de nada. Se você andar por aí vai ver que a única coisa que fazem é não proteger, como acontece com a APA do Lago do Amapá [em Rio Branco] onde fazem o que querem. Você anda por ali é uma bagunça. Entram lá e fazem de tudo. Só não protegem. É o tempo todo sofrendo invasão, derrubada, caminhão de areia correndo livremente. As atividades econômicas, as famílias vão se perder lá dentro [da Serra do Divisor]. Os nativos de lá vão ser atropelados porque há um interesse fundiário enorme. Vão transformar aquelas colônias, aqueles locais de moradia das famílias tradicionais, em negócios. Não tem regulamento nenhum. Já é complicado com as regras de um parque, imagina sem. Para mim vai ser uma destruição insana da natureza da maior diversidade biológica do estado, da única cadeia de montanhas da região. Vai ser uma perda lastimável que pode enfraquecer o controle ambiental e colocar em risco as principais cabeceiras de rios do Acre. 


Este mesmo grupo político também defende a construção de uma estrada até o Peru cujo traçado passa justamente dentro desta área rica em biodiversidade. Quais seriam as consequências? 

Scarcello: Uma situação mais calamitosa ainda se for feita uma estrada da maneira como é feita no território nacional. Vai ser uma esculhambação total. Não vai ter controle de nada. A expansão das margens de desmatamento vai ocorrer de maneira intensa. Se hoje o órgão ambiental [ICMBio] não tem controle, imagine com uma estrada. Isso eu digo dentro do parque, agora imagine fora do parque, nas obras que vão ser feitas no entorno. Vai ser pura especulação fundiária. Isso vai servir para facilitar a invasão de terras públicas.  O que de fato deveria acontecer é o parque funcionar, o turismo acontecer para aquelas famílias que estão lá. O correto era fazer empreendimentos de negócios para receber os visitantes, hospedar, guiar, transportar, orientar os pesquisadores, os observadores de pássaros. Essas pessoas [os moradores] é que deveriam se beneficiar com isso. Permitiria que pudessem permanecer no parque. Vai ser um crime transformar em APA, e fazer a estrada, pior ainda. Mesmo que [a rodovia] não corte a cadeia de montanhas, vai cortar toda a área vizinha, ao redor da cadeia de montanhas, um terreno em declive, vai ser situação bastante difícil de controlar. Se tiver que ser feita, que se faça com rigor que tem que ser feito. Mas a intenção que se percebe é que é obra para ontem, de qualquer maneira. Pelas falas que se ouve do senador [Márcio Bittar] ele pouco se preocupa com isso; quer as coisas rápidas, uma situação de muito risco, atitude irresponsável e leviana. Um processo sem o controle da sociedade civil. A sociedade não foi ouvida, apenas a classe empresarial. Isso é muito grave. Não dá para se esperar nada de positivo no sentido de conservar e para trazer benefícios às famílias locais.  O jeito é torcer para que haja reação internacional contra isso, porque o horizonte é muito preocupante. 


O interessante é que também não se vê uma reação da classe política local que faz oposição ao atual grupo no poder. A questão ambiental não interessa muito a nossos políticos? 

Scarcello: Não tem nenhum deputado preocupado com esta causa. O restante está pouco ligando. Não ouvi, em nenhum depoimento, discursos em defesa da conservação. Todos são contra. Talvez o Daniel Zen [deputado estadual do PT], pelo que me lembro, é o único. Os outros falam para favorecer, facilitar, detonar, alegando que vai desenvolver, mas nunca pensam em desenvolver conservando. E nunca procuram as organizações para se orientar.  A sociedade não tem oportunidade de opinar. Quando chamam a gente é só para dar o aval. Estou até hoje esperando a criação de uma câmara técnica para produtos não-madeireiros num fórum de desenvolvimento que foi criado [no governo do estado]. Não chamaram a gente para mais nada. É muito grave o que acontece hoje. O modelo de governo é ignorar a representação dos movimentos sociais. Acham que é partidário. É uma generalização equivocada. Lembro que temos voz própria, não precisamos de partido político para sobreviver. É um equívoco muito grave, mas a gente tem que continuar enfrentando.  A estratégia do ministro do Meio Ambiente é bem decidida: passar com a boiada.