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domingo, 5 de julho de 2020

Passado e futuro em risco

Maior população indígena do Acre, Huni Kuin veem memória do povo ameaçada com mortes dos mais velhos


Até agora 11 Huni Kuin morreram vítimas da Covid-19, sendo 80% deles idosos; povo trabalha para recuperar modo de vida ancestral após quase desaparecer durante as “correrias” e trabalhos escravos nos seringais da Amazônia no século 20



Ninawa Huni Kuin: desafio é proteger os mais idosos para resguardar as vidas e a memória de um povo vítima de um período sombrio da Amazônia (Foto:Divulgação)




O povo Huni Kuin pode ser considerado uma das principais referências da história de resistência e sobrevivência de um dos períodos mais sombrios para os povos indígenas da Amazônia: os ciclos da borracha. Assim é a definição para a época áurea de exploração do látex na Floresta Amazônica entre o fim do século 19 e a primeira metade do século 20. Este apogeu, contudo, foi marcado pela escravização da mão-de-obra formada por nordestinos e pelos povos nativos da região.

Originários do rio Envira, os Huni Kuin constituíam a maior população indígena daquela região que formava o que hoje é o estado do Acre, uma das áreas da Amazônia com maior abundância da seringueira (hevea brasiliensis), espécie de onde era retirado o látex para a produção de borracha que, por sua vez, era enviada para as fábricas de pneus da ascendente indústria automobilística.

Em um primeiro momento, os indígenas eram vistos como empecilho para a expansão das estradas de seringa, por isso eram caçados e mortos numa tática conhecida como “correrias”. Após um tempo, os donos dos seringais passam a enxergar os nativos como potencial força de trabalho na extração do látex, e as “correrias” passam a ter o viés de caça para captura para trabalhos forçados.

Muitos resistiam a uma forma de trabalho baseada na escravidão, fugindo das colocações dos seringais e indo habitar as cabeceiras dos rios, nos locais mais distantes possíveis do colonizador.

No Acre, os Huni Kuin foram uma das principais vítimas deste período, com marcas presentes até hoje. A sua atual espacialização pelo território acreano é o resultado de deslocamentos forçados que eram obrigados a fazer para trabalhar nos seringais localizados nos diferentes rios da região. O resultado disso foi a separação de famílias inteiras por gerações, ocorrendo o reencontro muitas décadas depois.

“Os Huni Kuin foram os primeiros povos a trabalhar como escravos nos seringais. Foram marcados em ferro em brasa, eram assassinados nas correrias. Tudo isso foram sequelas que deixaram um sentimento muito negativo para o nosso povo. E também acabaram com muitos de nossos rituais, muito de nossa medicina foi prejudicada”, diz a liderança Ninawa Huni Kuin, 41 anos, presidente da Federação do Povo Huni Kuin do Acre, a Fephac.

Toda esse período cruel não foi capaz, porém, de acabar com a existência física do povo, ainda permanecendo com o de maior número de pessoas entre as 16 etnias do Acre. Dos 23 mil indígenas acreanos, eles representam aproximadamente 15 mil. O modo de vida cultural que inclui sua relação espiritual com a floresta vem aos poucos sendo recuperado nos últimos anos, graças ao ensinamento oral transmitido pelos mais velhos.

Essa recuperação agora está ameaçada pela pandemia do novo coronavírus, que tem entre as suas principais vítimas justamente os idosos, guardiões de toda a memória ancestral Huni Kuin.  Até agora 11 Huni Kuin morreram vítimas da Covid-19, sendo 80% deles idosos; outros dois estão internados na UTI em hospitais de Rio Branco.

Segundo dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), 17 indígenas acreanos já morreram por conta da Covid-19. Na análise da Fepahc, mais de 14 Huni Kuin - entre moradores das aldeias e das cidades - testaram positivo para a doença.  

“Estamos perdendo exatamente os mais idosos, que são quem mais temos tentado preservar por conta dos conhecimentos da tradição que são repassados aos mais jovens por meio dos idosos. Quando a gente perde os idosos, a gente perde aquele conhecimento que foi. Então, a gente tem que aproveitar tudo bem, porque infelizmente o que foi não contará mais aquela história”, comenta Ninawa.

As aldeias tidas como as em situação mais delicada ficam nos municípios de Santa Rosa do Purus, Tarauacá, Feijó e Jordão. Ao todo, os Huni Kuin têm 11 terras indígenas demarcadas e uma em processo de reconhecimento. Por estarem em maior número e em comunidades nos mais distintos rios da Bacia Amazônica, os Huni Kuin padecem com a falta de assistência médica nestes tempos de pandemia.

Na avaliação do presidente da Fephac, a atuação “solitária” dos distritos sanitários especiais agrava a situação por a estrutura e a quantidade de pessoal da secretaria ligada ao Ministério da Saúde, a Sesai, ser muito limitada. Para ele, a ajuda do governo estadual e das prefeituras seria essencial neste momento para reduzir os efeitos da pandemia nas comunidades indígenas.

“Não existe um plano de governo. O governo do estado não se manifestou em relação aos povos indígenas, com exceção da semana passada em que falou que ia liberar uns aparelhos de oxigênio, mas por enquanto foi só fala. Até o momento não foi enviado para nenhum pólo-base”, afirma ele. Um idoso Huni Kuin de 84 anos chegou a morrer dentro de uma embarcação quando chegava a Santa Rosa do Purus pela falta de oxigênio.


A medicina que vem da floresta


Diante da pouca ou nenhuma eficiência do poder público, os Huni Kuin têm recorrido à medicina da floresta para evitar o pior dentro das aldeias. O uso de chá naturais é o principal remédio recorrido por eles. O chá é feito a partir de plantas encontradas na Amazônia e usadas já há muito tempo, desde os antepassados, e cujos ensinamentos são transmitidos de geração para geração.

“Estamos tomando estas medidas porque nas comunidades que achávamos que teriam grandes desastres, como Santa Rosa, Jordão, Tarauacá e Feijó, estamos tendo uma resposta alternativa que é através do uso da medicina tradicional. Se não fosse o chá em vez dos 11 óbitos poderíamos estar com centenas de óbitos. O que preocupa mais são os idosos que têm problemas de respiração, o que exige atendimento da equipe médica, equipamentos e medicamentos”, analisa ele.

Como destaca Ninawa, a ingestão do chá não é a “cloroquina” para o tratamento da Covid-19. Seu uso é apenas uma forma preventiva para lidar com os sintomas da doença em seu estágio inicial, e cujos efeitos são mais evidentes entre os mais jovens. Além da medicina tradicional, os Huni Kuin recorrem ao isolamento dentro das aldeias como outra estratégia de amenizar os impactos da pandemia.

O problema é que há aldeias muito próximas das cidades, tornando o distanciamento social pouco eficaz. Como essas comunidades dependem da compra de alimento em supermercados, o deslocamento acaba sendo inevitável. Outros também vão às cidades receber seus benefícios sociais em agência bancárias ou lotérica, locais tidos como vetores de transmissão do coronavírus.  Nestas saídas elas podem ser infectados, voltando para as aldeias com o vírus no organismo, contaminando outras pessoas.

Como a assistência oferecida pelo governo é insuficiente e o vírus avança entre as aldeias, Ninawa busca ajuda de setores da sociedade civil para mitigar os efeitos.

“Por isso tomamos algumas medidas e estamos fazendo algumas articulações alternativas, buscando mesmo aqueles parceiros dos festivais indígenas, entidades de direitos humanos, com questões de saúde em nível internacional. Fizemos contato com a rede de Médicos Sem Fronteira, a Fiocruz. Então, também estamos buscando instituições que apoiam diretamente .”

O povo Huni Kuin não só resistiu como saiu maior dos tempos da escravidão nos seringais amazônicos. Suas vestimentas e indumentárias ricas em cores vivas ofuscam um passado sombrio que deve ficar lá: no passado. Isso não significa, todavia,  deixar seus idosos expostos ao vírus. A memória que eles carregam foi e é essencial para recuperar a ancestralidade e construir um novo futuro para os Huni Kuin. Protegê-los é garantir não só as suas vidas, mas as das gerações vindouras.





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