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sexta-feira, 30 de junho de 2023

Povos da Floresta

IBGE 2022
Acre sobe, Rondônia encolhe

 

Indígenas, caboclos, pretos, brancos: região Norte e a sua diversidade populacional


Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho

O Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dá a Rondônia um crescimento de apenas 0,10%. Talvez se explique sua população atual, que se esperava passar de 1,85 milhão, ter ficado em 1 milhão 581,1 mil. Aquele número fora projetado pelo Governo do Estado em 2021. Rondônia perdeu para o Estado de Sergipe (2,20 milhões), cuja área territorial é menor do que a do município de Porto Velho.


A alardeada produção do agronegócio não emprega mais do que o setor de serviços, a principal fonte de ocupação da mão de obra no estado. O novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) ainda confunde, quando revela que em 2022 havia um total de 155,4 mil empregos formais no estado, situando as contratações nas seguintes áreas: agropecuária, comércio, construção, indústrias e serviços gerais.


O Caged coloca a agropecuária em primeiro nessa ordem; não é.

Assim, Rondônia situa-se numa situação atípica, se comparada ao ex-território federal que recebeu parte de uma injeção em cinco parcelas totalizando US$ 1,5 bilhão do Banco Mundial, para asfaltar a BR-364 e consolidar o desenvolvimento agrícola de suas vilas. Aguarda-se a análise socioeconômica do governo de Rondônia e, quem sabe, outra, do próprio IBGE. Oficialmente, não se fala em êxodo rural, mas admite-se a total mecanização de suas lavouras de grãos como fator real de falta de vagas no campo. 

O Acre está com 830,02 mil habitantes, obtendo o crescimento de 1,03%, que o coloca entre 14 estados e o Distrito Federal na lista das unidades federativas com crescimento acima da média nacional (0,52%) em 2022.

O Censo revela que a população brasileira alcançou 203,1 milhões, aumentando 6,5% em relação à contagem anterior, feita em 2010. Assim, tivemos aumento de 12,3 milhões de pessoas nesse período.
Rondônia, que entre o final da década de 1970 e meados dos anos 1980 recebera os maiores fluxos migratórios do país, não deveria estagnar dessa forma, dado o crescimento de suas principais cidades que até hoje recebem migrantes.

Segundo o IBGE, o Norte era a segunda região menos populosa, com 17,3 milhões de habitantes, representando 8,5% dos residentes do país. “Essa participação da região vem crescendo sucessivamente nas últimas décadas. A taxa de crescimento anual foi de 0,75%, a segunda maior entre as regiões, mas bem inferior àquela apresentada no período intercensitário anterior (2000/2010), quando esse percentual era de 2,09%. Isso significa que, embora a população continue aumentando, o ritmo de crescimento do número de habitantes do Norte é menor em relação à década anterior", diz trecho do relatório publicado pelo IBGE sobre o Censo 2022.

No início do século passado, o Acre recebeu milhares de migrantes cearenses que se miscigenaram com uma parte de sua população indígena original. Eram os “arigós”, “soldados borracha” recrutados no porto de Fortaleza, vindos para o esforço de guerra na extração do látex. A maioria ficou.
E em Rondônia, que até os anos 1970 tinha predominância de indígenas e de pessoas nascidas e criadas em Porto Velho e Guajará-Mirim, os dois únicos municípios até a chegada do estado, a miscigenação foi ainda maior.

Para Espigão do Oeste (leste do estado) se mudaram famílias brancas da Pomerânia (no Mar Báltico), que já haviam feito a primeira migração rumo ao Estado do Espírito Santo. E muito mais brancos, morenos e afrodescendentes aqui chegaram procedentes dos estados do Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul principalmente, fixando-se mais entre Vilhena, portal de entrada, Ji-Paraná, Cacoal e Pimenta Bueno; Zona da Mata, em Rolim de Moura, Alta Floresta d’Oeste e outros municípios; Ariquemes, Jaru, Ouro Preto do Oeste e Porto Velho. 

A capital, conhecida durante longos anos como “terra do contracheque” – por sediar o governo, empregar funcionários públicos – e pelo fato de não ter industrialização suficiente, recebeu muitos migrantes depois de iniciado o Ciclo das Hidrelétricas Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira.

São Paulo, a capital paulista, é o município mais populoso do país, e tem o maior número de domicílios, com 4,9 milhões. A densidade populacional continua desigual entre as regiões. No Norte, que concentra 45,2% do território do país, a densidade é de 4,5 hab./km². Já no Sudeste, a média é de 91,8 pessoas por quilômetro quadrado.


OUTROS DADOS DO CENSO DO IBGE


● Há 5.570 municípios no País e quase metade (44,8%) desse total tinha até 10 mil habitantes em 2022. Nesses 2.495 municípios viviam 12,8 milhões de pessoas.
● Os 20 municípios mais populosos do país concentravam 22,1% do total da população e 17 deles são capitais. Os demais foram Guarulhos e Campinas, em São Paulo, e São Gonçalo, no Rio de Janeiro. A capital paulista aparece em primeiro lugar no ranking, com 11,5 milhões de habitantes, seguida do Rio de Janeiro (6,2 milhões) e Brasília (2,8 milhões)
● Três municípios tinham menos de mil habitantes: Serra da Saudade, em Minas Gerais, com 833 pessoas, Borá, em São Paulo (907), e Anhanguera, em Goiás (924). Os 20 municípios com menos habitantes concentravam apenas 0,01% da população.
● Os domicílios particulares permanentes vagos aumentaram 87%, chegando a 11,4 milhões, enquanto os de uso ocasional cresceram 70% em 12 anos, totalizando 6,7 milhões.


quarta-feira, 28 de junho de 2023

Adaptações

 O desgoverno bolsonarista de Gladson Cameli (PP) quer recriar a Secretaria dos Povos Indígenas do Acre. A pasta já existiu durante o governo do petista Jorge Viana (1999-2006). Com a nova secretaria, Cameli tenta se alinhar à política ambiental e dos povos originários do presidente Lula (PT). Ainda bem. O Acre e a Amazônia não suportariam mais quatro anos de devastação.

Assista à análise no vídeo

sexta-feira, 23 de junho de 2023

A maldade da grilagem

Governador de Rondônia considera “maldade” ter o maior cinturão verde do país entre o centro-oeste e a fronteira boliviana


TI Karipuna, que forma cinturão-verde no oeste de RO bastante pressionado pela indústria da grilagem (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Montezuma Cruz

Dos varadouros de Porto Velho

Um tanto na contramão dos Objetivos do Milênio, o governador de Rondônia, coronel Marcos Rocha (União Brasil), parece  não ter encontrado o esquadro, o compasso e o prumo para recompor esta parte da Amazônia Ocidental brasileira da série de agressões cometidas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro - e da qual ele próprio, como bolsonarista que é, ajudou a fomentar ao longo dos últimos quatro anos. “Fizeram uma maldade com Guajará-Mirim: 93% a 94% da área são de preservação; eu tinha que conseguir fazer com que as pessoas tivessem emprego e renda, que movimentasse a economia lá”, discursa num vídeo Rocha, ao lado da deputada estadual Taíssa Sousa (PSC). 

Guajará-Mirim, na fronteira brasileira com a Bolívia, situa-se a 362 quilômetros de Porto Velho. É homônima de Guayaramerín (Beni), cidade boliviana do outro lado do rio Mamoré. Disse o governador que recentemente retirou o ICMS da gasolina e do diesel dentro de Guajará-Mirim, ou seja, os moradores e as empresas fixadas nesse município fronteiriço terão o benefício.

Enquanto ele fala no vídeo gravado em seu gabinete, a deputada esboça um sorriso tão amarelo quanto o casaco que usava quando se avistou com o chefe do Executivo. A base eleitoral-política da parlamentar é o município da fronteira - ponto final da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, cujos trilhos e pontes ainda são vistos ao longo das BR-364 e 425. 

Rocha admite que a obtenção de crédito de carbono poderia contribuir para a consolidação da renda de Guajará-Mirim, apesar dos mais de 50 milhões de metros cúbicos de madeira de lei roubados das suas terras indígenas.

“Como Guajará-Mirim tem 94% de sua área preservada obrigatoriamente, de repente pode ganhar recursos justamente por isso” – projetou sem nenhuma estimativa oficial. Informou que esteve em Brasília, onde tratou do nó górdio da RO-420, estrada-parque Ariquemes-Nova Mamoré: “Queremos asfaltá-la.” “Já tive um parecer [de quem?] praticamente favorável; será feito um estudo, mas percebi que vai dar certo. Federalizar a 420 e a 421 passa para mim. Isso vai facilitar muito até para o governo federal.”

A estrada-parque possui 30 metros de largura e sua construção interrompeu vários igarapés ou intermitentes. Parte de seu traçado passa por dentro do Parque Estadual de Guajará-Mirim, uma das unidades de conservação mais ameaçadas pela grilagem dentro de Rondônia.  

“Passo a passo a gente vai conseguindo abrir o caminho pro Pacífico através dessas ações”, disse, talvez ignorando que o Estado do Acre já construiu parte da Rodovia Transoceânica há quase duas décadas.
Em 1976, quando o governador era criança no Rio de Janeiro, a 421 era conhecida como “rodovia da cassiterita” e não raro utilizada por narcotraficantes para negócios de fachada nessa região de Rondônia.

Não é novidade alguma que a grilagem de terras e a exploração ilegal de madeiras corre solta no município de Buritis - outro município citado por ele no vídeo, e que seria beneficiado pelo seu "pacote de bondades" no asfaltamento e abertura de estradas numa das regiões de Rondônia mais impactadas pela invasão de UCs e terras indígenas.  Como também já é de conhecimento público, a abertura de estradas e ramais (chamados de linhas em RO) serve como principal indutor para o avanço do desmatamento na Amazônia.

Buritis, ao lado do distrito de União Bandeirantes, acabam servindo como uma base logística para essa indústria da grilagem na região centro-oeste de Rondônia. A área, não por acaso, está localizada na tríplice divisa Amacro: Amazonas, Acre e Rondônia - definida como a nova fronteira do desmatamento na Amazônia.  Entre as áreas mais invadidas estão a Resex Jaci-Paraná e a Terra Indígena Karipuna, que passou a ser alvo de operação da Polícia Federal para expulsar madeireiros e grileiros.
 
No Mapa da Violência, o município de Buritis aparece como o 15° mais violento do Brasil. Relatório divulgado entre 2010 e 2012 aponta 79 mortes causadas por arma de fogo, o que representa uma taxa média de 78,8% para cada 100 mil habitantes. Os resultados daquele período até agora ainda não foram divulgados.

Em janeiro deste ano, o perímetro urbano da RO-420, no trecho do distrito Nova Dimensão a Nova Mamoré começou a receber 60 quilômetros de patrolamento, limpeza lateral e encascalhamento. A obra é do Departamento de Estradas de Rodagem de Rondônia (DER), conhecido por “balcão da campanha política” pela reeleição de Rocha.

 

Um parque grilado e desmatado 

O Parque Estadual de Guajará-Mirim está invadido há décadas, reconheceu o ex-governador Confúcio Moura (MDB), hoje presidente da Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado Federal. Ele próprio um dia desabafou: “Não aguento mais a invasão do território dos Uru-eu-wau-wau, Rondônia está impotente diante dessa situação”. Imagine-se com o Parque. Foi durante a festão Confúcio que Rondônia mais criou unidades de conservação estaduais - agora alvos da bancada ruralista-bolsonarista da Assembleia Legislativa (ALE-RO). 

Logo, o asfaltamento que pode ser visto com deslumbre pelo governo e por alguma parcela da população de Guajará-Mirim, tem tudo para ser mais um nó górdio nos próximos meses. A prometida desintrusão do Parque – que deveria ser feita pela Secretaria Estadual do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) – até hoje está no papel, seguindo-se o faroeste entre ocupantes de áreas sempre resistindo ou atacando a polícia.

Julio Dalponte, da Universidade de Brasília, doutor em biologia animal, lembra em depoimento ao jornal eletrônico (o)eco que em fevereiro de 2014 houve a cheia histórica do Rio Madeira e em consequência dessa emergência um percurso de 11,5 Km dentro do Parque – antes uma trilha fechada e de tráfego limitado – foi transformado em estrada. “Chegou a haver um embate entre a Justiça Federal e o Governo de Rondônia, que paralisou a abertura dessa via”, ele recorda.

Júlio foi contratado pela Sedam para elaborar um projeto técnico que atendesse à Lei Complementar nº 762, de 27 de fevereiro de 2014 e que pudesse ser executado o mais rapidamente possível. Seu trabalho resultou no rastreamento contínuo de pegadas, “o mais eficaz no caso”, no que constatou 28 espécies de mamíferos de médio e grande porte – com massa corporal acima de 1Kg – que efetivamente cruzaram a estrada, e 368 eventos de travessia bem-sucedida por indivíduos dessa espécie durante o estudo. Listou ainda 40 espécies de mamíferos de médio e grande porte, dos quais, nove em espécie de extinção: anta, ariranha, cachorro-vinagre, macaco-aranha de cara preta, onça-parda, onça-pintada, queixada, tamanduá-bandeira, tatu-canastra.

E alerta: “Com base nessa Lei, o governo do estado conseguiu ir em frente com a obra; essa lei permite a construção de estradas-parque em Unidades de Conservação, dede que o projeto desse tipo de via contenha um estudo prévio de impacto socioambiental.” 

“Não foi o que aconteceu, assinala Dalponte: a abertura da estrada foi feita da noite para o dia, desamparada de qualquer estudo ambiental prévio. Ela atravessa a porção norte do parque, para viabilizar a conexão entre os municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré, garantindo o acesso pelas regiões de Ariquemes e Buritis.” As zoopassagens propostas dariam prioridade aos corredores de fauna, evitando-se ou reduzindo-se, desta maneira, atropelamentos.

Segundo o biólogo Paulo Bonavigo, primeiro-secretário da Ação Ecológica Guaporé (Ecoporé), a castanha, lembrada pelo governador, tem sua produção concentrada em terras indígenas e nas unidades de conservação de uso sustentável (como a Reserva Extrativista do Rio Cautário) e beneficia o município, proporcionando renda.  Essa “maldade” feita contra Guajará-Mirim não foi lembrada pelo governador Marcos Rocha. A venda da castanha está entre as principais fontes de renda para as comunidades indígenas e ribeirinhas do município - um dinheiro obtido sem a necessidade de colocar boi ou soja no lugar da floresta. 

Nem Associação Comercial, nem Receita Federal revelaram até o momento o volume da safra anual e que mecanismos podem ser adotados para que o produto atenda diretamente ao mercado dos Estados Unidos. 

“A isenção de impostos sobre produtos florestais em Guajará-Mirim foi, na verdade, resultante da luta do terceiro setor e de castanheiros, contra atravessadores de empresas”, diz Paulo Bonavigo.
Verdade, ela não provém de nenhuma política pública da Secretaria Estadual da Agricultura. Esta, por sua vez, nem divulga o preço do quilo do látex extraído em Unidades de Conservação e nem esclarece a quantas anda o investimento da Permian Global.

Essa empresa foi autorizada pelo governo estadual a pagar R$ 1 mil por mês a cada família de sete comunidades da região do Rio Cautário – entre Costa Marques e Guajará-Mirim – sob a exigência de conservar a floresta nativa visando ao crédito de carbono que aquela empresa pretende negociar no mercado internacional. 

Uma CPI da Assembleia Legislativa, pelo visto, deverá revelar esse aspecto muito cinzento desde 2021.



SAIBA MAIS


● Situado na parte centro-oeste do estado de Rondônia, abrangendo afluentes da bacia do Rio Jaci-Paraná, o Parque Estadual de Guajará-Mirim foi criado com uma área original de 258.813 hectares, mas perdeu 53.601 ha com a existência de títulos definitivos de propriedade da terra.


● Abrange afluentes da bacia hidrográfica do Rio Jaci-Paraná, nos municípios de Nova Mamoré e Guajará-Mirim. Faz parte da porção leste do Corredor Ecológico Guaporé/Itenez-Mamoré e é adjacente aos limites da T.I. Uru-eu-wau-wau e do Parque Nacional dos Pacaás Novos.


● O Parque serve de tampão, barrando grande parte da pressão de atividades humanas que vêm do eixo da BR-364 e está inserido em uma região de grande diversidade biológica, abrangendo quatro estações ecológicas sul-americanas: 1) floresta úmida tropical; 2) florestas úmidas do sudoeste da Amazônia; 3) florestas úmidas de Rondônia e Mato Grosso, além de pântanos e florestas de galeria do Departamento de Beni, na Amazônia Boliviana. (Fonte: portal ((o)) eco)

 

Entenda mais sobre o ambiente político de Rondônia, um dos principais redutos do bolsonarismo dentro da região Norte, junto com Acre e Roraima. 

 

Rondônia promove um “liberou-geral” na grilagem

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quarta-feira, 21 de junho de 2023

Poços de argila

É um tiro no pé e um custo muito alto sem retorno, diz geógrafo sobre planos para perfurar poços em Rio Branco

 

Claudemir Mesquita: formação argilosa do solo impede acúmulo de água subterrânea (Foto: Fabio Pontes)

 

Fabio Pontes

Dos Varadouros de Rio Branco

Com a cidade de Rio Branco enfrentando uma nova crise no abastecimento de água por conta do rompimento da adutora de captação da Estação de Tratamento de Água (ETA 2) da Sobral, o prefeito Tião Bocalom (PP) anunciou, na semana passada, como medida emergencial para solucionar o problema, a perfuração de dois poços com mais de mil metros de profundidade. A água captada a partir destas fontes, segundo o gestor, amenizaria efeitos de panes estruturais como a atual, ou as dificuldades de captação durante os meses da estiagem, quando o rio Acre atinge níveis críticos de vazante.


Esta não é a primeira vez que os gestores públicos apontam a perfuração de poços para solucionar as crises constantes de abastecimento de água na capital acreana. Em 2016, quando o rio Acre atingiu o nível mais baixo já registrado - em virtude da seca severa ocasionada pelo fenômeno El Niño - houve a tentativa de se alcançar o lençol freático do famoso aquífero, localizado no Segundo Distrito da cidade. À época, dois poços de 140 metros de profundidade foram abertos, mas a vazão se mostrou inviável para prover o abastecimento da cidade.

A solução foi esperar a chuva voltar a cair para o rio Acre encher. Agora, de acordo com a prefeitura, dois poços com 1.200 metros (cada) serão perfurados, até o fim do ano, nos bairros Comara e Placas. A estimativa é de um investimento de R$ 2 milhões. Segundo a prefeitura, estudos do Serviço Geológico Brasileiro (CPRM) indicariam que é a partir deste nível que se pode encontrar água do que seria o Aquífero Alter do Chão. Espalhando-se pelos territórios do Pará e do Amazonas, é apontado como um dos maiores reservatórios de água subterrânea do mundo, cuja extensão chegaria até a fronteira com a Bolívia.    

Para o geógrafo Claudemir Mesquita, especialista em planejamento e uso de bacia hidrográfica, não há nenhum estudo científico que assegure essa presença do Alter do Chão no subsolo acreano. “Nós não temos estes limites [do aquífero] ainda definidos. Isto é suposto. Eu não posso pensar em fazer uma perfuração de mil metros com base em suposições. Eu precisava fazer esse gasto com a certeza que iria encontrar essa realidade”, diz Mesquita.

De acordo com ele, pesquisas realizadas nas décadas de 1970 e 1980 já apontavam que a formação geológica da região onde está o Acre não é propícia para o acúmulo de água subterrânea. “Foi identificado que a geologia do Acre é extremamente densa, com um teor de argila muito alto. E em argila não se concentra água. Os estudos identificaram que a camada argilosa no Acre chega a quatro mil metros. Isso se dá por conta do soerguimento da cadeia montanhosa dos Andes.”

O geógrafo afirma que uma das características da argila é a sua impermeabilidade, impedindo a passagem da água para o subsolo. “Então, já em décadas passadas, estes estudos identificaram que a região não tem água subterrânea com suficiência para abastecer uma cidade”, ressalta ele.

Quem propôs essa ideia ao Bocalom, afirma Mesquita, não pesquisou os estudos feitos. Ele considera a perfuração de tais poços um desperdício, representando desgastes de recursos humanos, financeiros e ambientais. “Para mim é um tiro no pé. Ele não deveria fazer isso porque o processo é doloroso, vai ser muito criticado Vai ser doloroso no sentido ambiental, muito gasto financeiro, de material e isso não vai ter retorno para a população”, comenta.


Rio Iquiri: o plano B   

Com a inviabilidade de se abastecer a capital a partir de fontes subterrâneas e um rio Acre que a cada período de verão amazônico alcança níveis críticos de vazante, colocando em risco o fornecimento de água potável para metade da população acreana, existe alguma alternativa? Para Claudemir Mesquita, o rio Iquiri pode servir como um plano B para a segurança hídrica das cidades do Baixo Acre.  

Quase que um “irmão” do rio Acre (Aquiry) - ambos são afluentes do Purus - o Iquiri é um manancial cujas margens estão menos antropizadas. Ao contrário do Aquiry, bastante pressionado pelo desmatamento e a ocupação das margens por fazendas de gado e comunidades ribeirinhas, o Iquiri sofre menos impactos nos meses secos. Todavia, destaca o professor, é preciso garantir a preservação das nascentes do rio, que se encontra dentro do próprio estado, na região de Capixaba.

O Iquiri pode não garantir o abastecimento de toda Rio Branco, mas ao menos os bairros do Segundo Distrito.  “Se a gente começar hoje a recuperar as nascentes do Iquiri ele vai fornecer água para a gente por algum tempo, por muito tempo, se for feito um trabalho conjunto, consórcio, [entre as prefeituras] de Rio Branco, Quinari e Capixaba”, recomenda Mesquita.

Para o especialista em bacia hidrográfica, a prioridade, porém, continua sendo a recuperação urgente da mata ciliar do rio Acre. “Eu já estou há anos batendo neste assunto, entra governo, sai governo, e ninguém planta uma árvore na margem do rio Acre, a proteção dos barrancos, dos afluentes como o riozinho do Rola e o Xapuri. Esses daí estão sendo degradados a rodo, o desmatamento.”

Enquanto isso, os moradores destas bandas do sul da Amazônia ocidental se preparam para enfrentar mais um verão amazônico rigoroso. A previsão dos efeitos de um El Ninõ de forte intensidade tende a agravar ainda mais a situação. Nesta segunda metade de junho, o rio Acre já está abaixo dos três metros - isso após a capital ter sido afetada pela terceira maior enchente do manancial em cinco décadas.  A tendência é de mais crise hídrica, ao menos até outubro. Desde 2020 comunidades rurais do município precisam ser atendidas pela distribuição de água em caminhões-pipas, já que fontes como poços e açudes secam.

Até lá não temos plano B. A nossa única fonte de água é o desmatado e bastante maltratado rio Acre - ou Aquiry. O resto é rezar para que os deuses da floresta enviem águas dos céus. Já que não temos rios na terra, que ao menos os voadores nos acudam.   

 

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domingo, 18 de junho de 2023

A morte da estrada?

Justiça sepulta projeto da estrada Cruzeiro do Sul-Pucallpa; o governo Lula enviará condolências?


Parna Serra do Divisor, bolsonaristas querem transformar UC em APA para passar estrada (Foto: Divulgação)



Fabio Pontes
Dos Varadouros de Rio Branco


A SENTENÇA da juíza Carolynne Souza de Macedo Oliveira, da Primeira Vara Federal Cível de Rio Branco, de tornar nulo o edital (130/21)) lançado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), em dezembro de 2021, cujo objetivo era contratar empresa para análises de viabilidade técnica para a construção da rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, no Acre, e Pucallpa, capital do departamento peruano de Ucayali, pode ser vista como a pá de cal para a empreitada da classe bolsonarista acreana. Uma empreitada que, por sinal, nasceu já quase morta ante as pressões internas e externas contrárias.


A decisão é resultado de uma ação civil pública (ACP) movida por um conjunto de entidades dos movimentos ambientais e indígenas do Acre, incluindo a organização não-governamental SOS Amazônia e a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj). Em dezembro de 2021, uma liminar desta mesma Vara da Justiça Federal já tinha anulado o edital. Após recurso do Dnit, o TRF-1 anulou a medida da primeira instância, e o processo de contratação deu continuidade.

Agora, quase 17 meses depois, a Justiça volta a se manifestar com uma decisão mais robusta. Ao contrário de uma liminar, proferida num regime de urgência, a sentença de Carollynne Macêdo, proferida no último dia 14 de junho, foi dada a partir de uma profunda análise da situação, ouvindo todas as partes envolvidas e garantindo o amplo direito à defesa dos réus. Além disso, o veredicto ocorre em meio a um novo ambiente político do país, com a reconstrução da agenda ambiental por parte do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).   

A decisão representa uma importante vitória na luta dos movimentos sociais do Acre contra este projeto bancado, politicamente, pelo governo bolsonarista de Gladson Cameli (PP), e outras lideranças políticas e empresariais do estado. Tal projeto, obviamente, também tinha sido encampado pelo governo federal de então, liderado por Jair Bolsonaro (PL) e sua agenda eficaz de deixar a boiada passar sobre a pauta de proteção amazônica.  

Tanto assim, que o Dnit lançou à revelia de quaisquer estudos prévios ou consultas às comunidades impactadas o edital que foi contestado na Justiça, cuja crítica principal é exatamente o atropelo ao que prevê as legislações nacionais e internacionais que tratam de impactos sociais e ambientais ocasionados por obras desta magnitude. O interesse em tocar o empreendimento era tão grande que havia articulações, em Brasília, para que o licenciamento fosse tocado não pelo Ibama, mas pelo Imac, o Instituto de Meio Ambiente do Acre, desde 2019 sob as batutas da classe política bolsonarista local. Este arranjo se mostrou uma afronta. Afinal, o traçado da rodovia passa por terras indígenas e unidades de conservação federais, além de ser uma região fronteiriça. Portanto, de ampla e única responsabilidade dos órgãos federais.  

Agora, com a nova sentença, a magistrada Carolynne Macêdo Oliveira determinou ao Ibama a não iniciar o processo de licenciamento ambiental “enquanto não for realizada consulta prévia, formal, livre e informada, nos moldes em que determina a Convenção n. 169, da OIT, aos povos indígenas e comunidades tradicionais, direta ou indiretamente,afetados”. Também determina que a licença não seja emitida sem que sejam feitos os estudos, por parte da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), de referência 64 - Isolados do Igarapé Tapada - sobre a possível presença de populações em isolamento voluntário no traçado da rodovia.

Uma das principais preocupações dos impactos ocasionados pela abertura da estrada são os povos indígenas isolados. Como de notório conhecimento, a fronteira Brasil-Peru, nos vales do Juruá e Javari, tem uma das maiores concentrações populacionais de indígenas isolados do mundo. A região também é dona de uma das maiores biodiversidades (vegetal e animal) do planeta.

A decisão da Justiça Federal tem um forte simbolismo por estancar (num primeiro momento) este que é, sem dúvidas, um dos projetos mais ameaçadores para a preservação da Floresta Amazônica - e isso de ambos os lados da fronteira. As pressões acontecem tanto do lado brasileiro quanto do peruano, sobretudo pela exploração madeireira. A sentença também vem num novo momento político do país, em meio à reconstrução da agenda ambiental promovida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e sua ministra do Meio Ambiente, a acreana Marina Silva.


A pedra colocada pela Justiça no caminho da rodovia Cruzeiro do Sul-Pucallpa lembra um pouco o projeto de exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. São situações e características bem diferentes. Aqui na nossa fronteira Brasil-Peru estamos nas cabeceiras das nascentes dos rios, enquanto lá no Amapá é onde o majestoso Amazonas se encontra com o oceano. Mas, do ponto de vista político, a situação pode ser igual. A diferença é que no Amapá, acredito eu, não haja um bolsonarismo tão reacionário consolidado no poder como temos no Acre.

Em ambos os casos o Ibama está no foco das atenções. A grande questão que fica é: o governo do presidente Lula continuará a assumir este empreendimento devastador para a Amazônia? O Dnit de Lula vai recorrer para anular a sentença de primeira instância? A classe política do Acre vai se mobilizar para fazer com que a rodovia saia do papel? O desgoverno de Gladson Cameli persiste com tal aventura? A minha sugestão é que a prioridade dela seja a reconstrução da BR-364 entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco, que ele e seu presidente Bolsonaro acabaram em quatro anos.

Para ser bem sincero, a construção de uma nova rodovia conectando o Brasil ao Peru não parece encontrar ecos entre a sociedade local. Não sabemos qual o interesse de nossa classe bolsonarista em sua defesa. Nós já temos uma conexão rodoviária com o país vizinho a partir da fronteira do Alto Rio Acre.

Portanto, falar que uma nova estrada é importante para a economia local é balela, já que não aproveitamos nem a que já existe. Ela também não trará benefícios ao Vale do Juruá. Muito pelo contrário. Uma rodovia naquela região tende a fortalecer as organizações criminosas que atuam no tráfico internacional de drogas. Uma estrada seria apenas para assegurar mais agilidade no transporte da droga, hoje feito por rios, igarapés e trilhas no meio da selva.

Portanto, acredito que a sentença da Justiça Federal é a pá de cal para um projeto que já tinha nascido morto. As pressões nacionais e internacionais são muito grandes. O próprio governo peruano também demonstrou não ter interesse pela obra. Com a retomada da agenda ambiental pelo governo Lula, que tem a Floresta Amazônica como uma de suas principais preocupações, é certo que já se pode engavetar a proposta da rodovia Cruzeiro do Sul-Pucallpa - pelo menos até a data de um eventual retorno da extrema-direita a Brasília.  

Até lá, as comunidades ribeirinhas, extrativistas, de assentamentos do Incra, e em especial dos nossos povos indígenas - contactados e isolados - podem dormir e acordar tranquilas. Enquanto não houver a estrada (nem mesmo um projeto), a segurança destas amazônidas está garantida.   

A aguardar as manifestações do governo Lula… 

 

Abaixo, uma seleção de artigos sobre a rodovia Pucallpa-Cruzeiro do Sul que escrito desde 2019 


Cruzeiro do Sul/Pucallpa: uma rodovia de resultados econômicos duvidosos, mas de  danos sociais e ambientais concretos 

 

Em manifesto, indígenas alertam sobre impactos de rodovia entre Brasil e Peru no Juruá  

 

Audiência pública expõe as reais intenções de quem defende nova rodovia com Peru  

 

Bolsonaristas defendem mais uma estrada em região de floresta intacta do Acre

 

Peru não quer saber de nova rodovia para o Brasil; o Acre, sim

 

Vai ser uma destruição insana da natureza, diz secretário-geral da SOS Amazônia ao analisar impactos do PL 6024 no Juruá 

 

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quarta-feira, 14 de junho de 2023

Integrar para devastar

Amacro se consolida como nova-velha zona de devastação da Amazônia

 

Flona do Iquiri, na divisa Amacro: UCs da região estão entre as mais impactadas (Foto: Divulgação PF)

 

Fabio Pontes

Dos Varadouros de Rio Branco 

 

A deflagração da operação Overflight na manhã desta quarta-feira, 14, realizada entre a Polícia Federal e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), dentro da Floresta Nacional (Flona) do Iquiri, expõe as consequências da herança maldita que representa o projeto de criação de uma zona de expansão da soja e da pecuária na tríplice divisa entre o Amazonas, o Acre e Rondônia, conhecida como Amacro. De acordo com o mais recente Relatório Anual de Desmatamento (RAD) elaborado pelo Mapbiomas, esta região concentrou, apenas em 2022, 11,3% de toda a área desmatada no Brasil. A Amacro se consolidou, ao longo dos últimos quatro anos, como a nova fronteira do desmatamento da Amazônia e do país.


Inspirada no que é outra zona de desenvolvimento(e desmatamento) regional, a Matopiba, a Amacro é uma concepção da política de expansão do agronegócio promovida pelos governadores bolsonaristas do Acre, Gladson Cameli (PP), de Rondônia, Marcos Rocha (União), e do Amazonas, Wilson Lima (União). Na prática, o projeto ficou no papel sem nenhuma política pública comum dos três governos para o fomento da economia local - seja o próprio agronegócio, a agricultura familiar, comércio ou algo assim. O que funcionou muito bem em sintonia foi a consolidação do desmonte da política ambiental pelo trio de gestores.

O resultado tem sido o verdadeiro desastre para a preservação da Amazônia numa área bastante pressionada por atividades como a pecuária, a extração de madeira e a grilagem de terras públicas. A região sul e sudeste do Amazonas, composta pelos municípios de Boca do Acre, Lábrea e Humaitá, é a mais impactada. Além das invasões cometidas por quem já é ou mora na região, pessoas saídas do Acre e de Rondônia agravam o cenário. A disponibilidade de estradas e ramais facilita a integração de crimes contra a preservação da floresta. O desmonte da política ambiental pelos três governos, além da agenda federal de abrir a porteira para a boiada passar, tocada por Jair Bolsonaro (PL), agravou a situação.

Segundo os dados do Mapbiomas, o desmatamento na zona Amacro, entre 2019 e 2022, foi de 759 mil hectares. O ano eleitoral de 2022 foi o pior, com 231 mil hectares de Floresta Amazônica devastada. De acordo com o RAD, cinco estados concentram mais da metade da área devastada do país ao longo do ano passado; entre eles, o Amazonas. O estado só ficou atrás do Pará no ranking nacional de desmatamento. Sozinho, respondeu por 13,3% da área desmatada no país. Na comparação com 2021, o desmatamento em território amazonense saltou 37%.

O maior crescimento de floresta devastada de um ano para outro, na zona Amacro, foi o do Acre, com 39%. Em 2021, o estado perdeu 66.242 hectares de cobertura florestal; ano passado, foram 92.189 hectares. Em Rondônia, a elevação foi a menor: 6%. Os três estados estão na lista dos 10 maiores desmatadores de 2022. Dos 50 municípios líderes em registro de desmatamento no país, 16 estão no Acre, Amazonas e Rondônia, incluindo as capitais Porto Velho e Rio Branco.

Desde 2019 tenho acompanhado com bastante atenção os efeitos provocados pela proposta Amacro. Afinal de contas, aqui na capital acreana, como atestam os números, as consequências saltam aos olhos - e às narinas. A cada período das queimadas, passamos dias e mais dias respirando um ar extremamente poluído. Aqui estamos no corredor da conexão Amacro. Temos a BR-364 que nos liga a Porto Velho, e a BR-317 até Boca do Acre, no Amazonas.

Em meio a toda essa expansão da devastação na nossa tríplice divisa, estão as unidades de conservação e as terras indígenas. A Flona Iquiri é apenas uma delas. Também há as reservas extrativistas Arapixi e Chico Mendes. Esta última desponta como uma das mais desmatadas no último quadriênio. A TI Karipuna, em Porto Velho, localizada próxima às margens da BR-364, é outra vítima sensível deste processo.

Não se entende a razão pela qual o trio de governadores bolsonaristas do Acre, Amazonas e Rondônia defende uma zona de desenvolvimento para a região. O agronegócio já é uma atividade econômica bastante consolidada. Grandes fazendas de gado foram abertas desde o início da política da ditadura militar (1964-1985) para a ocupação (ou devastação) da Amazônia. De uns anos para cá, a pecuária vem sendo substituída pela monocultura da soja. Ao longo das BRs 364 e 317 já não é possível encontrar áreas de floresta. A última remanescente é a TI Campinas Katukina, do povo Noke K’oi, no município de Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá.

Que a deflagração da operação Overflight seja o início da retomada da presença do Estado brasileiro na região. Já que os atuais governadores atuam no sentido de flexibilizar e desburocratizar as regras ambientais para não atrapalhar quem quer produzir (assim ouvimos à exaustão), que ao menos o governo federal faça o seu dever de proteger UCs e TIs das práticas criminosas.

Como dito, o agronegócio já ocupa uma imensa área consolidada. O Estado não pode mais tolerar -muito menos fomentar - que as últimas áreas de floresta continuem a ser devastadas. A Amacro poderia unir forças, sim, para políticas de fomento ao pequeno e médio produtor rural e uma economia de base extrativista e florestal sustentáveis. Temos bons exemplos, basta o poder público garantir apoio.     

 

Leia também:

Amacro: a nova (velha) fronteira do desmatamento na Amazônia    

Governadores da nova fronteira do desmatamento buscam reeleição

 

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segunda-feira, 12 de junho de 2023

A Política na Floresta

Um (des) governo sub judice



 

Fabio Pontes

Dos Varadouros de Rio Branco 


As cenas de viaturas da Polícia Federal ocupando as rampas de acesso ao Palácio Rio Branco, na manhã de 16 de dezembro de 2021, deflagrando a maior operação de combate à corrupção da história do Acre, poderia ser motivo de revolta e indignação para qualquer cidadão de bem, patriota, conservador, defensor da moral e dos bons costumes. Poderia, mas não o foi. Tanto assim, que o principal investigado, o governador Gladson Cameli (PP), foi eleito para mais quatro anos de mandato - em primeiro turno e numa votação folgada. A reeleição aconteceu menos de um ano após a operação Ptolomeu ganhar o mundo. Poderíamos recorrer à velha máxima de que o eleitor tem memória fraca, mas este não é o melhor dos argumentos. Mesmo se a Ptolomeu tivesse ocorrido um mês antes das eleições, Cameli seria reeleito.


E isso não é resultado da atual gestão ser um exemplo de eficácia. Talvez até se justificaria o êxito eleitoral de Cameli, em meio a incontáveis denúncias de desmandos com a coisa pública, se o seu governo fosse sinônimo de muitíssima competência, com um Acre pujante, economia a mil, qualidade de vida para o povo, serviços públicos de fazer inveja a qualquer estado, obras por todos os cantos (SQN) - o famoso e repugnante “rouba, mas faz”. Porém, esta não é, nem de longe, a nossa realidade.

Muito pelo contrário. Como costumo falar, desde 2019 o Acre vive um estado de desgoverno. Não temos projetos de políticas públicas, o governo não tem um norte, metas, objetivos. Não há grandes obras em execução. Quando há, precisam ser interrompidas por suspeitas de corrupção. Em quatro anos, o desgoverno Cameli deixou a única ligação rodoviária entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul (sua terra natal) ficar destruída. Isso, mesmo com todo o apoio político que lhe era assegurado pelo também desgoverno de Jair Bolsonaro (PL) em Brasília. Todos os ventos lhe eram favoráveis naquele momento, mas a incompetência saltou mais alto.

A situação ficou ainda pior a partir daquele dezembro de 2021, quando mais de 300 agentes da PF cumprindo mandados judiciais expedidos pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), desarticularam a organização criminosa, instalada na alta cúpula do governo do Acre, acusada de desviar quase R$ 1 bilhão dos cofres públicos. Nas quase mil páginas do inquérito, a Polícia Federal define o governador Gladson Cameli como o chefe desta organização criminosa. As investigações ficaram não apenas na figura de Cameli, como também em parentes (pai e irmãos), além das empresas da família, servidores públicos por ele nomeados e empresários.        

De lá para cá, a única obsessão do governador é se ver livre da Justiça. O que ele já não fazia com muito afinco - a administração de um Estado -, ficou ainda pior. Num certo momento, achávamos que a operação Ptolomeu tivesse virado pizza. Afinal, foram quase 15 meses sem “nada acontecer” entre a primeira e a terceira fase da operação. Neste ínterim, o político bolsonarista foi reeleito. A sensação era de total impunidade diante de denúncias tão graves. Até que, em 9 de março passado, mais uma penca de agentes federais voltaram às ruas de Rio Branco para a terceira fase da operação Ptolomeu.

A proposta aqui não é fazer uma cronologia para refrescar a memória do acreano. Como falei acima, este não é o problema. A questão é que, mesmo com o atual governo e o próprio governador mergulhados em suspeitas de corrupção, este mesmo eleitor acreano que adora chamar em praça pública o PT e o presidente Lula de “ladrões”, é o mesmo que finge não enxergar a corrupção, e nem sentir o odor de podridão em volta do Palácio Rio Branco, garantindo mais quatro anos a uma gestão desastrosa e incomptente.

Não há a menor dúvida de que o Acre vive hoje uma grave crise política, social e econômica por conta do desgoverno Cameli. Um desgoverno que está sub judice, na berlinda. Gladson Cameli pode acordar, a qualquer momento, afastado das funções de governador, e até mesmo preso. Lógico que a prisão é uma medida extrema, mas ela já foi pedida pela Polícia Federal, e negada pela ministra do STJ. A situação é tão grave, que Nancy Andrighi acatou os pedidos da PF e do MPF de prorrogação, por mais 180 dias, das medidas cautelares contra o governador acreano e os demais investigados. Entre elas, a retenção do passaporte de Cameli. A medida foi adotada para evitar uma possível fuga.   

Gladson Cameli até pode fazer viagens ao exterior em agendas oficiais, mas também deve ter o salvo-conduto de Nancy Andrighi. Ele não está autorizado a dar um passo em falso, sem consultar a ministra. Assim, foi quando em maio viajou aos Estados Unidos para agendas na área ambiental - logo Cameli, responsável por uma política de desmonte ambiental que levou o Acre a taxas recordes de desmatamento da Amazônia nos últimos quatro anos. (Leia Passaporte Verde)

A decisão da ministra de acatar os pedidos feitos pela Procuradoria da República e Polícia Federal mostra que as provas obtidas no inquérito da operação Ptolomeu são robustas. Se houvesse falhas ou ilegalidades no decorrer das apurações, a magistrada já tinha anulado o processo. Aliás, este foi um dos argumentos dos advogados ao tentar anular processo, alegando que a PF teria investigado o filho (uma criança) do governador.

Todos os recursos impetrados pela milionária defesa do governador acreano foram rejeitados, não só em decisão monocrática de Nancy Andrighi, como das turmas do STJ. A única exceção é para que Gladson possa novamente conversar com o pai, o senhor Eládio Cameli - desde que seja comprovado o estado de saúde grave dele. Pai e filho estão impedidos de ter contato como uma das medidas cautelares pedidas pela polícia. Nunca antes na história do Acre nós vivemos situações deste tipo. O Palácio Rio Branco ocupado pela PF e a primeira-família do Estado num quadro tão vexatório.    

Mesmo com todo o estado de inércia em que nos encontramos, o bolsonarismo e o antipetismo reinante no Acre garantem sobrevida a tudo isso. É aquela velha coisa: não sendo do PT, está tudo certo. A elevada rejeição ao que se pode definir como “pensamentos da esquerda” é consequência do domínio religioso das igrejas evangélicas, que, como bem sabemos, é uma das principais bases do bolsonarismo reacionário - tudo em nome de seus valores e crenças religiosas.

Valores estes que têm dois pesos e duas medidas. Ao mesmo tempo em que crucifica qualquer suspeita de corrupção ou deslizes do endemonizado PT, afaga-se as claras evidências de malversação praticadas por políticos inescrupulosos identificados com tais princípios conservaidor-religioso. Isso vale tanto para o próprio Bolsonaro, quanto para Gladson Cameli.


A democracia corrompida

Junto a isso, pesa o fato de um dos principais mecanismos de vigilância e defesa da democracia, uma espécie de fiscal dos governos, que é a imprensa, no Acre estar lambuzada com tantos recursos públicos da verba de mídia. O grupo político (também conhecido como balaio de gatos)  que hoje ocupa o poder, passou 20 anos na oposição acusando os governos petistas de usar o dinheiro da propaganda oficial para “comprar” a linha editorial dos veículos de comunicação. Agora no poder, fazem-o pior. O governo Gladson Cameli usa dinheiro do contribuinte para calar a imprensa, impedindo-a de trazer à luz - ou não se aprofundar mais - os incontáveis casos de corrupção de seu governo. Em outras palavras, o governo Gladson Cameli corrompe a democracia ao impedir o exercício de uma imprensa livre.

Ainda bem que hoje as redes sociais furam essa censura estatal. É graças ao trabalho alternativo feito por este jornalista, em parceria com o Portal do Rosas, do colega Leonildo Rosas, que destrinchamos o robusto inquérito da operação Ptolomeu. Foi por conta deste trabalho que pautamos a imprensa nacional, mostrando os desmandos que acontecem no Acre. Aquilo que tentavam ocultar aqui, era exposto para todo o país. (Leia o Especial Esquemão Azul)

Vivemos uma crise sem precedentes na nossa história. Temos um desgoverno paralisado. Uma gestão desastrosa. Um governo suspeito e sub judice. Abarrotada de propaganda governamental (o que às vezes torna a visita a alguns sites até desconfortável), nossa imprensa vive num universo paralelo.  

E, assim, infelizmente, o Acre caminha a passos largos rumo ao retrocesso. E o pior: sem perspectiva de encontrar uma luz no fim do túnel. Enquanto este bolsonarismo extremista vigorar como principal força política da região (sem data para expirar), o Acre continuará a eleger políticos do quilate do que temos hoje. Pessoas que, além de representarem o que há de mais arcaico e reacionário no pensamento político, mostram-se verdadeiros incompetentes no trato da gestão administrativa - como bem define o cientista político Israel Souza em seu artigo no Varadouro.

O Acre já teve dias bem melhores.
Que possamos, o mais rápido possível, voltar aos bons tempos.           

 

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quinta-feira, 8 de junho de 2023

O bolsonarismo que entorpece

A importância da “batalha das ideias” na luta contra o bolsonarismo 


Israel Souza*


O bolsonarismo é o fenômeno político mais significativo da última década. Gostemos ou não. Essa é uma verdade incontornável. Sua força é tal que, em pouco tempo, conseguiu arrastar para sua órbita parte da nova e da tradicional direita, debilitando, por consequência, as frações deste espectro político que a ele não se alinharam.  Com o bolsonarismo, forças políticas abertamente inimigas da democracia - a exemplo de certos militares -, que haviam se enfraquecido com a “abertura democrática” no país, voltaram ao poder pela porta da frente, abençoadas pelo sufrágio popular. Resultado: poucas vezes em sua história, nossa frágil democracia se viu tão ameaçada por dentro como agora. Por tudo o que já veio à luz desde que perdeu as últimas eleições, é perfeitamente lícito afirmar que, caso Bolsonaro houvesse sido reeleito, ela não sobreviveria.   

Como é sobejamente sabido, via de regra, os bolsonaristas são toscos, truculentos, voluntaristas e autoritários. Alimentam-se de polêmica e, por isso, travam ininterrupta luta ideológico-política contra seus adversários, os reais e os imaginários. Principalmente, contra os imaginários. Não obstante, somemos a isso tudo outro de seus traços mais salientes, a saber: a incompetência. Governantes bolsonaristas são péssimos gestores. Quanto a isso, Bocalom (além do próprio Bolsonaro, claro) é figura demasiado emblemática.

Não foi por acaso que, há apenas dois meses da gestão do atual prefeito de Rio Branco, os garis que protestavam contra o atraso de seus salários foram duramente reprimidos pela Polícia Militar, a pedido de membros de sua equipe de governo. Alguns dizem até que foi a pedido dele mesmo. O atraso do salário dos garis já contava três meses. Estavam passando dificuldades. E o que receberam pela justa e justificável cobrança foi repressão, humilhação pública, como se bandidos fossem.   

Capital do estado do Acre, sob a gestão de um prefeito bolsonarista, a cidade de Rio Branco está completamente abandonada. Tanto sua periferia como seu centro. Tantos são os buracos que as ruas parecem formar uma cratera só. E, no entanto, o prefeito reivindica para si o qualitativo de “bom gestor”.  

De fato, se cuidado de uma cidade se resumisse a pintar tudo de azul - como vem fazendo em sua patética guerra ideológica -, certamente ele seria bom gestor. E dos melhores. Sem páreo. Temos ante nossos olhos uma situação paradoxal. O fato de concentrarem toda sua atenção e energia na guerra ideológica faz com que os governantes bolsonaristas tenham desempenho abaixo do medíocre. São péssimos gestores. Para dizer de um modo ainda mais direto: o êxito na guerra ideológica que travam leva, necessariamente, ao fracasso na gestão.  

Entretanto, em que pese o fracasso na gestão, os arroubos autoritários, as mentiras, as maldades e mesmo os crimes que cometem, a guerra político-ideológica garante uma base de apoio popular praticamente inamovível. Diríamos mesmo que parte graúda desta base é formada por eleitores que hipotecam apoio a eles, não apesar de tudo de ruim que fazem, mas justamente por causa de tudo de ruim que fazem.

Sejamos francos e diretos: quando imaginamos ver pessoas reclamando da diminuição do preço dos combustíveis e do gás de cozinha, protestando pelo ganho dos acionistas da Petrobrás, como agora no governo Lula? 

Por seu turno e noutro plano, sem apresentar nada significativo em seu(s) governo(s), Gladson Cameli**  bateu todos os seus principais adversários nas últimas eleições e figura muito bem avaliado nas pesquisas de opinião. Esses exemplos, apenas dois entre muitos outros que poderíamos trazer para a reflexão, são um sinal nada desimportante dos dias que atravessamos. 

Devemos reconhecer o quanto antes que, segundo seus interesses, o bolsonarismo fez um notável trabalho de educação política, atingindo estratos sociais os mais diversos. Dos mais populares aos mais elitistas. Movidos por fake news, teorias da conspiração e outros recursos ideológicos, seus apoiadores mais simples demonstram fidelidade canina, ainda que, por outro lado, sintam na pele a precarização de suas condições materiais de existência.

Por um lado, isso nos força a acrescentar entre as características do bolsonarismo certa dose de “sadismo” por parte de alguns de seus adeptos. Mesmo sofrendo pelas ações de seus líderes, alguns continuam fiéis. Por outro lado, sem lugar a dúvidas, demonstra que as forças democráticas perdemos em larga medida o contato e o diálogo com as bases populares. Isto porque comunicação não é só falar. Não é monólogo. É, sobretudo, entender e se fazer entendido, alcançando ao fim do diálogo a confiança do interlocutor. A realidade mostra que temos falhado muito nisso. 

Nesses tempos de avassaladora força das redes sociais, de que os bolsonaristas muito se valem como canal de comunicação, é preciso urgentemente retomar este contato com as bases populares e dar a ele outros formatos, flexíveis e dinâmicos, a fim de garantir eficácia e amplitude. 

A esta altura, a conclusão parece um tanto óbvia. Embora portadoras de poderosa eloquência, nem sempre as “questões materiais” falam por si mesmas e é um tanto incerto e temerário que esperemos por isso, isto é, que o fracasso da gestão dos bolsonaristas (como Bocalom) leve, espontânea e inelutavelmente, à perda de apoio popular. Ora, as questões materiais são sempre compreendidas a partir de certa perspectiva e esta, por sua vez, é sempre fruto de um processo de construção, de educação, no sentido amplo do termo. 

Cumpre salientar que as forças antidemocráticas que ora nos ameaçam só foram exitosas onde falhamos. Só se fizerem presentes onde estávamos ausentes e se fortaleceram alimentando-se de nossas fraquezas. Sem querer simplificar as coisas em demasia, achamos que já seria um grande avanço para as forças democráticas se voltarmos a encarrar a política em sua dimensão educativa e assumirmos aí o papel que nos cabe, como o faz agora a equipe do novo Varadouro, a que tenho a honra de me juntar.
A nosso ver, no momento, essa é uma de nossas principais tarefas e representa, igualmente, um dos nossos principais desafios. Voltemos à batalha das ideias.

 

*Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).


 (**Para ser justo, vale dizer que, embora tenha apoiado Bolsonaro nas últimas eleições, Cameli nunca foi um bolsonarista raiz. Sua condução no trato da pandemia da Covid-19 é prova cabal disso. De toda forma, não temos dúvida de que, se Bolsonaro tivesse sido reeleito, ele contaria com o apoio do governador. Cameli entra aqui mais como um exemplo demonstrativo de que, mesmo com uma gestão ruim, errática, acossada por várias denúncias de corrupção, segue fortemente apoiada em razão da atmosfera ideológica em que nos encontramos.)


segunda-feira, 5 de junho de 2023

Violências amazônicas

 Bruno Araújo e Dom Phillips: vítimas de uma violência histórica e cotidiana da Amazônia

Batida policial na periferia de Rio Branco, capital mais violenta do país em 2017 (Foto: Douglas Barros)

 

Por Fabio Pontes 

Dos Varadouros de Rio Branco

Nesta semana o Brasil e o mundo lembram o um ano do inominável crime cometido contra o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Assassinatos bárbaros que chocaram e revoltaram a todos nós. Ficamos (e ainda estamos) estarrecidos. A revelação da forma covarde e brutal de como as vidas deles foram tiradas nos deixou em estado de choque. Para mim, enquanto colega de profissão de Dom Phillips, o episódio continua muito marcante. Fez-me criar uma sensação de insegurança, medo e precaução no exercício do jornalismo. Afinal de contas, sou um jornalista amazônida, que vive na Amazônia, e estou a toda hora lidando com a cobertura de temas perigosos, numa região historicamente violenta.


Dom Phillips e Bruno Pereira foram vítimas desta violência histórica que nos cerca aqui na Amazônia há décadas. À época do crime, tentou-se restringir os assassinatos apenas ao contexto político do Brasil, já que vivíamos um pleno desgoverno com Jair Bolsonaro ocupando o Palácio do Planalto. Nossa situação, que já era de pavor com a guerra travada entre PCC e CV pelo controle das rotas do tráfico nas fronteiras amazônicas, ficou pior com um governo que empoderou o crime organizado na Amazônia, facilitando o acesso a armas e a garantia de impunidade aos criminosos ambientais.  

O desmonte de todas as políticas públicas promovido por Bolsonaro - incluindo a ambiental e a indígena - levou as facções criminosas vindas do Sudeste a não ficar só em suas áreas tradicionais de atuação - o tráfico de drogas e de armas. Elas também penetraram em práticas delituosas ambientais típicas da região amazônica, incluindo a extração ilegal de madeira, a grilagem com a venda de lotes, além da atuação no garimpo - sendo este último o crime mais fomentado pelo governo passado, e cujas maiores vítimas são as populaçoes indígenas.

Além de impor o terror para as populações urbanas do Norte brasileiro, essas facções estão embrenhadas nos mais longínquos pontos de nossa zona rural. Das comunidades ribeirinhas às extrativistas, dos projetos de assentamento às aldeias indígenas. Sim, nem mesmo as populações indígenas da Amazônia estão livres da influência de tais organizações. Aqui no Acre já há algum tempo acompanho a situação desta consolidação territorial do crime organizado. A sensação é a de que o Estado perdeu o completo controle da situação.

O assassiato de Dom Phillips e Bruno Araújo é o retrato desta omissão histórica do Estado brasileiro na garantia de sua presença nas fronteiras mais remotas da Amazônia. Se essa omissão é perceptível nos nossos centros urbanos, o que dirá nas cabeceiras dos rios. Não se sabe se o mandante (ou os mandantes) da execução de Dom e Bruno estão associados ao CV ou PCC. O que posso afirmar é que a forma brutal como ela foi feita lembra os casos cotidianos de assassinatos cruéis na nossa região. Em geral, as vítimas destas organizações sofrem torturas de todos os tipos antes do último suspiro. Notícias como essas nos são semanalmente apresentadas. 


Em 2017, o Acre ocupou a segunda posição entre os estados mais violentas. Naquele ano, CV e PCC estavam no auge da guerra pela conquista desta tríplice fronteira Bolpebra: Bolívia, Peru e Brasil. Foram quase 64 assassinatos pra cada grupo de 100 mil habitantes. Segundo o Anuário da Violência do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rio Branco foi a capital com a maior ocorrência de mortes violentas intencionais do país, com 83,7 assassinatos por 100 mil pessoas. Após uma certa consolidação de território pela facção criminosa, as mortes foram diminuindo, mas as sequelas de pânico e insegurança persistem. A violência está em nosso cotidiano. Os mais pobres, moradores dos bairros nas periferias, são as maiores vítimas.


O Anuário da Violência 2022 mostra que um terço das cidades mais violentas do país estão nos estados que formam a chamada Amazônia Legal. Na região, a taxa de violência letal é 38% superior à média nacional. Pelos números temos uma perspectiva do estado de caos e de terra sem lei que vivemos por aqui. E, infelizmente, as estatísticas oficiais não contabilizam as “mortes silenciosas” cometidas pelo tráfico nas áreas mais remotas da selva. Como diz a população local, jovens que viram “comida de onça” ou “prato de piranhas” nos rios. A Floresta Amazônica não pode ser considerada um paraíso.

Um ano após a morte de Dom Phillips e Bruno Araújo, além de representar o pouco avanço na responsabilização dos envolvidos e as possíveis omissões do Estado, mostra que nada mudou nas nossas fronteiras amazônicas em termos de retomada territorial por parte do Estado na região. Ao contrário. A cada dia, as facções consolidam sua hegemonia, deixando todos nós constantemente ameaçados pela violência que elas praticam. As populações rurais, por conta da invisibilidade em que etão mergulhadas, são as mais expostas à truculência do “estado paralelo”.

O governo Lula precisa voltar suas atenções para uma política de fronteira da Amazônia. O crime na nossa região não se resume apenas a estereótipos do grileiro, do garimpeiro, do madeireiro ilegal. O buraco é mais profundo. Os 30 milhões de brasileiros da Amazônia precisam de paz. Há décadas somos vítimas de uma violência que muitos não enxergam - incluindo a violência social, da exclusão, aquela que deixa milhares na miséria. Nossa posição geográfica com os maiores produtores de drogas do continente agrava o cenário.

Infelizmente, Dom e Bruno são apenas mais duas vítimas desta mazela amazônica, que é a violência. A ausência do Estado - passando pela omissão dolosa dos últimos quatro anos - cria o ambiente propício para os criminosos.   

Justiça por Dom e Bruno!

Justiça por todos os invisíveis assassinados diariamente nestas regiões esquecidas e abandonadas do Brasil.  

 

 

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domingo, 4 de junho de 2023

Política na Floresta (podcast 2)

 Os povos indígenas não vão ter sua história apagada, diz a liderança do povo Ashaninka Francisco Piyãko, em entrevista ao podcast Política na Floresta. Neste episódio falamos sobre marco temporal e o novo-velho ambiente político do país e do Accre. Para ele, postura da bancada do Acre, de votar em sua maioria favorável ao marco temporal, era esperada. Segundo Piyãko, apesar de um novo momento proporcionado pelo governo Lula,  movimento indígena não pode baixar a guarda ante um Congresso bolsonarista. "Eles [a classe política do AC] não querem essa vocação que a gente tem. Eles não querem os povos da floresta, os povos indígenas, não querem as reservas extrativistas, o parque nacional."


sexta-feira, 2 de junho de 2023

Rondonização à esquerda

O buraco é mais embaixo, seu Jorge; saco de bondade bancário só contempla os grandes


No rio Madeira, em Porto Velho, soja é embarcada para exportação; grãos também avançam sobre o AC



MONTEZUMA CRUZ
Dos varadouros de Porto Velho


Ninguém segurou o entusiasmo do ex-governador do Acre Jorge Viana (PT), atual presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), durante a Feira RR Show deste ano, em Ji-Paraná. “O Acre tem que aprender com os produtores daqui”, ele proclamou. “Qualquer um de nós tem que olhar pra Rondônia com o olhar da admiração, de um estado que se tiver o apoio do governo federal, que eu acho que tá precisando ter, pra cuidar dessa BR ser duplicada o quanto antes para todos nós sermos atendidos.”


E assim prosseguiu no velho discurso que classifica a BR-364 como “espinha dorsal.” Obviamente, 100% de nós todos desejamos pista dupla nessa estrada. “Isso tem que nos unir, isso tem que ser a nossa bandeira, porque o resto o nosso povo sabe fazer”, disse seu Jorge sem mover as pestanas.


Esse olhar de admiração do ex-governador, senador e diretor da empresa brasileira de helicópteros não pode ser engolido simplesmente como um grande apoio; implica análise mais rigorosa. Vamos condensá-la em breves observações 


1) Essa Feira hoje nasceu do esforço e da organização da agricultura familiar, algo que o Acre sabe existir, pois possui sua Central de Abastecimento (Ceasa) abastecida por chacareiros entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco. São eles os menores tomadores de dinheiro, uma vez que os seus empréstimos são feitos com parentes, compadres ou vizinhos.


2) A cultura não exportadora, somada às micro e pequenas empresas, dá de comer às pessoas, especialmente aos alunos de quase todas as escolas públicas de Rondônia. Pode ser igual no Acre? Pode.
 

3) Seu Jorge, seria impossível ignorar que a cada ano a quitação bancária de grande parte dos massivos financiamentos rurais é empurrada com a barriga. Sempre bondoso com os grandes, o Banco do Brasil destinou R$ 200 bilhões para a Safra 2022/23, dos quais, R$ 24,4 bilhões para agricultores familiares.
 

4) Proposta elaborada por uma comissão externa da Câmara dos Deputados e que debateu o endividamento do campo privilegiou devedores de insumos, fertilizantes, e tradings – empresas que intermedeiam a safra dos produtores com o mercado.
 

5) Uma linha de crédito de até R$ 5 bilhões possibilitou a renegociação das dívidas. Os débitos poderão ser pagos em até 20 anos! com prazo de carência de dois anos. Os encargos financeiros se resumem a uma Taxa de Longo Prazo (TLP) acrescida de 1% ao ano.
 

6) Então, seu Jorge, seu olhar de admiração passaria por aí, uma vez que o senhor desconsidera esse aspecto e vai direto ao elogio, mesmo sabendo que pequenos dificilmente passam pelas portas do BB e do Banco da Amazônia S/A (Basa).
 

7) Quarenta e cinco anos atrás, o BB acenava ao extinto território federal com recursos para financiar lavouras de pequenos agricultores durante o governo do general de Exército Ernesto Geisel. Mas Rondônia não havia ingressado no vagão da ansiedade exportadora, do lucro sobre lucro e da “patriótica” motosserra que avança sobre governos, sejam eles de quais siglas forem.
 

8) Sob a batuta dos bons ministros da agricultura de Geisel e seu sucessor, o também general João Baptista de Oliveira Figueiredo autorizava-se o funcionamento da Comissão de Financiamento da Produção (CFP) e Empréstimos do Governo Federal (EGFs), numa distância oceânica do enorme saco de bondades hoje concedido ao agro.
 

9) Hoje, o sistema bancário, mesmo vendo o rondoniense produzir inhame para exportação, não empresta um real a essa gente. Suas reservas se destinam totalmente ao agro, notadamente a uma parcela mal-intencionada sempre no risco de fraudar projetos.
 

10) E até mesmo o furibundo Banco do Povo de Rondônia, seu Jorge, aquele que financiava pequenos clientes, foi sufocado por ávidos assessores chefes governamentais. Vive hoje de quireras dos pagamentos dos tomadores desses microcréditos, só os recebendo porque, ao contrário de muitos sojicultores e pecuaristas, pobres costumam pagar religiosa e estatutariamente suas contas.
 

11) Seu Jorge lança um olhar de admiração, vendo Rondônia como exemplo. Exemplo de quê, brother? Da exploração ilegal de madeira nobre em diferentes regiões do estado, e das sucessivas falsificações de guias de transporte de produtos florestais? Com as invasões das Terras Indígenas Karipuna e Uru-eu-au-au, diante de mortos e feridos, mais de 50 milhões de metros cúbicos foram roubados de 20 anos para cá.
 

12) Entra e sai governo, esses fatos são repetições do que já ocorreu com os povos Arara, Gavião, Paíter Suruí, Nambikwara e Piripikura entre os anos 1970 e 1980.
 

13) Um dos governadores, Confúcio Moura, entre 2015 e 2016 se disse impotente com a situação dos Uru-eu. Até mandou publicar seu desabafo, no qual recorria a Brasília contra o assalto à mão armada à terra indígena.
 

14) Fala em “aprender com Rondônia.” É de se reconhecer exceções honrosas de bons pagadores de contas de empréstimos e detentores de títulos definitivos de terras. Infelizmente, mesmo corretos, eles são convenientemente usados pelo governo numa mistura com a raça malandra e caloteira.
 

15) A "rondonização" [termo criado uma década atrás] picou o novo “chapeludo” pela mente e costados, a ponto de o seu Jorge enfatizar um lado do progresso e omitir as mazelas de outro.
 

16) A omissão política é uma das mais nocivas em vigor no País.
 

17) Em seu passeio pela RR Show, talvez educadamente – e não era mesmo o momento – o senhor não perguntou a respeito dos esgotos rondonienses, fontes duradouras de nossas moléstias cotidianas.
 

18) Exemplo de saneamento? Nenhum. Na Capital Porto Velho, o esgoto corre a céu aberto há décadas, espalhando a fedentina por toda parte.  A meca do consumo representada pelo único shopping que o diga, pois corre ao lado um desses extensos canais venenosos.
 

19) Tanto o Acre quanto Rondônia estão naquela faixa amazônica de míseros 8% de saneamento básico. Felizmente, algumas saídas podem ser buscadas ainda neste Milênio. Os próximos viventes desfrutarão desse bem público.
 

20) Mas nem tudo está perdido. Limitemo-nos a Rio Branco, que em matéria de abastecimento d'água é privilegiada: seu aquífero abasteceria 1 milhão de habitantes.
 

21) Seu Jorge: ao mesmo tempo em que é agora obrigado judicialmente a falar inglês para exercer tão alta e bem paga função pública, poderia incorporar o aprendizado da história do Guaporé antes da chegada do marechal Rondon e dos milhares de migrantes procedentes de todo o País até os anos 1980. Nesse período foi avassalador o movimento incontrolável um dia autorizado pelo ex-presidente Getúlio Vargas – a Marcha para o Oeste.
 

22) Aleixo Garcia, Hernán Cortez e Francisco Pizarro não fariam igual. No século em que caminharam aqui na Terra não havia caminhões paus-de-arara, nem ônibus da Eucatur.
 

23) Aprenderia, senhor presidente da ApexBrasil, que tanto o Acre quanto Rondônia dispõem – não usam! – do sistema denominado Integração Floresta e Pecuária, pelo qual plantariam o que quisessem sem a necessidade de aumentar derrubadas de árvores nativas, criando desertos semelhantes aos que destruíram grande parte de Mato Grosso e a maior parte do Paraná por todo e sempre.
 

24) A ciência é aliada do agro em Rondônia e no Acre. Falta acordar para isso e ver que, acima da ganância, há lucros palpáveis e contínuos.


25) Ao elogiar Rondônia, seu Jorge, perceba também a necessidade de o Plano Plurianual (PPA) participativo, uma iniciativa do governo federal que busca trazer a sociedade para a sua elaboração, mobilizando diretamente cidadãos, conselhos, associações, sindicatos, grupos, movimentos ou organizações não governamentais. Nesse aspecto, seu estado é que serve de exemplo para Rondônia, pois conseguiu manter milhares de copas de árvores em pé, contendo a fúria exportadora por assim dizer.
 

26) Se leu este texto até aqui entenderá perfeitamente que o agro, “pop e tech” enche barrigas, sim, do gado europeu. O agro e a produção de commodities não matam a fome do povo. 


27) Que tal mudar um pouco a faixa desse disco? O senhor sabe que no regime de consultas participativas (sobre dimensão estratégica, visão de futuro, valores, diretrizes e eixos temáticos), o PPA reuniu 3,2 mil representantes da sociedade civil e de diversos conselhos – ligados a todos os ministérios e entidades vinculadas, mediante fóruns e 120 oficinas temáticas que projetaram 88 projetos.


28) Com a influência e o papel de colaborador que o senhor tem, que tal apoiar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) a cuidar da produção de alimentos e, consequentemente, de quem mais precisa de comida no prato? Parece claro que a Conab deve estar subordinada ao MDA. O combate à fome e a garantia de comida na mesa dos brasileiros dependem do abastecimento de alimentos de quem produz para a população.


29) Vamos ao Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (Pnud Brasil, IPEA e FJP): o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Acre em 2021 situava-se em    0,710 (16º).  O IDH (2021) de Rondônia, 0,700 (18º).


30) Que a “rondonização” seja menos traumática e possamos conter os ímpetos daqueles cujos horizontes só permitiriam uma tênue “acreanização”. Logo ela, tão necessária nesta encruzilhada da vida do norte brasileiro a oeste.


31) Menos teimosia, menos deslumbre e clareza fazem bem ao espírito.  O restante é tertúlia flácida para adormecer vacum a um custo altíssimo e perigoso.


A "rondonização" permitirá?
Cuide-se, Acre.