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quinta-feira, 8 de junho de 2023

O bolsonarismo que entorpece

A importância da “batalha das ideias” na luta contra o bolsonarismo 


Israel Souza*


O bolsonarismo é o fenômeno político mais significativo da última década. Gostemos ou não. Essa é uma verdade incontornável. Sua força é tal que, em pouco tempo, conseguiu arrastar para sua órbita parte da nova e da tradicional direita, debilitando, por consequência, as frações deste espectro político que a ele não se alinharam.  Com o bolsonarismo, forças políticas abertamente inimigas da democracia - a exemplo de certos militares -, que haviam se enfraquecido com a “abertura democrática” no país, voltaram ao poder pela porta da frente, abençoadas pelo sufrágio popular. Resultado: poucas vezes em sua história, nossa frágil democracia se viu tão ameaçada por dentro como agora. Por tudo o que já veio à luz desde que perdeu as últimas eleições, é perfeitamente lícito afirmar que, caso Bolsonaro houvesse sido reeleito, ela não sobreviveria.   

Como é sobejamente sabido, via de regra, os bolsonaristas são toscos, truculentos, voluntaristas e autoritários. Alimentam-se de polêmica e, por isso, travam ininterrupta luta ideológico-política contra seus adversários, os reais e os imaginários. Principalmente, contra os imaginários. Não obstante, somemos a isso tudo outro de seus traços mais salientes, a saber: a incompetência. Governantes bolsonaristas são péssimos gestores. Quanto a isso, Bocalom (além do próprio Bolsonaro, claro) é figura demasiado emblemática.

Não foi por acaso que, há apenas dois meses da gestão do atual prefeito de Rio Branco, os garis que protestavam contra o atraso de seus salários foram duramente reprimidos pela Polícia Militar, a pedido de membros de sua equipe de governo. Alguns dizem até que foi a pedido dele mesmo. O atraso do salário dos garis já contava três meses. Estavam passando dificuldades. E o que receberam pela justa e justificável cobrança foi repressão, humilhação pública, como se bandidos fossem.   

Capital do estado do Acre, sob a gestão de um prefeito bolsonarista, a cidade de Rio Branco está completamente abandonada. Tanto sua periferia como seu centro. Tantos são os buracos que as ruas parecem formar uma cratera só. E, no entanto, o prefeito reivindica para si o qualitativo de “bom gestor”.  

De fato, se cuidado de uma cidade se resumisse a pintar tudo de azul - como vem fazendo em sua patética guerra ideológica -, certamente ele seria bom gestor. E dos melhores. Sem páreo. Temos ante nossos olhos uma situação paradoxal. O fato de concentrarem toda sua atenção e energia na guerra ideológica faz com que os governantes bolsonaristas tenham desempenho abaixo do medíocre. São péssimos gestores. Para dizer de um modo ainda mais direto: o êxito na guerra ideológica que travam leva, necessariamente, ao fracasso na gestão.  

Entretanto, em que pese o fracasso na gestão, os arroubos autoritários, as mentiras, as maldades e mesmo os crimes que cometem, a guerra político-ideológica garante uma base de apoio popular praticamente inamovível. Diríamos mesmo que parte graúda desta base é formada por eleitores que hipotecam apoio a eles, não apesar de tudo de ruim que fazem, mas justamente por causa de tudo de ruim que fazem.

Sejamos francos e diretos: quando imaginamos ver pessoas reclamando da diminuição do preço dos combustíveis e do gás de cozinha, protestando pelo ganho dos acionistas da Petrobrás, como agora no governo Lula? 

Por seu turno e noutro plano, sem apresentar nada significativo em seu(s) governo(s), Gladson Cameli**  bateu todos os seus principais adversários nas últimas eleições e figura muito bem avaliado nas pesquisas de opinião. Esses exemplos, apenas dois entre muitos outros que poderíamos trazer para a reflexão, são um sinal nada desimportante dos dias que atravessamos. 

Devemos reconhecer o quanto antes que, segundo seus interesses, o bolsonarismo fez um notável trabalho de educação política, atingindo estratos sociais os mais diversos. Dos mais populares aos mais elitistas. Movidos por fake news, teorias da conspiração e outros recursos ideológicos, seus apoiadores mais simples demonstram fidelidade canina, ainda que, por outro lado, sintam na pele a precarização de suas condições materiais de existência.

Por um lado, isso nos força a acrescentar entre as características do bolsonarismo certa dose de “sadismo” por parte de alguns de seus adeptos. Mesmo sofrendo pelas ações de seus líderes, alguns continuam fiéis. Por outro lado, sem lugar a dúvidas, demonstra que as forças democráticas perdemos em larga medida o contato e o diálogo com as bases populares. Isto porque comunicação não é só falar. Não é monólogo. É, sobretudo, entender e se fazer entendido, alcançando ao fim do diálogo a confiança do interlocutor. A realidade mostra que temos falhado muito nisso. 

Nesses tempos de avassaladora força das redes sociais, de que os bolsonaristas muito se valem como canal de comunicação, é preciso urgentemente retomar este contato com as bases populares e dar a ele outros formatos, flexíveis e dinâmicos, a fim de garantir eficácia e amplitude. 

A esta altura, a conclusão parece um tanto óbvia. Embora portadoras de poderosa eloquência, nem sempre as “questões materiais” falam por si mesmas e é um tanto incerto e temerário que esperemos por isso, isto é, que o fracasso da gestão dos bolsonaristas (como Bocalom) leve, espontânea e inelutavelmente, à perda de apoio popular. Ora, as questões materiais são sempre compreendidas a partir de certa perspectiva e esta, por sua vez, é sempre fruto de um processo de construção, de educação, no sentido amplo do termo. 

Cumpre salientar que as forças antidemocráticas que ora nos ameaçam só foram exitosas onde falhamos. Só se fizerem presentes onde estávamos ausentes e se fortaleceram alimentando-se de nossas fraquezas. Sem querer simplificar as coisas em demasia, achamos que já seria um grande avanço para as forças democráticas se voltarmos a encarrar a política em sua dimensão educativa e assumirmos aí o papel que nos cabe, como o faz agora a equipe do novo Varadouro, a que tenho a honra de me juntar.
A nosso ver, no momento, essa é uma de nossas principais tarefas e representa, igualmente, um dos nossos principais desafios. Voltemos à batalha das ideias.

 

*Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).


 (**Para ser justo, vale dizer que, embora tenha apoiado Bolsonaro nas últimas eleições, Cameli nunca foi um bolsonarista raiz. Sua condução no trato da pandemia da Covid-19 é prova cabal disso. De toda forma, não temos dúvida de que, se Bolsonaro tivesse sido reeleito, ele contaria com o apoio do governador. Cameli entra aqui mais como um exemplo demonstrativo de que, mesmo com uma gestão ruim, errática, acossada por várias denúncias de corrupção, segue fortemente apoiada em razão da atmosfera ideológica em que nos encontramos.)


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