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sexta-feira, 2 de junho de 2023

Rondonização à esquerda

O buraco é mais embaixo, seu Jorge; saco de bondade bancário só contempla os grandes


No rio Madeira, em Porto Velho, soja é embarcada para exportação; grãos também avançam sobre o AC



MONTEZUMA CRUZ
Dos varadouros de Porto Velho


Ninguém segurou o entusiasmo do ex-governador do Acre Jorge Viana (PT), atual presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), durante a Feira RR Show deste ano, em Ji-Paraná. “O Acre tem que aprender com os produtores daqui”, ele proclamou. “Qualquer um de nós tem que olhar pra Rondônia com o olhar da admiração, de um estado que se tiver o apoio do governo federal, que eu acho que tá precisando ter, pra cuidar dessa BR ser duplicada o quanto antes para todos nós sermos atendidos.”


E assim prosseguiu no velho discurso que classifica a BR-364 como “espinha dorsal.” Obviamente, 100% de nós todos desejamos pista dupla nessa estrada. “Isso tem que nos unir, isso tem que ser a nossa bandeira, porque o resto o nosso povo sabe fazer”, disse seu Jorge sem mover as pestanas.


Esse olhar de admiração do ex-governador, senador e diretor da empresa brasileira de helicópteros não pode ser engolido simplesmente como um grande apoio; implica análise mais rigorosa. Vamos condensá-la em breves observações 


1) Essa Feira hoje nasceu do esforço e da organização da agricultura familiar, algo que o Acre sabe existir, pois possui sua Central de Abastecimento (Ceasa) abastecida por chacareiros entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco. São eles os menores tomadores de dinheiro, uma vez que os seus empréstimos são feitos com parentes, compadres ou vizinhos.


2) A cultura não exportadora, somada às micro e pequenas empresas, dá de comer às pessoas, especialmente aos alunos de quase todas as escolas públicas de Rondônia. Pode ser igual no Acre? Pode.
 

3) Seu Jorge, seria impossível ignorar que a cada ano a quitação bancária de grande parte dos massivos financiamentos rurais é empurrada com a barriga. Sempre bondoso com os grandes, o Banco do Brasil destinou R$ 200 bilhões para a Safra 2022/23, dos quais, R$ 24,4 bilhões para agricultores familiares.
 

4) Proposta elaborada por uma comissão externa da Câmara dos Deputados e que debateu o endividamento do campo privilegiou devedores de insumos, fertilizantes, e tradings – empresas que intermedeiam a safra dos produtores com o mercado.
 

5) Uma linha de crédito de até R$ 5 bilhões possibilitou a renegociação das dívidas. Os débitos poderão ser pagos em até 20 anos! com prazo de carência de dois anos. Os encargos financeiros se resumem a uma Taxa de Longo Prazo (TLP) acrescida de 1% ao ano.
 

6) Então, seu Jorge, seu olhar de admiração passaria por aí, uma vez que o senhor desconsidera esse aspecto e vai direto ao elogio, mesmo sabendo que pequenos dificilmente passam pelas portas do BB e do Banco da Amazônia S/A (Basa).
 

7) Quarenta e cinco anos atrás, o BB acenava ao extinto território federal com recursos para financiar lavouras de pequenos agricultores durante o governo do general de Exército Ernesto Geisel. Mas Rondônia não havia ingressado no vagão da ansiedade exportadora, do lucro sobre lucro e da “patriótica” motosserra que avança sobre governos, sejam eles de quais siglas forem.
 

8) Sob a batuta dos bons ministros da agricultura de Geisel e seu sucessor, o também general João Baptista de Oliveira Figueiredo autorizava-se o funcionamento da Comissão de Financiamento da Produção (CFP) e Empréstimos do Governo Federal (EGFs), numa distância oceânica do enorme saco de bondades hoje concedido ao agro.
 

9) Hoje, o sistema bancário, mesmo vendo o rondoniense produzir inhame para exportação, não empresta um real a essa gente. Suas reservas se destinam totalmente ao agro, notadamente a uma parcela mal-intencionada sempre no risco de fraudar projetos.
 

10) E até mesmo o furibundo Banco do Povo de Rondônia, seu Jorge, aquele que financiava pequenos clientes, foi sufocado por ávidos assessores chefes governamentais. Vive hoje de quireras dos pagamentos dos tomadores desses microcréditos, só os recebendo porque, ao contrário de muitos sojicultores e pecuaristas, pobres costumam pagar religiosa e estatutariamente suas contas.
 

11) Seu Jorge lança um olhar de admiração, vendo Rondônia como exemplo. Exemplo de quê, brother? Da exploração ilegal de madeira nobre em diferentes regiões do estado, e das sucessivas falsificações de guias de transporte de produtos florestais? Com as invasões das Terras Indígenas Karipuna e Uru-eu-au-au, diante de mortos e feridos, mais de 50 milhões de metros cúbicos foram roubados de 20 anos para cá.
 

12) Entra e sai governo, esses fatos são repetições do que já ocorreu com os povos Arara, Gavião, Paíter Suruí, Nambikwara e Piripikura entre os anos 1970 e 1980.
 

13) Um dos governadores, Confúcio Moura, entre 2015 e 2016 se disse impotente com a situação dos Uru-eu. Até mandou publicar seu desabafo, no qual recorria a Brasília contra o assalto à mão armada à terra indígena.
 

14) Fala em “aprender com Rondônia.” É de se reconhecer exceções honrosas de bons pagadores de contas de empréstimos e detentores de títulos definitivos de terras. Infelizmente, mesmo corretos, eles são convenientemente usados pelo governo numa mistura com a raça malandra e caloteira.
 

15) A "rondonização" [termo criado uma década atrás] picou o novo “chapeludo” pela mente e costados, a ponto de o seu Jorge enfatizar um lado do progresso e omitir as mazelas de outro.
 

16) A omissão política é uma das mais nocivas em vigor no País.
 

17) Em seu passeio pela RR Show, talvez educadamente – e não era mesmo o momento – o senhor não perguntou a respeito dos esgotos rondonienses, fontes duradouras de nossas moléstias cotidianas.
 

18) Exemplo de saneamento? Nenhum. Na Capital Porto Velho, o esgoto corre a céu aberto há décadas, espalhando a fedentina por toda parte.  A meca do consumo representada pelo único shopping que o diga, pois corre ao lado um desses extensos canais venenosos.
 

19) Tanto o Acre quanto Rondônia estão naquela faixa amazônica de míseros 8% de saneamento básico. Felizmente, algumas saídas podem ser buscadas ainda neste Milênio. Os próximos viventes desfrutarão desse bem público.
 

20) Mas nem tudo está perdido. Limitemo-nos a Rio Branco, que em matéria de abastecimento d'água é privilegiada: seu aquífero abasteceria 1 milhão de habitantes.
 

21) Seu Jorge: ao mesmo tempo em que é agora obrigado judicialmente a falar inglês para exercer tão alta e bem paga função pública, poderia incorporar o aprendizado da história do Guaporé antes da chegada do marechal Rondon e dos milhares de migrantes procedentes de todo o País até os anos 1980. Nesse período foi avassalador o movimento incontrolável um dia autorizado pelo ex-presidente Getúlio Vargas – a Marcha para o Oeste.
 

22) Aleixo Garcia, Hernán Cortez e Francisco Pizarro não fariam igual. No século em que caminharam aqui na Terra não havia caminhões paus-de-arara, nem ônibus da Eucatur.
 

23) Aprenderia, senhor presidente da ApexBrasil, que tanto o Acre quanto Rondônia dispõem – não usam! – do sistema denominado Integração Floresta e Pecuária, pelo qual plantariam o que quisessem sem a necessidade de aumentar derrubadas de árvores nativas, criando desertos semelhantes aos que destruíram grande parte de Mato Grosso e a maior parte do Paraná por todo e sempre.
 

24) A ciência é aliada do agro em Rondônia e no Acre. Falta acordar para isso e ver que, acima da ganância, há lucros palpáveis e contínuos.


25) Ao elogiar Rondônia, seu Jorge, perceba também a necessidade de o Plano Plurianual (PPA) participativo, uma iniciativa do governo federal que busca trazer a sociedade para a sua elaboração, mobilizando diretamente cidadãos, conselhos, associações, sindicatos, grupos, movimentos ou organizações não governamentais. Nesse aspecto, seu estado é que serve de exemplo para Rondônia, pois conseguiu manter milhares de copas de árvores em pé, contendo a fúria exportadora por assim dizer.
 

26) Se leu este texto até aqui entenderá perfeitamente que o agro, “pop e tech” enche barrigas, sim, do gado europeu. O agro e a produção de commodities não matam a fome do povo. 


27) Que tal mudar um pouco a faixa desse disco? O senhor sabe que no regime de consultas participativas (sobre dimensão estratégica, visão de futuro, valores, diretrizes e eixos temáticos), o PPA reuniu 3,2 mil representantes da sociedade civil e de diversos conselhos – ligados a todos os ministérios e entidades vinculadas, mediante fóruns e 120 oficinas temáticas que projetaram 88 projetos.


28) Com a influência e o papel de colaborador que o senhor tem, que tal apoiar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) a cuidar da produção de alimentos e, consequentemente, de quem mais precisa de comida no prato? Parece claro que a Conab deve estar subordinada ao MDA. O combate à fome e a garantia de comida na mesa dos brasileiros dependem do abastecimento de alimentos de quem produz para a população.


29) Vamos ao Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (Pnud Brasil, IPEA e FJP): o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Acre em 2021 situava-se em    0,710 (16º).  O IDH (2021) de Rondônia, 0,700 (18º).


30) Que a “rondonização” seja menos traumática e possamos conter os ímpetos daqueles cujos horizontes só permitiriam uma tênue “acreanização”. Logo ela, tão necessária nesta encruzilhada da vida do norte brasileiro a oeste.


31) Menos teimosia, menos deslumbre e clareza fazem bem ao espírito.  O restante é tertúlia flácida para adormecer vacum a um custo altíssimo e perigoso.


A "rondonização" permitirá?
Cuide-se, Acre.




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