Páginas

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Efeitos prolongados

Cheia e Covid-19 colocam em risco segurança alimentar de aldeias do Acre 


 Henley Kaxinawá, moradora da aldeia Boa Vista, no Alto Rio Envira. “Água suja e com gosto de ferrugem”, diz. (Foto: Antônio de Carvalho Kaxinawá/março/2021)


As enchentes do início de 2021 que desabrigaram milhares de famílias nas cidades do Acre, também foram e ainda são sentidas pelas populações ribeirinhas e indígenas. Após a vazante dos rios nas aldeias, o cenário é de roçados e plantações inteiras destruídas pelas águas e pelo desbarrancamento das margens, colocando em risco a segurança alimentar de comunidades indígenas pelos próximos meses. O acesso à água potável é outro problema nestas aldeias, já que as fontes foram atingidas pelas inundações. Agora, a única água disponível é a do próprio rio, deixando os indígenas vulneráveis a doenças causadas pelo consumo do líquido impróprio.    

A situação se torna ainda mais preocupante com o agravamento da pandemia no país. Sem seus roçados e criações, os indígenas são obrigados a ter que ir até as cidades com mais frequência comprar comida, ficando expostos à contaminação pelo coronavírus e suas variantes. Apesar de já terem sido imunizados contra a Covid-19 com as duas doses da CoronaVac, muitos rejeitaram a vacina com medo de possíveis efeitos adversos, influenciados por fake news.     

A Terra Indígena Kaxinawá Nova Olinda, localizada no município de Feijó, é uma das mais afetadas pelas cheias do início deste ano no Acre. Já é certo que pelos próximos meses os 686 moradores das cinco aldeias estarão com sua segurança alimentar e hídrica comprometida. Além dos roçados de banana e macaxeira destruídos pela cheia do rio Envira, a diversidade de frutas recém-plantadas pelos indígenas do povo Kaxinawá (autodenominados Huni Kuin) no sistema agroflorestal (SAF) foi afetada. Até as casas de farinha ficaram inutilizáveis. As próprias moradias ficaram comprometidas, e terão de ser reconstruídas. 

Era ainda de madrugada quando as águas do Envira subiram repentinamente. Não houve tempo para salvar nem mesmo as criações de galinhas e porcos, que foram levados pela correnteza com embarcações e motores tão essenciais à sobrevivência dos Kaxinawá. As aldeias da TI Kaxinawá Nova Olinda estão distantes até quatro dias de viagem subindo o Envira – isso quando o rio está em boas condições de navegabilidade. No período seco do ano, pode-se demorar até sete dias viajando em canoas. 

“A gente perdeu muita coisa. Banana, macaxeira, as frutas que plantamos no roçado de banana, abacate, manga, graviola, cupuaçu, cacau, açaí, patoás, bacaba, tudo isso a gente perdeu nas margens do rio. Agora a gente vê a comunidade clamando por uma fonte para resgatar o que perdemos”, diz Antônio de Carvalho Kaxinawá, da aldeia Boa Vista. Por meio do WhatsApp, ele conversou com a reportagem da Amazônia Real desde Feijó, cidade distante 362 quilômetros da capital Rio Branco.

Segundo Antônio de Carvalho Kaxinawá, houve um momento em que os Huni Kuin da Nova Olinda ficaram sem comida. A caça e pesca passaram a ser a salvação. Mas durante as cheias nem sempre se tem sorte de encontrar animais no meio da mata. Como a enchente levou as linhas, anzóis e tarrafas, os indígenas ficaram sem condições de pescar. “A gente passava mais de horas para topar terra [seca] dentro das matas, e a canoa muitas das vezes não dava para fazer a volta dos paus que tinha. Passamos 16 dias sem poder fazer nada. Foi quando faltou alimentos”, lembra Bane, que é o nome de Antônio na língua Huni Kuin.

As cheias levaram três canoas e dois barcos de alumínio de seis e oito metros, estes últimos utilizados para a vigilância. Sem barco e sem diesel, os Huni Kuin não conseguiam socorrer aos desabrigados. Sem as embarcações, afirma Bane, ficava até difícil salvar as galinhas e os porcos. 

O isolamento reforçou dificuldades para os povos indígenas do Alto Envira logo após as cheias. As comunicações foram interrompidas e eles sequer podiam pedir socorro para os órgãos públicos da saúde, da educação e até da prefeitura municipal. Os Huni Kuin estimam que mesmo em seis meses ou um ano não será possível resgatar tudo o que foi perdido em janeiro.

“Para a gente recuperar este bananal aqui vai ser um ano e meio. O que restou de bananeira, para a gente recuperar em 2022, vai ser difícil porque está tudo debaixo d’água. Então a gente vai passar por momentos difíceis porque a água prejudicou bastante”, diz o cacique Clécio Barbosa da Silva Kaxinawá, cacique da aldeia Boa Vista, na TI Kaxinawá Nova Olinda. 

Em um vídeo gravado, em que se vê os pés de banana ainda com muita água acumulada, o cacique Clécio revela o tamanho da perda: “Eu como agente de saúde e cacique desta comunidade me sinto triste com esta situação. Peço apoio e contribuição das instituições para que nos apoiem. Perdemos mais de 80% de nossa produção de amendoim, macaxeira, banana, cará, taioba, laranja, tangerina, abacate, limão, mamão e outras”.


Leia a reportagem completa na Amazônia Real 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

protegidos

Reserva extrativista do Juruá tem todos os seus moradores vacinados 


Além de vacina, ribeirinhos receberam cestas básicas; região foi uma das mais afetadas pelas enchentes, que destruiu roçados (Foto: Ismael Medeiros)


Leandro Altheman - Cruzeiro do Sul (AC)


Francisco Carlos, 54, é uma das dezenas de pessoas que estão na fila no Posto de Saúde do rio Liberdade para receber a sua primeira dose de vacina. Ele é morador da Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade, localizada no município de Cruzeiro do Sul, Vale do Juruá. A unidade de conservação federal foi escolhida pela prefeitura para servir como referência para imunizar as comunidades ribeirinhas do Juruá, enquanto os rios oferecem boas condições de navegabilidade. 

Por conta das dificuldades de logística ocasionadas pelas características do rio Liberdade, a vacinação dentro da reserva acontece antes do fim do “inverno amazônico”, quando a navegação em muitos mananciais fica comprometida por causa da vazante. Vão ser 1.230 moradores da Resex do Liberdade imunizados numa única viagem feita pelos agentes de saúde da prefeitura. 

Em maio de 2020 – ainda no começo da pandemia – as lideranças da Resex do Liberdade divulgaram carta relatando casos de pessoas que teriam contraído a Covid-19 - informando até uma morte - e a falta de assistência por parte das autoridades de saúde federal, estadual e municipal. Segundo o relato, os comunitários doentes não teriam nem mesmo combustível suficiente para chegar à cidade e realizar o tratamento adequado.  Um ano depois, os extrativistas são imunizados para evitar os efeitos devastadores do coronavírus em comunidades tão longínquas e, muitas das vezes, esquecidas pelas autoridades, carecendo do mais básico para uma sobrevivência digna no meio da floresta. 

Enquanto aguarda animado para ser vacinado, Francisco conversa com uma outra moradora da Resex, de 38 anos, que prefere não ter o nome divulgado. Ela parece ainda estar um pouco receosa em receber a vacina. “É tanta coisa que dizem. Não sei de mais nada”. Até pelos cantos mais remotos da Amazônia, as fake news se espalham tão ou mais perigosamente que o vírus.

A maior idade e a boa memória de Francisco lhe dão outra perspectiva sobre as vacinas. Francisco não esqueceu as terríveis perdas que o sarampo, e depois a hepatite, trouxeram para sua família e a comunidade em anos passados.  “O sarampo levou meu pai quando eu tinha nove meses de nascido, depois levou mais cinco irmãos meus. A hepatite também. Antes todo mês morria alguém de hepatite na comunidade. Hoje não morre mais ninguém dessas doenças”, relembra. 

O paradoxo é que a geração mais nova, que cresceu recebendo todas as vacinas, não tem a dimensão de como era a vida, e a morte, antes delas. “Agradeço muito à ciência e tenho fé em Deus que, com essa vacina, tudo vai voltar ao normal”, afirma o extrativista e agricultor.  Tanto Francisco quanto a vizinha ainda receosa com a imunização serão vacinados pela equipe de saúde fluvial da prefeitura de Cruzeiro do Sul. Ao todo, serão 1.230 doses aplicadas nos moradores. da Reserva Extrativista do rio Liberdade. Cerca de 500 famílias vivem neste trecho do rio, afluente do Juruá. 

Aqui, a maioria tira o sustento a partir da produção de farinha de macaxeira, a ‘farinha de Cruzeiro do Sul’, conhecida como a melhor farinha do mundo, e motivo de orgulho para a população local. A alimentação é complementada com a fartura de peixes e caça proporcionada pela floresta, em sua maior parte preservada pelos moradores.

“Essas terras são muito boas para roça de macaxeira”, conta Albecir Brito, agricultor e coordenador da escola local. “O problema é escoar a produção. No verão é muito difícil levar as sacas de farinha pelo rio”, explica. Entre maio a setembro, o verão amazônico é marcado pela diminuição das chuvas. O mesmo rio que em fevereiro transbordou destruindo casas e plantações, vê suas águas baixarem rapidamente, tornando a navegação fluvial difícil e arriscada.

Essas características foram levadas em consideração para a estratégia de imunização escolhida pela prefeitura: ao invés de vacinar por faixa etária, a Secretaria de Saúde optou por vacinar toda a população da Resex do Liberdade acima dos 19 anos de uma vez só. 

O temor era que, com a vazante do rio, as equipes de imunização teriam dificuldade em alcançar as comunidades mais distantes rio acima, algumas das quais situadas dez ou doze horas de viagem de barco, a depender das condições.  “São comunidades distantes e o rio pode abaixar a qualquer momento, dificultando o acesso das equipes”, explica o secretário municipal de saúde, o médico Agnaldo Lima.

O deslocamento das equipes pelo rio é custoso em termos de tempo e recursos financeiros, além dos recursos humanos de que a prefeitura dispõe. Em razão destas dificuldades a prefeitura determinou que a vacinação fosse acompanhada de uma ação itinerante completa de saúde, ação social e de defesa civil. 

Atingidas pelas últimas cheias, alguns moradores perderam casas, móveis e plantações, base de sustento alimentar e de renda. Todas as famílias receberam uma cesta básica para ajudar enquanto se recuperam financeiramente dos prejuízos das alagações. Também foram distribuídos roupas e colchões, enquanto uma equipe da ação social realizou o cadastro do Bolsa Família. 

A ação de saúde conta com 16 profissionais da equipe de saúde fluvial com médicos, dentista, enfermeiras, técnicos e auxiliares de enfermagem. Além da vacinação, a equipe realiza consultas, testagem rápida contra Covid, hepatites e DST, agendamento de exames e dispensa de medicamentos básicos. A iniciativa faz parte de um esforço em otimizar recursos limitados de uma prefeitura no interior do Acre, e principalmente proteger uma população vulnerável durante a pandemia. 

A dificuldade e risco em retirar um paciente com sintomas de febre e falta de ar em viagens por horas a fio em canoas sob o sol e chuvas inclementes da Amazônia, justificam o temor dos moradores e da saúde pública municipal em ter de lidar com a pandemia entre a população ribeirinha. Na maior floresta tropical do mundo, as condições climáticas e de navegação fazem toda a diferença entre a vida e a morte. 

“Estamos aqui protegendo as pessoas contra a Covid. Vamos alcançar praticamente 100% da população nesta faixa etária acima de 18 anos. É esperança que está chegando aqui. Precisamos dar um tratamento especial para estas pessoas para que elas não tenham que se deslocar para a cidade”, disse o prefeito de Cruzeiro do Sul, Zequinha Lima.

Alguns moradores compreendem que receber a vacina contra a Covid - num momento em que falta o imunizante no país - representa um privilégio e, por isso, se empenham em fazer o convencimento dos vizinhos mais reticentes. Parte importante desse esforço de convencimento vem da equipe pedagógica da Escola Estadual Joaquim Nogueira. Mesmo com as aulas suspensas, o trabalho de educação não cessou, especialmente quando informações falsas prejudicam o entendimento sobre a importância das vacinas.  

“Devido aos boatos que existem nas redes, alguns moradores sentem medo, mas com conversa e paciência, temos conseguido mudar essa situação”, explica o professor José Maria Galvão. Desta vez, o privilégio não é definido em função de quem possui maiores recursos financeiros, ou melhores contatos políticos, mas em função de quem está mais vulnerável. “Fomos privilegiados em receber a vacinação para todas as faixas etárias. Vacina para mim significa liberdade, liberdade de viver”, conclui o coordenador Albercir Brito. 

A imunização por todo o esplêndido Vale do Juruá – formado por incontáveis cursos d’água – segue o calendário, até toda a população ribeirinha e rural ser imunizada contra o coronavírus. As equipes de saúde ainda vão subir e descer os rios Valparaíso, Juruá-Mirim, Campinas e o próprio Juruá. A imunização depende agora de novas remessas de vacina por parte do governo federal.