Páginas

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

As vítimas do descaso

 Após descida do rio, indígenas recolhem produtos descartados por comerciantes 

 

A cidade de Jordão, que foi inundada pelo transbordo dos rios (Foto:Divulgação)

 

 Um vídeo com imagens de indígenas Huni Kuin recolhendo objetos e alimentos descartados por comerciantes após a descida das águas dos rios Jordão e Tarauacá, no Acre, que circula nas redes sociais vem causando comoção e revolta em quem assiste às imagens. Os produtos são de comércios que foram inundados pelo transbordamento dos dois rios. 

As intensas chuvas que caíram sobre as cabeceiras dos rios desde o último fim de semana provocaram o transbordamento que afeta comunidades indígenas e ribeirinhas espalhadas ao longo dos dois mananciais. O vídeo, sem autoria identificada, é acompanhado de um relato em que uma voz masculina diz: “Após o nível das águas começar a baixar, o material descartado pelo comércio está sendo reaproveitado pelos indígenas”.

A pequena cidade de Jordão (a 462 KM de Rio Branco) amanheceu na segunda-feira (21) com 70% do perímetro urbano inundado pela cheia dos rios. Ao menos 38 aldeias do povo Huni Kuin foram impactadas, causando a perda de roçados, casas e criação de animais. O bairro Kaxinawa, onde vive a maior parte dos Huni Kuin que moram na cidade, está entre os mais atingidos. Mais de 30% dos moradores de Jordão é composta por indígenas, que se espalham entre as aldeias e os bairros da cidade.

As imagens que mostram os Huni Kuin pegando os alimentos descartados pelo comércio em meio à lama deixada pelas águas do Jordão e Tarauacá foram gravadas na terça (22). Sem contar com nenhum tipo de assistência por parte da prefeitura ou do governo estadual naquele momento, os indígenas não encontraram outra opção senão aproveitar os produtos que tinham ficado debaixo d’água. Procuradas, lideranças indígenas da etnia preferiram não comentar sobre o episódio.

Momentos antes, parlamentares de oposição no Acre já haviam alertado sobre a possibilidade de a população jordãoense passar fome como consequência da enchente. “Se não tiver uma ação imediata, a situação será de muitos transtornos sociais. Hoje temos a falta de uma política de proteção social para alimentar as pessoas, uma ação imediata de levar alimentos, kits de desinfecção das casas”, afirmou o deputado estadual Edvaldo Magalhães (PCdoB) à Amazônia Real.

De acordo com o governo do Estado, 100 cestas básicas, kits de limpeza e água potável e colchões foram entregues em Jordão nesta terça. Mais ajuda imediata será transportada por embarcações a partir do município vizinho de Tarauacá.  Segundo a Secretaria de Assistência Social, ao menos 76 famílias tiveram que deixar suas casas e foram levadas para escolas transformadas em abrigos. A maioria dos desalojados é do povo Huni Kuin, moradores do bairro Kaxinawa.   

Fotos e vídeos enviados à Amazônia Real mostram as tentativas dos Huni Kuin de salvar os seus poucos pertences ao longo de toda a segunda-feira nas aldeias e na cidade. Na maioria das aldeias, a água chegou à altura do teto. Como o transbordamento aconteceu na virada de domingo para segunda-feira, os indígenas não tiveram a oportunidade de retirar os bens, como geladeiras e fogões. Em alguns casos, essa retirada ficou ainda mais inviável, pois a correnteza arrastou embarcações e motores. 


Leia a reportagem completa e assista ao vídeo na página da Amazônia Real

Histórias ameaçadas

Vacinação no Vale do Javari está atrasada e indígenas denunciam que anciões estão morrendo por Covid-19 


Após um cenário de aparente tranquilidade no controle da pandemia da Covid-19 entre as populações indígenas da região amazônica, a doença voltou a representar uma ameaça a comunidades indígenas da Amazônia. Na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, fronteira com o Peru,  a imunização da terceira dose está atrasada e a vacinação das crianças com menos de 12 anos não foi iniciada. O Vale do Javari é o território com maior referência de povos de recente contato e de grupos isolados do país.


Em janeiro deste ano, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) chegou a emitir uma nota alertando para um surto gripal e casos Covid-19 nos territórios indígenas, denunciando falta de assistência técnica, medicamentos e EPIs. Em Roraima, explosões de casos de gripe levou o Conselho Indígena de Roraima a suspender suas atividades presenciais durante 15 dias em janeiro.

Na aldeia Maronal, na TI Vale do Javari, quatro anciãos do povo Marubo morreram entre novembro de 2021 e fevereiro deste ano com suspeita de Covid-19. A morte mais recente aconteceu no último sábado (19), com o falecimento de Luzia Marubo, de 99 anos, considerada a Marubo mais velha moradora da Maronal. Já há alguns dias ela apresentava sintomas de gripe. Por não haver testes nas aldeias, não é possível saber se ela contraiu Covid-19.  

No dia 4 deste mês, uma jovem da mesma aldeia também veio a óbito. Entre os idosos vítimas da doença está Alfredo Marubo, o Ivinimpapa, na língua nativa, de 84 anos, uma das mais importantes lideranças do povo. As outras vítimas são Zacarias Marubo, 83 anos, e Fernanda Joaquim Marubo, 82.

“A Covid se alastrou para toda a região do Vale do Javari. Hoje a gente sofre com as consequências da Covid, principalmente com as sequelas para os mais idosos. A nossa aldeia está em momento de comoção. É uma morte atrás da outra. Para nós é uma situação bastante fora do normal. Por ser uma comunidade pequena, onde todo mundo se conhece, essas mortes abalam muito”, diz Manoel Chorimpa, presidente da Associação de Desenvolvimento Comunitário do Povo Marubo do Alto Rio Curuçá (Asdec), à Amazônia Real, nesta semana. “É uma situação muito triste para a nossa história.”

No último dia 11 a Asdec divulgou nota relatando preocupação com o avanço de casos suspeitos de Covid, e a morte de uma jovem ocorrida no começo do mês em hospital da capital Manaus. “Desde início de julho de 2021, encaminhamos ao DSEI, o programa local de atendimento aos idosos, justamente com as preocupações que hoje estamos vivendo com as sequências de óbitos”, diz trecho da nota.

O contágio entre os mais velhos é a principal preocupação para os Marubo por serem os mais vulneráveis a desenvolver quadros graves da doença, podendo levar à morte. O óbito dos anciãos também representa a perda dos conhecimentos tradicionais do povo Marubo. Para as populações indígenas, seus velhos e velhas são os guardiões de toda a memória ancestral transmitida de geração a geração pela oralidade.

 

Leia a reportagem completa na Amazônia Real



sábado, 19 de fevereiro de 2022

A nossa teoria da conspiração

Governador do Acre pode ter se encontrado com Flávio Bolsonaro para tirar Polícia Federal de seu calcanhar 

 


Além do tremendo barraco protagonizado pela família cristã, conservadora e tradicional Bittar no plenário da Câmara Municipal de Rio Branco, o casal bolsonarista Márcia e Márcio Bittar ganharam as manchetes da imprensa acreana essa semana por articular o encontro entre o encrencado e investigado governador do Acre, Gladson Cameli (PP), com o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), também na mesma situação policial por conta de suas rachadinhas.


Pouco se falou sobre este encontro, que muito tem a dizer, mas ficou oculto. Pelas notícias oficiais, o encontro foi para consagrar o apoio de Cameli à candidatura de Márcia Bittar ao Senado. (Sim, marido e esposa querem transformar o Senado da República em extensão domiciliar, tudo pago pelo contribuinte).

Todavia, o que muita gente finge não saber é que o encontro entre os investigados Gladson Cameli e Flávio Bolsonaro pode ter outro motivo. Encurralado pela superintendência da Polícia Federal no Acre, que o define como o suposto chefe de uma organização criminosa que teria surrupiado quase R$ 1 bilhão dos cofres públicos, o governador do PP está desesperado em busca de uma salvação política, já que do ponto de vista jurídico é quase insustentável.

As provas contra Gladson Cameli são robustas, baseadas em relatórios de inteligência do Coaf. Cameli é flagrado movimentando alguns milhões de reais em dinheiro vivo sem justificar a origem. Deu de presente uma BMW para a esposa, cujo dinheiro, segundo a PF, tem origem em esquema de corrupção - uma lavagem de capitais. O patrimônio do governador evoluiu de forma estratosférica desde que assumiu o Palácio Rio Branco - e ele botou culpa na inflação.

Enfim, a ficha policial do governador é de causar inveja a qualquer batedor de carteiras. Por mais que esteja gastando alguns milhões de reais com os mais caros advogados de Brasília, até aqui, ao que tudo indica, a atuação da defesa parece não surtir efeitos. Nestes últimos dois meses, os investigadores federais ficaram debruçados sobre os sigilos bancário e fiscal do governador, cuja quebra foi autorizada pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Portanto, se as provas já eram bem irredutíveis, tendem a ficar ainda mais fortes, o que pode levar a Polícia Federal a pedir o afastamento de Gladson Cameli da função de governador do Acre, e até mesmo sua prisão. Se a ministra acatará, não sabemos.

Vendo a ele e toda a sua família imprensados pelas investigações, Gladson Cameli foi bater à porta daquele que é apontado como o membro da família Bolsonaro com maior influência sobre a Polícia Federal: o senador das rachadinhas. Desde que assumiu o governo, Jair Bolsonaro trabalha para transformar a PF em sua polícia política para perseguir adversários e proteger seus encrencados filhos. Manda substituir delegados que não atendam a seus caprichos, entre outras interferências.

E o grande responsável por essa eventual ingerência política é o filhote Flávio, a quem o governador Gladson Cameli teria ido pedir súplicas. Ainda em dezembro, já circulava no meio político acreano a notícia de que Cameli iria recorrer ao senador do Republicanos para salvar a sua e a pele da família, com a intermediação de Márcio Bittar. De ex-comunista a bolsonarista fiel, Bittar aparenta ter um bom trânsito com o clã Bolsonaro.    

Meses atrás, a especulação era a de que Bittar interviria por Gladson Cameli junto à família presidencial para tirar a Polícia Federal de seu calcanhar. Para isso, Cameli iria desistir da reeleição para que Márcio Bittar fosse candidato a governador. Porém, ao que tudo indica, o acordão para soterrar a operação Ptolomeu passa por Gladson Cameli declarar a possível atual esposa de Bittar, Márcia Bittar, como sua candidata oficial ao Senado, colocando a máquina estadual à disposição de uma candidata inexpressiva.

Fragilizado politicamente, Cameli sabe que abraçar a candidatura de Márcia Bittar é um suicídio eleitoral, pois consoladaria, ainda mais, a rachadura na sua base política. Outros nomes bem mais expressivos eleitoralmente querem se apresentar como os candidatos oficiais do Palácio Rio Branco ao Senado. Se bem que, com um governador investigado por crime de corrupção, não se sabe se isso é vantajoso. Pelo sim, pelo não, Gladson Cameli tem uma situação bastante complicada.

Por mais que Flávio Bolsonaro acione seus botões junto à alta cúpula da Polícia Federal para sepultar a operação Ptolomeu, isso em si seria um grande escândalo, revelando que o governador acreano tem, sim, muitos podres a esconder, e que apenas a ingerência política dentro da PF será capaz de salvá-lo do afastamento do cargo e até de uma prisão.  

Do ponto de vista eleitoral e político, nada justifica Gladson Cameli abandonar candidaturas muito mais potenciais ao Senado, como as dos deputados federais Alan Rick e Jéssica Sales, para chamar de sua a candidatura de Márcia Bittar, cujo único interesse é atender a caprichos pessoais. Apenas uma possível intervenção gestada pelos Bittar junto ao bolsonarismo para sufocar as investigações da PF justifica este tiro no pé eleitoral de Cameli. Na situação em que ele se encontra, vale tudo até dois tiros em cada um dos pés.

Agora é acompanhar o desenrolar da operação Ptolomeu, que na semana passada completou dois meses. Se nada acontecer daqui pra frente, é porque a superintendência acreana já recebeu ordens de Brasília para colocar tudo na gaveta. Ou pode ser que eu esteja apenas na minha teoria da conspiração, e na semana passada os federais retornem às ruas de Rio Branco e Manaus.

Vamos saber se o encontro entre Gladson Cameli e Flávio Bolsonaro foi proveitoso (para o governador).    

 

 

 

 

Anúncio

 
                                                                                                                                

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Diário de Bordo Nawa

 A autodemarcação Nawa 

 

Nawa tentam desencalhar bajola em navegação épica pelo igarapé Novo Recreio (Foto:Alexandre Noronha/Amazônia Real)
 

 

A fadiga da espera de 22 anos pelo reconhecimento do seu território, agravada pela política anti-indígena do presidente Jair Bolsonaro (PL), mais os impactos causados pelo projeto da construção de uma rodovia na fronteira Brasil-Peru, levaram o povo Nawa, do Acre, a fazer a autodemarcação de sua terra. Após quase serem extintos, expulsos das terras originárias no início do século passado, os sobreviventes agem por conta própria para evitar que os 53 mil hectares reivindicados sejam destruídos por novos invasores. 

A convite do cacique Railson Nawa e de outras lideranças indígenas, a reportagem da agência Amazônia Real navegou, em julho de 2021, pelo rio Moa e pelo igarapé Novo Recreio, além de percorrer mais de 20 quilômetros numa trilha de mata fechada, vivenciando aquilo que pode ser considerado a saga do povo Nawa pela autodemarcação.


É uma saga protagonizada por homens, mulheres e crianças conscientes das ameaças a que estão sujeitos. Eles não se recusam a embarcar em bajolas em dias inteiros dentro da água ou da mata, abrindo trilhas de uma margem de igarapé a outra para proteger a terra indígena. Sem recursos, constroem tapiris nos limites do território reivindicado para sinalizar que, daquele ponto em diante, a área é de domínio de um povo que quer o direito de posse das terras ocupadas por seus antepassados.

A reportagem especial produzida pelos jornalistas Fabio Pontes e Alexandre Noronha, relatada a seguir, conta a história de vida e resistência de um povo indígena e os desafios enfrentados para chegar aos limites de seu território, em uma região da Amazônia onde a floresta (ainda) se encontra intocável. 


Leia esta reportagem mais do que especial em formato de diário de bordo e assista ao documentário na página da Amazônia Real