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sexta-feira, 29 de maio de 2020

A Rodovia dos Imigrantes

Com fronteiras fechadas, imigrantes de várias partes do mundo estão retidas em cidades do Acre


Posto de Fronteira entre Brasil e Peru no Acre; sem poder passar, mais de 200 imigrantes se
algomeram em cidade e em ponte (Fabio Pontes/2019)




A Rodovia Interoceânica foi concebida para servir como a rota mais curta das exportações brasileiras para os mercados asiáticos por meio dos portos peruanos no Oceano Pacífico. Ao invés de ter que cruzar todo o Oceano Atlântico até chegar aos portos da China ou Japão, por exemplo, mercadorias Made in Brazil poderiam ser embarcadas em navios já no Pacífico, reduzindo o tempo de viagem e os custos.

Por cruzar parte das Cordilheiras dos Andes até chegar a Lima, a rodovia mostrou-se inviável do ponto de vista logístico. Para reduzir riscos de acidentes numa região montanhosa, os caminhões precisariam circular com carga reduzida, tornando inviável, economicamente, a rota terrestre até o encontro com o Pacífico. Com isso, a rodovia ficou inutilizada para seu objetivo fim, sendo mais atrativa para turistas e imigrantes, além de ter facilitado o tráfico internacional de drogas.

Desde 2010 o Acre passou a ser uma das rotas internacionais de imigração. A primeira leva foi dos haitianos que deixaram seu país após o forte terremoto que destruiu toda a infraestrutura da ilha, mergulhando-a num caos social e econômico.

O país que já sofria com as mazelas da pobreza se viu ainda mais incapaz de garantir boas condições de vida para sua população, que não teve outra opção a não ser buscar oportunidades em outras nações. À época, o Haiti era ocupado por tropas brasileiras na missão de paz da ONU – a Minustah. O Brasil foi o primeiro país buscado por eles, numa época de economia ainda nos trilhos por aqui.

E a porta de entrada principal escolhida pelos haitianos foi, justamente, o Acre por conta da interligação rodoviária com o restante da América do Sul. Por aqueles tempos, cidades como Brasiléia e Assis Brasil chegaram a concentrar milhares de haitianos. A leva migratório chamou a atenção de todo o mundo.

Com o tempo,  imigrantes de outras nacionalidades da América e da África também descobriram a Rodovia Interoceânica para chegar àquela então potência econômica chamada Brasil – hoje mergulhado numa grave crise social, política, econômica e de saúde pública.

Com a crise que deixa milhões de brasileiros desempregados e de volta à miséria, agora os haitianos fazem o caminho de volta pela mesma Rodovia Interoceânica em busca de oportunidades no Peru, México ou Estados Unidos. Este último é o objetivo principal deles. Com a pandemia do coronavírus que levou ao fechamento das fronteiras na América do Sul, muitos deles foram impedidos de seguir viagem, e hoje moram em escolas no município de Assis Brasil, fronteira com o Peru.

Se há 10 anos alguns deles teriam passado pela mesma situação ao perambular por cidades acreanas da fronteira com a Bolívia e o Peru, agora o desejo deles é sair do Brasil. E não são apenas haitianos: há pessoas da Mauritânia, Paquistão, Camarões, Costa do Marfim, Venezuela, Cuba e Colômbia.

A situação do Acre como rota internacional de imigrantes em meio à pandemia do coronavírus veio à tona no dia 8 de maio, quando um ônibus com quase 50 peruanos saído de São Paulo foi impedido de entrar no estado quando estava na divisa com Rondônia.
 
A medida exigiu a intervenção de entidades de direitos humanos e do Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União. Após a mediação, o veículo foi liberado e seguiu viagem até a fronteira de Assis Brasil com Iñapari.

Segundo a Prefeitura de Assis Brasil, hoje há ao menos 270 imigrantes na cidade. Este número é volátil pois há a saída e a chegada constante de pessoas por ônibus ou táxis. Os haitianos formam a maioria daqueles que estão de forma mais permanente, somando mais de 150. Apenas os peruanos conseguem seguir viagem, isso apenas após um período de quarentena ao relento na ponte binacional sobre o rio Acre, que separa as duas nações.  A perspectiva é que na próxima semana mais dois ônibus com imigrantes peruanos vindos de São Paulo chegue a Assis Brasil.

A Rodovia Interoceânica que tinha como objetivo servir de integração econômica entre três países (Brasil, Peru e Bolívia) deixou de ser a rota para o trânsito de carga, e hoje é o caminho mais fácil para a entrada e saída de pessoas de várias partes do mundo em seu fluxo migratório em busca de uma vida melhor - além de servir como barganha para aqueles que tentam tirar proveito de tal situação.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Um vírus que avança e ameaça

Jaminawa-Arara que estava em aldeia testa positivo em município isolado do Acre  




Os Jaminawa dos Vales do Acre e do Juruá já têm casos confirmados da Covid-19; no Juruá, aldeia pode ter sido impactada (Foto: Jardy Lopes/2019)


@fabiospontes 


Após ficar concentrado no perímetro urbano de Marechal Thaumaturgo, o coronavírus já afeta as comunidades indígenas do município isolado do Vale do Juruá, no extremo oeste do Acre. Nesta terça-feira, 26, foi confirmado o primeiro caso da Covid-19 entre os Jaminawa-Arara que moram nas aldeias da Terra Indígena Jaminawa/Arara do Rio Bajé. 

O indígena apresentava os sintomas da doença ainda enquanto estava em sua comunidade e foi para a cidade em busca de auxílio médico acompanhado de outras três pessoas. Ao ser examinado, testou positivo para a doença. Os demais companheiros também passam por avaliação clínica.

“Segundo as informações, na comunidade já tinha várias pessoas [com sintomas] e trouxeram uma pessoa para fazer o exame e deu positivo. A situação agora é o que fazer com esse pessoal lá na aldeia”, diz o prefeito de Marechal Thaumaturgo, Isaac Piyãko (PSD), da etnia Ashaninka.

De acordo com ele, a chefia do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Juruá, sediada em Cruzeiro do Sul, já foi informada sobre a situação. A perspectiva é que um médico seja enviado até a aldeia para uma avaliação mais completa. “Com casos dentro de uma aldeia a gente sempre fica mais preocupado porque eles são mais vulneráveis, têm a imunidade baixa”, avalia o prefeito.

Acessível apenas por avião ou barco, Marechal Thaumaturgo tem uma situação preocupante por não contar com uma estrutura de saúde capaz de atender a população em caso de surto da Covid-19, como a falta de leitos de UTI. Segundo dados da Secretaria de Saúde, o município tem 42 casos confirmados da doença, com 35 descartados.  

Os primeiros testes positivos para a doença ocorreram no dia 11 de maio, de três pessoas que foram a Cruzeiro do Sul fazer compras para abastecer seus comércios e contrariam o vírus na principal cidade do Vale do Juruá. Diante da resistência de parte dos moradores de seguir as medidas de isolamento social, o vírus tem se espalhado de forma rápida pela pequena cidade.

Uma das preocupações com a chegada do vírus ao município se dá justamente com os povos indígenas, por representarem parcela significativa dos 18 mil moradores; eles integram o chamado grupo de risco por apresentarem imunidade baixa. Entre os Ashaninka são maioria. As outras etnias a morar pelas aldeias espalhadas pelo  município são os,  Kuntanawa, Apolina-Arara, Jaminawa, Jaminawa-Arara, os Arara e os Huni Kuin. 

Os Jaminawa do rio Bajé estão divididos em quatro aldeias: Buritizal, São Sebastião, Bom Futuro e Fazenda Siqueira. Elas estão distante entre uma hora e meia a três horas da sede urbana de Marechal Thaumaturgo.

Os povos que nelas habitam formam uma verdadeira união - ou mesmo casamento - de distintas etnias. Os Jaminawa-Arara formam a união de duas etnias: Jaminawa e os Arara (Shawãdawa). Os primeiros são originários das cabeceiras dos rio Acre, enquanto os Shawãdawa têm suas raízes no Alto Rio Juruá. Até hoje eles ainda ocupam terras em suas regiões de origem.   

Essas uniões ocorreram durante as invasões da Amazônia pelos donos de seringais que chegavam à região para obter lucros por meio da extração do látex. “Devido à situação de escravização, mudança forçada e tudo mais a que os indígenas do Acre ficaram sujeitos durante o período das correrias, da exploração da borracha. Houve circunstâncias em que esses povos se viram tão diminuídos numericamente que, para não desaparecer, acabaram se juntando, realizando casamentos, E os Jaminawa-Arara são considerados o resultado do casamento destes dois povos”, explica a antropóloga Andréia Baia, que estuda as populações indígenas do Juruá e Purus. 

Apesar desta união, ambos os povos fazem questão de manter as características de suas origens. Em alguns casos há aqueles que preferiram não recorrer a essa junção. “Existem algumas famílias que não se misturaram, que permaneceram sendo só Jaminawa ou só Shawãdawa. Elas formam os mesmos grupos, moram nas mesmas terras indígenas mas mantêm essa distinção”, completa a antropóloga.

Na região do Juruá estas populações vivem na Terra Indígena Jaminawa/Arara do Rio Bajé. Segundo dados do Dsei Alto Juruá, em Marechal Thaumaturgo elas somam 221 pessoas (dados de janeiro de 2020). Os Jaminawa-Arara também vivem em duas aldeias no município de Cruzeiro do Sul, na região do Igarapé Preto.

Por conta de seu elevado grau de mobilidade entre as aldeias e os centros urbanos, os Jaminawa estão entre os povos indígenas do Acre mais expostos à contaminação pelo novo coronavírus. Na semana passada, uma Jaminawa de Assis Brasil - na região do Alto Acre - foi detectada com a Covid-19. Segundo apurou o blog, desde o começo do ano ela vinha morando na cidade.

Em Assis Brasil, os Jaminawa vivem em aldeias das terras indígenas Cabeceira do Rio Acre e Mamoadate. Em abril, o blog mostrou o desafio dos Jaminawa que moram no perímetro urbano de Sena Madureira para regressar às suas aldeias ao longo dos rios Iaco e Purus para ficar em autoisolamento, longe da cidade. Grande parte destas aldeias não estão em terras indígenas demarcadas, o que os impede de contar com atendimento médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SesaI), do Ministério da Saúde. 

No Acre há muita confusão sobre os números oficiais da Covid-19, já que a secretaria federal leva em conta apenas os casos dos índios aldeados, ou seja, aqueles que moram nas aldeias. Levantamento feito pelo blog indica que ao menos cinco índios já foram testados positivos, a maioria moradores da cidade.

O caso de Marechal Thaumaturgo pode ser o primeiro ocorrido em aldeia, mas com o vírus contraído a partir de uma ida ao centro urbano, foco da doença. Entre os casos confirmados eles se espalham entre os Huni Kuin, os Jaminawa e Jaminawa-Arara. Desde o início da pandemia os povos indígenas do Acre decidiram se proteger vivendo isolados em seus territórios, impedindo a entrada de não-indígenas, além de reduzir, ao máximo, as idas às cidades


A Covid-19 e os povos indígenas

Oficialmente, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não apresenta casos de contaminações ou mortes no Acre.  A realidade não é a mesma em toda a Amazônia. Os casos mais graves são registrados entre os povos indígenas do Amazonas. Segundo dados da Sesai, até esta terça (26) havia o registro de 905 indígenas testados positivos para a Covid-19, com 42 mortes. Há em análise 321 notificações.

Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) estes dados estão subnotificados, pois a secretaria não leva em conta os índios que moram nas cidades, mais expostos ao contágio. Nas contas da entidade, 143 indígenas já perderam a vida para o vírus e outros 1.256 estão contaminados. Ao todo, 67 diferentes povos foram atingidos pelo novo coronavírus.

As principais vítimas são os Kokama, moradores da região do Alto Solimões, no Amazonas. Oficialmente, o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Solimões registra a morte de 19 indígenas. Segundo as lideranças do povo, este número é muito maior pois muitos estão morrendo sem atendimento adequado nas cidades, em especial em Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.     


Leia também: Contra pandemia, Yawanawa fecham o rio Gregório e fazem ‘lockdown’ na floresta



domingo, 24 de maio de 2020

O ancestral do agora

Indígenas reforçam modo de vida tradicional para enfrentar pandemia da Covid-19

 

Ashaninka do rio Amônia, por exemplo, recorrem a estratégia adotada pelos antepassados para casos de doença: ficar isolados em casas construídas dentro da mata, afastadas da sede da aldeia; isolamento também reforça práticas como a caça e a pesca fragilizadas após décadas de contato dos povos indígenas da Amazônia com "colonizador" 



Isolados em aldeia no rio Amônia, Ashaninka recorrem a "plano de contingência"   adotado pelos mais velhos décadas atrás para evitar danos causados por uma gripe, por exemplo (Fotos: Arisson Jardim/2019)  





A pandemia do novo coronavírus que leva as populações indígenas da Amazônia a viver em autoisolamento para evitar a chegada da Covid-19 a suas aldeias, tem sido enfrentada com o reforço do modo de vida e a relação ancestral com a floresta. Isso ocorre tanto no sentido do acesso à comida quanto ao de comportamento que assegura a segurança de toda a comunidade em tempos de adversidade, como os atuais.


É o exemplo dos Ashaninka e dos Yawanawa no Acre. Moradores da Terra Indígena do Rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, os Ashaninka têm recorrido a um método usado por seus antepassados quando ficavam doentes, afetados por uma gripe, por exemplo. É tradição em cada família ter uma casa dentro da mata - afastada da aldeia - para ficar em isolamento nos dias que estão doentes, evitando que outras pessoas sejam contaminadas.

“As famílias estão posicionando seus pontos estratégicos em caso de entrada do vírus em nossa comunidade. Cada uma tem uma casa fora da aldeia. Isso já é da cultura Ashaninka. Você está ali na sede, mas você tem sempre um ponto, uma casa, um roçadinho afastado da beira do rio. O meu avô fazia muito isso quando tinha uma gripe forte. Passavam lá meses, depois voltavam para saber se estava tudo bem”, diz Francisco Piyãko, liderança do povo Ashaninka.

O município de Marechal Thaumaturgo já tem 35 casos confirmados da Covid-19. A chegada do vírus representa uma grande ameaça por conta da carência na estrutura do serviço público de saúde, como a falta de leito de UTI. Sem acesso rodoviário, pacientes que necessitem de tratamento intensivo teriam que ser levados para Cruzeiro do Sul de avião.

O município tem grande parte de sua população formada por indígena. São mais de 2.100 divididos em diversas etnias, sendo os Ashaninka a maioria. Outras etnias presentes são os Arara, Kuntanawa, Jaminawa e os Huni Kuin. Desde o início do surto os Ashaninka decidiram se autoisolar na aldeia Apiwtxa e impedir a entrada de não-indígenas. Uma das atividades desenvolvidas por eles é o turismo, atraindo pessoas de todo o mundo interessadas em viver e conhecer seu modo de vida ancestral.

Sua característica principal é a produção de alimentos no sistema agroflorestal (SAF). E esta prática sustentável é o que, agora, garante a segurança alimentar dos Ashaninka em tempos de pandemia. Desde meados de fevereiro os Ashaninka estão sem ir a Marechal Thaumaturgo, onde costumavam comprar parte dos alimentos.

“Durante este tempo organizamos nosso sistema de abastecimento por meio da nossa Cooperativa Agroextrativista Ashaninka do Rio Amônia, a Ayõpare. A cooperativa faz a compra e o abastecimento para atender a necessidade mais essencial. Este já era um modelo nosso antigo, mas só agora conseguimos colocar em prática. Isso tem sido muito importante. A nossa comunidade não tem passado nenhuma dificuldade de fome”, afirma Piyãko.

Segundo ele, a maior preocupação é evitar a entrada do vírus nas aldeias. Além do sistema cooperativo, eles vêm reforçando sua capacidade de produção de alimentos por meio dos roçados e do SAF. “Temos uma área rica, na qual trabalhamos toda a vida protegendo, de caça, de pesca. Nossos roçados estão bastante abastecidos, e as famílias estão aproveitando para ampliar ainda mais a nossa produção”, diz a liderança.

De acordo com ele, os Ashaninka vão ter garantido o acesso à alimentação durante este tempo de autoisolamento que os protege do novo coronavírus.

 “Nós estamos garantidos para um tempo longo. Por isso estamos trabalhando enquanto temos saúde para não termos nenhuma crise, porque ninguém sabe quando vai terminar esta situação toda.”    

Além de Marechal Thaumaturgo, os Ashaninka também estão presentes em Feijó. Por lá eles moram na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira. Sua língua é a Aruak. Nos tempos pré-colombianos, os Ashaninka faziam parte do poderoso império Inca, que se espalhava dos Andes até a selva amazônica. Ainda hoje eles também estão presentes no outro lado da fronteira, no Peru..


Ancestralidade retomada



A chegada do europeu ao continente teve como impacto não apenas o estabelecimento de fronteiras entre um povo que era um só. Este contato com o homem branco afetou sobremaneira o modo de vida destas populações, além do genocídio ocasionado por encontros nem sempre amistosos, além das doenças “importadas”.      

A intensificação do contato dos povos indígenas da Amazônia – em especial no Acre – com o homem branco (a partir do começo do século 20) os forçou a perder seu modo de vida tradicional. Este perda ocorreu não de forma voluntária, mas forçada pelos donos dos antigos seringais que escravizavam essas populações na extração do látex, impondo a eles sua visão de mundo cristã-judaíca-ocidental.

Desta maneira, acabaram por abandonar sua espiritualidade baseada no culto e adoração às forças naturais da floresta, mais os modos de sobrevivência alimentar dentro da floresta.

Acostumados a tirar o sustento a partir da caça, da pesca e dos roçados, foram proibidos pelos “barões da borracha” de exercerem tais atividades para comprar tudo o que necessitavam nas casas de Aviamento, os locais nos seringais onde eram vendidos alimentos, suprimentos e ferramentas, criando um ciclo de dívidas entre seringueiro e seringalista que sempre deixava os primeiros impedidos de abandonar os seringais até que todos os débitos fossem quitados - sendo isso quase nunca possível.

Com o passar das décadas, a economia da borracha faliu e os seringais voltaram a ser aldeias, nas áreas já ocupadas pelos povos indígenas séculos atrás. Com a saída dos patrões, a influência cultural ocidental ocorreu por meio de missionários evangélicos na tarefa de realizar uma “neocatequização” dos índios. Este contato afetou sobretudo a relação dos povos indígenas com sua espiritualidade e ancestralidade.

Nas últimas décadas, contudo, os povos indígenas vêm recuperando e reforçando o modo de vida dos antepassados, valorizando toda a sua ancestralidade cultural. Contudo, ainda restam as marcas de séculos de colonização ocidental, em especial na relação com a produção alimentar. Muitas comunidades abandonaram práticas como a caça, a pesca e o roçado para depender dos alimentos industrializados vendidos nos mercados das cidades.

A invasão de seus territórios por caçadores e pescadores clandestinos reduz a oferta de alimentos. Obrigados a viver estes tempos em isolamento dentro das aldeias, eles necessitam recuperar a maneira de viver de seus avós e bisavós para ter alimento suficiente para toda a comunidade, por um tempo indeterminado. Este é um processo que nem sempre é fácil, demandando tempo para uma readaptação e coleta daquilo que foi plantado na terra.  A macaxeira e a banana são dois dos principais alimentos da dieta indígena. 

Quem tem sentido na pele essa readaptação são os Yawanawá do rio Gregório, em Tarauacá. Eles também estão sem ir a cidade para evitar a contaminação pelo coronavírus. Até uma barreira foi construída no rio para impedir o fluxo de pessoas entre as aldeias e o centro urbano. O município tem 105 casos confirmados da Covid-19.   

“Esse momento difícil que a humanidade está passando nos faz conectarmos com a nossa essência. Esse momento difícil que a humanidade está passando nos faz conectarmos com a nossa essência”, diz a liderança Biraci Yawanawa, o Bira, em entrevista ao blog no começo do mês.  

“Nós somos um povo conhecedor de muita medicina. Quando apareceu esses remédios da indústria da farmácia, dos hospitais, nós esquecemos todo o nosso conhecimento. Viramos preguiçosos de nosso saber da floresta. Agora precisamos nos reconectar com o nosso saber, nosso conhecimento, com a nossa ciência. Para mim é um momento de repensar toda a nossa história”, completa.



A Covid-19 e os povos indígenas



O autoisolamento tem sido crucial para proteger os indígenas acreanos do coronavírus. Oficialmente a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não apresenta casos de contaminações ou mortes no Acre. O órgão só leva em consideração os casos ocorridos dentro das aldeias. Nas cidades, contudo, há informações de que ao menos cinco deles testaram positivo, sendo das etnia Huni Kuin e Jaminawa.

A realidade não é a mesma em toda a Amazônia. Os casos mais graves são registrados entre os povos indígenas do Amazonas. Segundo dados da Sesai, até sábado (23) havia o registro de 695 indígenas testados positivos para a Covid-19, com 34 mortes. Há em análise 220 notificações.

 Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) estes dados estão subnotificados, pois a secretaria não leva em conta os índios que moram nas cidades, mais expostos ao contágio. Nas contas da entidade, 103 indígenas já perderam a vida para o vírus e outros 610 estão contaminados. Ao todo 44 diferentes povos foram atingidos pelo novo coronavírus. 

As principais vítimas são os Kokama, moradores da região do Alto Solimões, no Amazonas. Oficialmente, o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Solimões registra a morte de 18 indígenas. Segundo as lideranças do povo, este número é muito maior pois muitos estão morrendo sem atendimento adequado nas cidades, em especial em Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.  (colaboração de Arisson Jardim) 


Leia Também:  Coronavírus leva indígenas do Acre a "fechar aldeias" e interromper turismo 



quarta-feira, 20 de maio de 2020

Os vírus que ameaçam a Amazônia

Famílias de Resex na Amazônia relatam ameaça do coronavírus e abandono pelo Estado 

 

Extrativistas dizem que morador morreu esperando assistência por 3 dias, e que há 4 meses estão sem assistência médica; com ausência do ICMBio, antigos moradores que estavam na cidade retornam, podendo levar vírus para dentro da floresta 




Ida e vindas entre comunidades e cidades é a principal forma de contágio e colocar em risco vida de ribeirinhos, desamparados pelo poder público (Foto: Fabio Pontes/2014)



@fabiospontes

As ameaças às unidades de conservação (UC’s) na Amazônia no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) se dão não apenas no que diz respeito à preservação dos seus recursos naturais - fauna e flora - mas também na sobrevivência das famílias que nelas vivem. Agora, com a pandemia do novo coronavírus, que se espalha de forma rápida pelos cantos mais remotos da região, a vida de milhares de extrativistas e ribeirinhos - que já não dispunham dos serviços públicos de saúde mais básicos - encontra-se ainda mais vulnerável.

É o que ocorre com as 600 famílias moradoras da Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade, em Cruzeiro do Sul, no Acre. Em carta, as lideranças comunitárias relatam casos de pessoas que teriam contraído a Covid-19 - informando até uma morte - e a completa desassistência por parte das autoridades de saúde federal, estadual e municipal. Segundo o relato, os comunitários doentes não teriam combustível suficiente para chegar à cidade e realizar o tratamento adequado.

Localizada na Bacia do Juruá e medindo quase 325 mil hectares, a Resex Riozinho da Liberdade é uma unidade de conservação federal, portanto de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Na semana passada, portaria do governo deu nova estrutura ao órgão, reduzindo suas coordenações regionais de 11 para 5 (uma para cada região do país) e colocando militares nos cargos de chefia. Agora, a gestão de todas as UCs do Norte estará centralizada em Santarém (PA).

A UC foi criada em fevereiro de 2005 e é vizinha à Terra Indígena Campinas/Katukina. Ambas as áreas são acessíveis e cortadas pela BR-364. O fluxo frequente de pessoas entre a sede urbana de Cruzeiro do Sul e a zona rural é apontada como o principal motivo para a chegada do coronavírus a estas comunidades mais remotas. Até o momento, Cruzeiro do Sul tem 234 casos confirmados da Covid-19, segundo a Secretaria Estadual de Saúde.

Uma das principais reclamações dos moradores da Resex do Liberdade é quanto à falta de assistência médica. “Inúmeras comunidades não recebem visitas de agentes de saúde ou médicos há meses”, diz uma carta assinada pelos moradores das comunidades Morro da Pedra e Periquito.

As duas unidades básicas de saúde (UBS) dentro da Resex são de gestão da Prefeitura de Cruzeiro do Sul.  Uma fica na entrada da UC, às margens da BR-364, e outra no Seringal São Pedro, na comunidade Periquito. “Na primeira UBS há atendimento periódico semanal. A segunda está sem atendimento há mais de quatro meses.”

“Temos poucos barcos de emergência com cada um tendo gasolina apenas para duas viagens. Em abril, um comunitário faleceu, passando três dias sem socorro, pois não havia barqueiro de emergência e gasolina disponível para o translado da comunidade até a BR-364, rodovia de acesso a postos de saúde e ao Hospital do Juruá”, reforçam.

Informações passadas ao blog dão conta de dois casos confirmados da Covid-19 dentro das comunidades ribeirinhas. A infecção teria ocorrido pelo contato com um “marreteiro” que subiu e desceu o rio nos últimos dias comprando a produção de farinha das famílias.

De acordo com a carta, antigos moradores que tinham deixado de viver dentro da unidade e estavam em Cruzeiro do Sul agora retornam para dentro das comunidades.

O retorno ocorre sem a devida autorização do conselho gestor e do ICMBio, e representa uma ameaça para a saúde dos ribeirinhos que não estiveram pela cidade nestes meses de pandemia. As lideranças também reclamam da falta de controle sanitário na ponte sobre o rio Liberdade, que dá acesso à Resex. É por ali que, diariamente, pessoas e mercadoria vindas de Cruzeiro do Sul têm acesso irrestrito à unidade de proteção federal.

“Não há fiscalização sanitária na ponte sobre o rio Liberdade, local  com mercados, de desembarque e embarque dos moradores, em canoas, vans e carros da linha. Os carros da linha, transporte entre a Resex e a cidade de Cruzeiro do Sul, vem lotados de gente até a Vila Liberdade”, completa a carta.

De Cruzeiro do Sul até a entrada da unidade na ponte do Liberdade são 80 quilômetros. A única barreira sanitária na rodovia está na comunidade Santa Luzia, cuja preocupação principal é com o fluxo de pessoas para a TI Campinas/Katukina. As lideranças afirmam ter pedido ajuda às secretarias estadual e municipal de Saúde para instalação de uma barreira na comunidade, mas não obtiveram resposta.

Além da ameaça provocada pelo coronavírus, as famílias extrativistas do riozinho da Liberdade sofrem com outro problema de saúde: a alta incidência de malária. Cruzeiro do Sul é um dos municípios da Amazônia com as maiores taxas de incidência de malária. Sem assistência médica ou acesso a medicamentos, são tratados com a “medicina da floresta”.

A Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade foi criada há 15 anos como parte do projeto de amortização dos efeitos da pavimentação da BR-364 entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco, a capital do Acre. A UC é cortada por sete quilômetros da estrada. Até a década de 1990 as famílias ribeirinhas viviam da extração da borracha, abandonada após a falência completa da atividade no Vale do Juruá. Hoje seus moradores tiram renda a partir da produção da farinha da mandioca, arroz e milho.

Com a falta de políticas e incentivos para desenvolver atividades econômicas de base florestal, as famílias vêm aumentando seus impactos sobre a área de floresta. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), nos últimos 10 anos a Resex perdeu 11 quilômetros quadrados de floresta. Em 2019 ela ficou entre as três unidades de conservação federal no Acre com maior registro de focos de queimada, ficando atrás da líder Resex Chico Mendes e a Resex Alto Juruá.      
 

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Isolados, mas não protegidos

Isolamento geográfico não livra cidades da Amazônia de avanço do coronavírus


Em São Gabriel da Cachoeira (AM), já são 343 casos; em Marechal Thaumaturgo (AC), 11. Isolamento leva municípios com elevado população indígena a sofrer com carência em serviços mais básicos 

 

Banhado pelo rio Juruá, Marechal Thaumaturgo (AC) só é acessível por barco ou avião; dificuldade de acesso não impediu chegada do coronavírus (Foto: Gleilson Miranda/Governo do Acre)

 
@fabiospontes 


Em meio a sua vastidão e características geográficas próprias, a Amazônia conta com dezenas de cidades isoladas, cujos acessos só são possíveis via fluvial ou aérea. O Amazonas com sua imensa extensão territorial é um bom exemplo disso, com a maior parte de seus 62 municípios inacessíveis por estradas. As viagens em embarcações que duram dias e semanas são as principais formas de integração social e econômicas entre estas cidades e, destas, com a capital Manaus.

Este isolamento, contudo, não é a garantia de proteção efetiva diante do avanço do novo coronavírus pelo país. O Amazonas é um dos estados com os maiores números de mortes e de pessoas infectadas pelo vírus, situação agravada pela carência de infraestrutura mais básica nestes municípios isolados, incluindo serviço de saúde de qualidade; a falta de leitos de UTI deixa o quadro ainda mais grave diante da necessidade de intubação dos pacientes mais graves. 

Aqueles que necessitam de cuidados mais intensivos precisam ser transportados em aeronaves para os hospitais de Manaus, cujas vagas nas UTIs já estão superlotadas.  Segundo dados da Secretaria de Saúde do Amazonas, 48,8% das contaminações estão no interior. O estado tinha até este domingo, 17, 20.328 casos confirmados, com 1,413 vidas perdidas.

Com 22 municípios, o pequeno Acre tem quatro municípios apontados como isolado e de difícil acesso. Jordão, Porto Walter, Marechal Thaumaturgo e Santa Rosa do Purus. Deles, os dois últimos já têm casos confirmados da Covid-19.

Assim como no Amazonas, estas quatro cidades acreanas isoladas carecem dos serviços públicos mais essenciais, sendo a ausência de unidades hospitalares de baixa ou média complexidade a mais comum. Com o fim do programa Mais Médicos, muitos municípios do interior da Amazônia ficaram sem cobertura médica básica. Mesmo com altos salários propostos pelos governos locais, muitos profissionais se recusam a morar em cidades isoladas no meio da Floresta Amazônica.

Com população estimada em 18.867 pessoas, Marechal Thaumaturgo tem confirmado, até agora, 11 casos da Covid-19. Em Santa Rosa do Purus são duas confirmações. Os dois municípios têm como característica a predominância de indígenas. Em Santa Rosa a maioria é de Huni Kuin (Kaxinawá), seguidos em menor quantidade pelos Madijah (Kulina). 

Já em Marechal Thaumaturgo os Ashaninka são maioria. Em 2016 a cidade elegeu seu primeiro prefeito Ashaninka, Isaac Piyãko. Eleito pelo MDB, agora está filiado ao PSD. Outras etnias a morar pelo município são os Arara e também os Huni Kuin. Estes últimos estão espalhados praticamente por todo o Acre, formando a maioria da população indígena acreana. Entre as infecções detectadas não há entre índios.

O registro de casos nestes municípios isolados preocupa não apenas pela falta de estrutura de atender a população no caso de um eventual surto, como também pela possibilidade de o vírus chegar até as aldeias. Em Marechal Thaumaturgo há o registro de transmissão comunitária. Apesar de a maioria dos indígenas cumprir isolamento social nas aldeias, há idas frequentes deles ao centros urbanos para a compra de alimentos ou sacar dinheiro em bancos ou agências lotéricas.

São estas idas às cidades comuns em toda a região que preocupam as autoridades sanitárias indígenas, pois há o risco de eles regressarem para suas comunidades contaminados sem saber, proliferando o vídeo entre os parentes. É o que vem acontecendo no Amazonas, estado com a maior infecção e mortes de indígenas pela Covid-19. Segundo os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Brasil tem 23 mortes oficiais registradas por Covid-19 entre os povos indígenas, sendo 16 no Amazonas.

O maior registro (11) ocorre nas comunidades do Alto Rio Solimões.  O número de casos confirmados em todo o Brasil é de 371. No Acre só há um caso confirmado da doença entre sua população indígena; trata-se de um Huni Kuin, de 25 anos, morador de Santa Rosa do Purus, infectado em Rio Branco, epicentro do coronavírus no estado.

O vírus chegou até Marechal Thaumaturgo por meio de um comerciante que foi a Cruzeiro do Sul comprar mercadoria, e regressou infectado. As duas cidades estão no leito do rio Juruá. Após a confirmação da doença, o prefeito Isaac Piyãko decidiu fechar os portos do município., além da restrição dos voos. A medida também foi adotada pela vizinha Prefeitura de Porto Walter.

A restrição na chegada por vias aérea e fluvial já estava implementada por Jordão, de maioria Huni Kuin. Ambos os municípios não têm casos confirmados.   Localizado no Alto Rio Negro, São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, é o município com a maior população indígena do Brasil, acessível apenas por barco ou avião. Por lá, até ontem, eram 343 casos confirmados, com 12 óbitos; nem todos de índios. O Dsei do Alto Rio Negro registrou duas mortes.

Ao que se vê, o isolamento geográfico e a imensidão da Amazônia não são suficientes para se ficar a salvo do novo coronavírus. A melhor medida mesmo é o isolamento social para se evitar o surto da doença em regiões tão carentes e desassistidas pelo Estado brasileiro. Só assim há alguma chance de  sobrevida em meio à pandemia.

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Coronavírus leva indígenas do Acre a "fechar aldeias" e interromper turismo   

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Vírus e fumaça na Amazônia

O vírus bolsonarista ameaça a Amazônia 

 

Área de floresta incendiada em 2019, no interior do Acre (Foto: Sérgio Vale)

 
O Brasil passa hoje por uma das piores crises dos últimos anos. Aliás, quando não estamos mergulhados em uma crise? Essa, porém, é, sim, uma das mais graves, pois lida diretamente com a vida. Milhares de brasileiros estão morrendo por conta da pandemia do coronavírus. Uma situação que afeta todos os países do mundo em menor ou maior grau, agravada aqui por um presidente tresloucado e que tenta boicotar - a todo instante-  as medidas sanitárias de contenção da doença.

Para ele, a prioridade deve ser salvar a economia e, consequentemente, sua reeleição em 2022. Não importa se vão morrer cinco ou vinte mil pessoas. Questionado sobre as mortes, sua resposta é o trágico “e daí?”.  Se Jair Bolsonaro demonstra não ter o mínimo apreço pelas vidas de seus cidadãos, o que dirá da preservação ambiental. 

Muito em breve o Brasil tende a entrar em uma outra crise, desta vez a ambiental (se bem que acredito nunca termos saído dela desde primeiro de janeiro de 2019). Mais algumas semanas teremos, com mais intensidade, o período de estiagem na Amazônia. Maio é o mês de transição do “inverno amazônico” para o verão amazônico”, ao menos na parte mais sul da Amazônia abrangendo Acre, Rondônia, sul do Amazonas e Pará e o norte do Mato Grosso. O pico da seca (e queimadas) é entre agosto e setembro.

A situação é preocupante diante do cenário de 2019 quando - incentivados pelos discursos e práticas do governo Jair Bolsonaro - criminosos ambientais agiram a torto e a direito destruindo a floresta, grilando terras públicas, invadindo terras indígenas e unidades de conservação, fazendo uma verdadeira mata a dentro - e isso para todo o planeta assistir horrorizado.

O país já sabia que o governo Jair Bolsonaro seria trágico para a área ambiental. Seus discursos de campanha em 2018 sinalizavam para o desmonte das políticas ambientais - o que de fato ocorreu. O primeiro passo foi escolher um ministro do Meio Ambiente cuja tarefa é desestruturar a já precária estrutura dos órgãos de fiscalização ambiental, praticamente destruindo o Ibama e o ICMBio.

Agora militarizado, o Instituto Chico Mendes teve sua estrutura ainda mais reduzida. As unidades de conservação que já vinham sendo invadidas e incendiadas por desmatadores, estarão mais expostas com a completa fragilidade nas ações de fiscalização e proteção. A desmatada Reserva Chico Mendes, no Acre, por exemplo, será “gerenciada” desde a chefia do ICMBio para o Norte em Santarém, no Pará, distante milhares de quilômetros daqui.

As estruturas dos órgãos ambientais também ficarão comprometidas com a crise do coronavírus, que obriga o governo a centralizar recursos na Saúde. Isso num governo que já vinha passando a tesoura no orçamento de todos as áreas da administração, seguindo a ordem de austeridade imposta por Paulo Guedes e o mercado financeiro.

A crise do coronavírus elevou o alerta de preocupação com a Amazônia em 2020, fazendo especialistas avaliarem que a situação tende a ser pior do que no ano passado. Para mostrar certa ação diante do mundo e não afetar os interesses do grande agronegócio, o governo já adota medidas para que o Brasil não ganhe o noticiário internacional com as imagens da floresta em chamas, o que levaria importantes mercados mundo afora a deixar de comprar a carne e soja brasileiras. 

Como de costume do governo Bolsonaro, a primeira atitude para não termos um replay de 2019 foi acionar as Forças Armadas para, novamente, atuar na “proteção da Amazônia” por meio de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem).

Bolsonaro acredita que a entrada do Exército no ano passado nas ações de combate aos crimes ambientais na região foi o motivo para a queda no número de queimadas. Os militares, porém, entraram em campo quando as primeiras chuvas do “inverno amazônico” davam o ar da graça.

É certo que na Amazônia o Exército é a instituição de Estado com melhores condições de atuar pelo seu efetivo e estrutura logística para se mover numa região de precária infraestrutura. E a ação de soldados usando um fuzil Parafal também deixa os delinquentes ambientais um pouco mais intimidados, impedindo-os de agredirem e matarem fiscais do Ibama e ICMBio.

O fato é que, diante de todas as práticas do atual governo de desmonte da política ambiental, não tem “soldado universal” que salve a Amazônia da catástrofe. Além dessa fragilização, o governo Jair Bolsonaro fomenta atos criminosos, legalizando o que é ilegal, fazendo valer a velha máxima de que o “crime compensa”. Isso numa região em que, muitas das vezes, o que vale é a lei do mais forte, a lei da bala.

Exemplo disso é a chamada “MP da Grilagem”, que legaliza a posse de terras da União invadidas por grileiros e latifundiários; É o Estado tornando legal práticas criminosas feitas contra si próprio. São uma série de afrontas usando instrumentos legais (como uma Medida Provisória) para incentivar o crime.

Enquanto isso, as populações tradicionais da floresta veem seus territórios sendo invadidos por delinquentes crentes de que não sofrerão nenhuma punição. Dessa forma, a maior floresta tropical do mundo vai perdendo mais e mais áreas naturais, transformadas em campos para o gado e a soja.

E nós, aqui nos cantos mais esquecidos e abandonados deste país, vamos sofrendo com as consequências de um presidente insano. Logo o fogaréu na Amazônia vai começar. Além de precisarmos proteger nossos pulmões de um vírus mortal, teremos que resguardá-lo da fumaça, do ar poluído em meio a uma temperatura alta e umidade baixa. Cenários propícios para se desenvolver doenças respiratórios em meio a uma pandemia do coronavírus.

Tomara que todos estes prognósticos apocalípticos não passem disso: um prognóstico. Que possamos, muito em breve, acordar deste pesadelo e quem sabe, um dia, a Amazônia saia do noticiário policial. Enquanto sociedade estaremos aqui de olho em cada movimento; lutando para sobreviver ao coronavírus, e denunciando o que de ilegal e criminoso for praticado contra a floresta e sua população.


terça-feira, 12 de maio de 2020

Coronavírus e indígenas

Liderança e médica indígena negam surto da Covid-19 em aldeia do Acre 



Profissionais de saúde do Dsei do Alto Juruá realizam atendimento em aldeia dentro da TI Campinas/Katukina (Foto: Divulgação)

@fabiospontes

Distante menos de 50 km da sede urbana de Cruzeiro do Sul - a segunda maior cidade do Acre - a Terra Indígena Campinas/Katukina tem sido motivo de preocupação constante das autoridades de saúde indígena por conta do fluxo constante de seus moradores entre as aldeias e a cidade. O município, segundo o último boletim epidemiológico da Secretaria Estadual de Saúde, tem 85 casos confirmados da Covid-19; nenhum entre indígenas.

Para o vírus se proliferar pelas zonas rurais do entorno não é difícil, incluindo as terras indígenas. A ligação rodoviária entre cidade e a Campinas/Katukina deixa seus quase 900 moradores ainda mais expostos. Apesar de todas as recomendações das autoridades sanitárias e das lideranças do território, muitos Katukina insistem em ir a Cruzeiro do Sul alegando a necessidade de resolver problemas pessoais.

Até uma barreira sanitária colocada na entrada da TI, e que tinha profissionais de saúde e militares do Exército para coibir a permanência de não-indígenas dentro das aldeias, foi retirada após muitas reclamações deles. A barreira foi colocada próximo a uma comunidade rural, a Santa Luzia.

A preocupação com os Katukina atingiu seu nível máximo durante o fim de semana, quando passou a circular uma mensagem de voz por grupos de WhatsApp de uma das lideranças da Ti relatando um possível surto da Covid-19 dentro das aldeias.

“Infelizmente essa doença chegou até a nossa aldeia, mas como o pajé falou, ela não é o coronavírus que está na cidade, é outro tipo de coronavírus, mas está sendo muito forte aqui dentro da aldeia. 80% das pessoas da Terra Indígena Campinas Katukina estão doentes”, diz a voz do homem que se identifica como Vina Katukina.

Leia também: Localizada às margens de rodovia, território dos Katukina é o mais exposto ao coronavírus no Acre



O indígena afirma ter ficado uma semana em repouso na rede sem “poder receber atendimento médico e tomar remédio”, sendo tratado apenas pela “medicina da floresta”. Ele relata que a doença tem acometido crianças e idosos, além de os Katukina estarem passando por dificuldades como a falta de remédios e alimentos.

Vani Katukina chega a afirmar que dois indígenas Huni Kuin, de Santa Rosa do Purus, morreram por causa da Covid-19. No Acre não há registros de mortes de indígenas pelo novo coronavírus, apenas um caso confirmado.

O blog conseguiu conversar, via mensagem de voz de WhatsApp, com o cacique-geral da TI Campinas/Katukina, Fernando Katukina. Ele negou todas as informações, e disse que não há nenhum registro de contaminação entre seu povo. “Até esse momento não há nenhum registro de óbito nem de resultado positivo. Dizer que os katukina estão passando fome, desassistidos, isso não procede”, afirma.

“Enquanto liderança tenho andado de aldeia em aldeia conversado com o nosso povo sobre os cuidados para se ter neste momento de pandemia.” Segundo o cacique, muitas famílias deixaram de morar nas casas localizadas mais perto da rodovia e estão nas aldeias mata adentro. Fernando Katukina relata que a doença que hoje afeta alguns moradores da TI é uma gripe comum. “Os nossos idosos e idosas estão sadios, só os mais jovens que estão pegando [a gripe].”

Aline Diniz Nawa é médica indígena e trabalha para o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Rio Juruá, que atende a TI Campinas/Katukina. Ela nega a existência de casos confirmados da Covid-19 entre a população Katukina.   “Nós não temos nenhum caso positivado naquela região, não temos nenhum óbito, nada parecido com o que o parente está falando”, diz ela, também em mensagem de voz espalhada como tentativa de acalmar os ânimos entre a população indígena do Juruá.

“O que o parente colocou no áudio dele simplesmente não é verdade. Não existe outra forma de dizer isso. Eu quero que todos fiquem tranquilos, fiquem nas aldeias, mantenham-se o mais distante possível da cidade”, recomenda a médica. Mesmo com todas estas orientações, muitos Katukina insistem em ir com frequência a Cruzeiro do Sul. “Apesar de todo o nosso esforço para evitar que eles saiam, eles acabam saindo.”

Para os profissionais de saúde que atuam dentro da TI, estas indas e vindas dos indígenas entre as aldeias e Cruzeiro do Sul são a principal ameaça para a entrada do coronavírus no território. “A possibilidade do vírus chegar a essas aldeias é muito grande . O que retardr e o que previne de o vírus chegar é o comportamento dos próprios indígenas”, diz Iglê Monte, coordenadora do Dsei Alto Juruá.

Segundo ela, uma equipe formada por médicos e enfermeiros está dentro da TI todos os dias da semana. Monte afirma que os Katukina são os que apresentam maior resistência em seguir as orientações de isolamento social, enquanto outras populações indígenas do Vale do Juruá permanecem isolados em suas aldeias para evitar a contaminação.

sábado, 9 de maio de 2020

Ameaça concreta

Acre tem primeiro caso da Covid-19 entre população indígena



Santa Rosa do Purus, município com elevada população indígena Huni Kuin, fica às margens do rio Purus (Foto: Gleilson Mirada/Governo do Acre)


@fabiospontes

Em meio ao salto no número de casos da Covid-19 no Acre nos últimos dias, a doença também atinge os povos indígenas do estado. O primeiro contágio confirmado é de um Huni Kuin de 25 anos morador de Santa Rosa do Purus, um dos quatro municípios acreanos isolados, cujo acesso só é possível via fluvial ou aérea.

A confirmação do caso foi feita pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesacre) em seu boletim diário. Procurada, a coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Rio Purus, Carla Mioto Niciani, não respondeu aos questionamentos da reportagem até o momento.

Com uma das maiores populações indígenas do Acre - sendo parte dela moradora do centro urbano - Santa Rosa do Purus é banhada pelo rio Purus, um dos mais importantes da Bacia Amazônica. Os Huni Kuin (também conhecidos como Kaxinawá) formam a maioria da população indígena do município, localizado na fronteira com o Peru.

Segundo informações do portal G1 Acre, o indígena teria se contaminado com o novo coronavírus em Rio Branco. A capital é o epicentro da doença no estado. Ele morava na capital desde o início do ano onde pretendia obter formação em técnico de enfermagem. Às vésperas de fazer a matrícula, foram iniciadas as medidas oficiais de distanciamento social.

O indígena voltou na última quarta-feira, 6, para Santa Rosa em um voo de uma empresa de táxi-aéreo, com outros nove passageiros. Na quinta, fez o teste rápido e deu positivo. Todos os demais passageiros e pilotos foram colocados em isolamento. O Huni Kuin mora no perímetro urbano do município, não em aldeias.

Segundo a Secretaria de Saúde, o indígena é um infectado assintomático, ou seja, que não desenvolveu os sintomas da Covid-19. Os seus familiares também não apresentam sintomas, e estão em observação.  

Segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) sobre o impacto do novo coronavírus na população indígena do Brasil, o Dsei Alto Rio Purus teve quatro casos já descartados da Covid-19. O outro Dsei que atende o estado, o do Alto Rio Juruá, não teve nenhum. Entre indigenistas e lideranças indígenas locais há uma grande queixa quanto à atuação do Dsei Alto Purus.

Um dos casos mostrados pelo blog é o dos Jaminawa de Sena Madureira, que, sem assistência, precisaram voltar às pressas para suas aldeias antes de alguém ser infectado. Informações dão conta de que a situação de abandono da população continua a mesma.

O atendimento da saúde indígena no Acre é de responsabilidade destes dois distritos: o do Alto Rio Purus e o do Alto Rio Juruá. A principal preocupação na região da Bacia do Juruá é com os Katukina, cuja terra indígena - a Campinas Katukina - é cortada ao meio por 18 km da BR-364. A proximidade com Cruzeiro do Sul leva muitos indígenas a insistir em estar pela cidade, ficando expostos ao coronavírus. A cidade já tem 46 casos confirmados da doença.

Enquanto isso, outras comunidades indígenas vão reforçando suas medidas de isolamento social, como os Yawanawa da TI do Rio Gregório e os Ashaninka do rio Amônia. Essa semana os Yawanawa eles construíram uma cerca sobre o rio impedindo a entrada e saída de pessoas. A ordem das lideranças é para se evitar ao máximo o contato com o meio urbano.

A medida se faz necessária diante do alto risco de letalidade do vírus caso se prolifere nas comunidades indígenas, que sofrem com a falta de assistência médica por parte do governo federal. Os dados do ISA apontam que, até o momento, 15 índios já morreram vítimas da Covid-19 no país. Já os casos confirmados são de 206, sendo a maioria no Amazonas, um dos estados mais impactados pela pandemia.

O Dsei do Alto Rio Solimões tem 100 confirmações da doença, com nove mortes. Os dois outros Dseis com mais casos são os de Manaus (25) e  Parintins (20), também do Amazonas.  

terça-feira, 5 de maio de 2020

Há uma cerca no meio do rio...

Contra pandemia, Yawanawa fecham o rio Gregório e fazem ‘lockdown’ na floresta



Cerca feita de troncos de árvores foi colocada de uma margem à outra do manancial; “vamos fechar a nossa casa. Não sai ninguém, não vem ninguém”, diz liderança em entrevista ao blog

 

Com pinturas e armas de guerra, Yawanawa observam embarcações no rio Gregório (Foto: Gleilson Miranda/2014)


@fabiospontes

A Aldeia Sagrada é a última entre as oito do povo Yawanawa dentro da Terra Indígena do Rio Gregório, no município de Tarauacá, no Acre. Encontra-se distante e isolada do restante de um mundo que sofre, a cada dia, com as consequências da pandemia do novo coronavírus, entre elas a fila de corpos de suas vítimas fatais. O isolamento geográfico na Floresta Amazônica agora representa uma vantagem para os Yawanawa e outros povos indígenas. Afinal de contas, o distanciamento social é a principal recomendação das autoridades mundiais de saúde para se evitar o contágio.

Muitos indígenas, contudo, precisam ir às cidades para resolver problemas e comprar suprimentos. Estas idas e vindas aos centros urbanos são vistas como perigosas diante do risco de entrarem em contato com alguém infectado e, sem saber, voltar para as aldeias com o vírus no organismo - o que seria uma tragédia para estas populações, já marcadas por um passado de mortes em massa provocadas por doença e as violentas “correrias” dos tempos dos seringais na Amazônia. 

Para descartar qualquer possibilidade de o coronavírus entrar em suas terras, os Yawanawa tomaram uma decisão radical: bloquearam o rio Gregório; ninguém sai, ninguém entra. O “lockdown” da floresta ocorre nos acessos às duas últimas aldeias: a Nova Esperança e a Sagrada, localizadas já no Alto Rio Gregório, próximo às cabeceiras. Usando troncos de árvores, os indígenas ergueram cerca de uma margem à outra do rio, impedindo a passagem das embarcações.   

São quase 370 pessoas vivendo na Nova Esperança - que é a aldeia central e a mais populosa - e a Sagrada. Eles decidiram reforçar as medidas de isolamento, visando, sobretudo, a proteção dos mais antigos e dos portadores de doenças crônicas. Das duas comunidades para rio acima só há muita floresta virgem, com registro da passagem de índios isolados alguns anos atrás. A região também fica próxima à fronteira com o Peru. 

“Para nós, perdermos nossos velhos é como perder nossos arquivos sagrados. Nós vamos queimar nossos museus. Vamos perder nossa memória, ficar um povo sem história”, diz Biraci Yawanawa, o Bira, liderança máxima da Nova Esperança e Aldeia Sagrada. Os idosos estão entre as principais vítimas fatais da Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

Bira reconhece que o lockdown do rio Gregório terá impactos sérios na vida das duas comunidades, como a dificuldade de acesso a combustível para os geradores usados para fazer funcionar as bombas dos poços com água potável e a compra de munição usada na caça de subsistência. Outra dificuldade será no acesso a ferramentas e insumos para o preparo dos roçados. Com a chegada dos meses do “verão amazônico”, as comunidades tradicionais da Amazônia se preparam para preparar o solo da agricultura.

Em entrevista ao blog por WhatsApp (há acesso à internet na Aldeia Sagrada), Bira diz que, com o rio Gregório fechado, os Yawanawa vão reaprender o modo de vida dos ancestrais que viviam exclusivamente na e da floresta.

Práticas como a caça e a pesca serão feitas com mais intensidade nestes dias de distanciamento do “mundo civilizado”. Dessa forma estará garantida a segurança alimentar dos Yawanawa, além de assegurar que os efeitos da pandemia do coronavírus fiquem apenas nas notícias que recebem via redes sociais nas telas de seus celulares. A liderança também comentou sobre o atual momento vivido pelos povos indígenas com o governo de Jair Bolsonaro (sem partido).


Leia a entrevista:

Como foi essa decisão do povo Yawanawa de fechar o rio Gregório?

Bira:
Não diferente de outros povos indígenas que nós estamos vendo o resultado da pandemia, como no Amazonas e em Roraima, onde já chegou essa doença, nós também estamos vulneráveis. No nosso caso é mais delicado porque vivemos na cabeceira do rio, sem nenhum acompanhamento de médico, sem assistência. Se um vírus desse chegar aqui vai acabar com o nosso povo, principalmente os que estão no grupo de risco. Nós temos muitos diabéticos em nossa aldeia, pessoas com problemas de pressão alta, com asma. Nós temos nossos velhos e nossas velhas. Para o mundo dos brancos eles podem não representar nada, mas os velhos, para nós, são arquivos vivos, são nossos museus da nossa essência, da nossa cultura. Essa é uma situação muito séria que pode provocar um colapso dentro da nossa terra. A única coisa que eu, enquanto liderança, poderia fazer é dizer: Não! Basta! Vamos fechar nosso rio. Não sobe [o rio] mais ninguém. Decidimos fechar o rio por pelo menos 30 dias, até o fim de maio. Se nossa família de outras aldeias também não adotar essa medida séria, nós vamos ficar por tempo indeterminado, até que haja uma solução para essa doença, uma vacina.


Como será ficar todo este tempo sem poder ir à cidade? Muitos itens alimentares vocês precisam buscar lá, como o feijão, o arroz, açúcar, café. Como garantir a segurança alimentar nas aldeias?

Bira:
Sei que podemos passar por muitas necessidades porque já estamos acostumados a obter nosso material, nosso instrumento de trabalho. Já estamos na época de fazer os roçados. Não vamos poder comprar as ferramentas, além da munição para poder caçar, a gente trazer alimento para casa, gasolina que compramos para puxar água nos poços que precisam do gerador. Tudo vai faltar, eu sei disso. Mas meus ancestrais já viveram assim no passado e tenho certeza que vou sobreviver com o meu povo, e sem essa doença aqui dentro. Ela não vem sozinha, alguém tem que trazer. Portanto vamos fechar a nossa casa. Não sai ninguém, não vem ninguém. Nós vamos ficar assim até termos a segurança de poder voltar a receber outras pessoas.


Os Yawanawa foram pioneiros em desenvolver o turismo dentro das aldeias. Como está essa atividade agora?

Bira
: Nós, Yawanawa, sempre vivemos por conta própria. Nós não temos projetos com governo federal, estadual ou municipal, com ONGs. Sempre toda vida foi isso, receber grupos de pessoas, Nós criamos o Festival Yawanawa, criamos as Vivências atraindo pessoas do mundo inteiro, do Brasil. Com isso temos comprado as nossas necessidades, temos montado a nossa estrutura. Mas nós suspendemos tudo isso por tempo indeterminado. E se isso [Covid-19] não tiver cura, nós não vamos ter mais [o turismo]. Mas eu estou feliz porque pelo menos agora nós vamos poder voltar para dentro de nossa casa, estudar nossas medicinas, valorizar nossos remédios da floresta. Vamos ficar mais tempo nas aldeias para cuidar do nosso povo, viver em família.


Para o povo Yawanawa, qual a importância de se proteger os mais velhos?

Bira
: Para nós, perder nossos velhos, é como queimar nossos arquivos sagrados. Vamos queimar nossos museus, vamos perder nossa memória, ficar um povo sem história se nossos velhos morrerem. Essa doença tem matado muitos velhos. E para proteger nossos velhos, a nossa história, nós tomamos essa decisão. Ela pode ser radical, mas é o único instrumento que eu tenho para garantirmos um novo amanhecer depois da Covid-19.


Este isolamento mais radical vai forçar, digamos assim, os Yawanawa a retomar seu modo de vida ancestral em relação à segurança alimentar. Sem poder ir à cidade, terão que reforçar a prática da caça e da pesca. Os mais jovens certamente serão os mais impactados. Como a comunidade lidará com isso?

Bira: Como diz um tio meu, não há mal que não traga um bem. Esse momento difícil que a humanidade está passando nos faz conectarmos com a nossa essência. Nós somos um povo conhecedor de muita medicina. Quando apareceu esses remédios da indústria da farmácia, dos hospitais, nós esquecemos todo o nosso conhecimento. Viramos preguiçosos de nosso saber da floresta. Agora precisamos nos reconectar com o nosso saber, nosso conhecimento, com a nossa ciência. Para mim é um momento de repensar toda a nossa história. Amanhã não será mais o mesmo dia de hoje para toda a Humanidade. É um tempo de reconectar com nosso mundo espiritual. Eu estou num lugar chamado Aldeia Sagrada, onde houve o primeiro contato do Yawanawa com o homem branco. A minha geração foi de muito sofrimento, de ter que trabalhar para o seringalista, depois ser evangelizado pelos missionários protestante, depois ter de lutar pelo direito à terra. Hoje nossos jovens não têm mais isso. Eles estão vendo, sentindo os efeitos desta pandemia, o susto, o medo, o pânico. Os jovens Yawanawa estão vivendo a segurança que a nossa floresta oferece. Nós vivíamos aqui recebendo gente do mundo inteiro, e muitas das vezes viajando por todos os continentes. Mas agora tenho que parar para pescar, para plantar. Agora é um tempo de voltarmos para casa.


O senhor mora numa das regiões mais extremas e longínquas do país. É guardião de uma imensa área de floresta intacta. Desde a Aldeia Sagrada, qual a avaliação o senhor faz das atuais políticas (ou a falta delas) do atual governo brasileiro para os povos indígenas?


Bira:
Este é um governo que eu não sei nem assim comentar, comparar com outros presidentes, nem com os presidentes da ditadura. Nem os presidentes da ditadura foram tão carrascos como este atual governo. Isso ocorre descaradamente, assumido internacionalmente. Estamos vendo a aceleração no desmatamento, a invasão das terras indígenas, os assassinatos de lideranças indígenas importantes do Brasil. Nós estamos aqui simplesmente protegendo um bem da humanidade, deste país, e nós estamos sendo assassinados por isso. Não somos reconhecidos por isso. Nós não temos um único programa social voltado para a dignidade dos povos indígenas, não temos um programa de saúde, de respeito, que nos dê segurança e atenção. Nós não temos nada. Somos tratados como miseráveis, infelizmente. Mas nós somos os guardiões que guardamos este tesouro que é a floresta, e ela pertence ao Brasil. Somos brasileiros que cuidamos do Brasil e não somos respeitados. 
 

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