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domingo, 24 de maio de 2020

O ancestral do agora

Indígenas reforçam modo de vida tradicional para enfrentar pandemia da Covid-19

 

Ashaninka do rio Amônia, por exemplo, recorrem a estratégia adotada pelos antepassados para casos de doença: ficar isolados em casas construídas dentro da mata, afastadas da sede da aldeia; isolamento também reforça práticas como a caça e a pesca fragilizadas após décadas de contato dos povos indígenas da Amazônia com "colonizador" 



Isolados em aldeia no rio Amônia, Ashaninka recorrem a "plano de contingência"   adotado pelos mais velhos décadas atrás para evitar danos causados por uma gripe, por exemplo (Fotos: Arisson Jardim/2019)  





A pandemia do novo coronavírus que leva as populações indígenas da Amazônia a viver em autoisolamento para evitar a chegada da Covid-19 a suas aldeias, tem sido enfrentada com o reforço do modo de vida e a relação ancestral com a floresta. Isso ocorre tanto no sentido do acesso à comida quanto ao de comportamento que assegura a segurança de toda a comunidade em tempos de adversidade, como os atuais.


É o exemplo dos Ashaninka e dos Yawanawa no Acre. Moradores da Terra Indígena do Rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, os Ashaninka têm recorrido a um método usado por seus antepassados quando ficavam doentes, afetados por uma gripe, por exemplo. É tradição em cada família ter uma casa dentro da mata - afastada da aldeia - para ficar em isolamento nos dias que estão doentes, evitando que outras pessoas sejam contaminadas.

“As famílias estão posicionando seus pontos estratégicos em caso de entrada do vírus em nossa comunidade. Cada uma tem uma casa fora da aldeia. Isso já é da cultura Ashaninka. Você está ali na sede, mas você tem sempre um ponto, uma casa, um roçadinho afastado da beira do rio. O meu avô fazia muito isso quando tinha uma gripe forte. Passavam lá meses, depois voltavam para saber se estava tudo bem”, diz Francisco Piyãko, liderança do povo Ashaninka.

O município de Marechal Thaumaturgo já tem 35 casos confirmados da Covid-19. A chegada do vírus representa uma grande ameaça por conta da carência na estrutura do serviço público de saúde, como a falta de leito de UTI. Sem acesso rodoviário, pacientes que necessitem de tratamento intensivo teriam que ser levados para Cruzeiro do Sul de avião.

O município tem grande parte de sua população formada por indígena. São mais de 2.100 divididos em diversas etnias, sendo os Ashaninka a maioria. Outras etnias presentes são os Arara, Kuntanawa, Jaminawa e os Huni Kuin. Desde o início do surto os Ashaninka decidiram se autoisolar na aldeia Apiwtxa e impedir a entrada de não-indígenas. Uma das atividades desenvolvidas por eles é o turismo, atraindo pessoas de todo o mundo interessadas em viver e conhecer seu modo de vida ancestral.

Sua característica principal é a produção de alimentos no sistema agroflorestal (SAF). E esta prática sustentável é o que, agora, garante a segurança alimentar dos Ashaninka em tempos de pandemia. Desde meados de fevereiro os Ashaninka estão sem ir a Marechal Thaumaturgo, onde costumavam comprar parte dos alimentos.

“Durante este tempo organizamos nosso sistema de abastecimento por meio da nossa Cooperativa Agroextrativista Ashaninka do Rio Amônia, a Ayõpare. A cooperativa faz a compra e o abastecimento para atender a necessidade mais essencial. Este já era um modelo nosso antigo, mas só agora conseguimos colocar em prática. Isso tem sido muito importante. A nossa comunidade não tem passado nenhuma dificuldade de fome”, afirma Piyãko.

Segundo ele, a maior preocupação é evitar a entrada do vírus nas aldeias. Além do sistema cooperativo, eles vêm reforçando sua capacidade de produção de alimentos por meio dos roçados e do SAF. “Temos uma área rica, na qual trabalhamos toda a vida protegendo, de caça, de pesca. Nossos roçados estão bastante abastecidos, e as famílias estão aproveitando para ampliar ainda mais a nossa produção”, diz a liderança.

De acordo com ele, os Ashaninka vão ter garantido o acesso à alimentação durante este tempo de autoisolamento que os protege do novo coronavírus.

 “Nós estamos garantidos para um tempo longo. Por isso estamos trabalhando enquanto temos saúde para não termos nenhuma crise, porque ninguém sabe quando vai terminar esta situação toda.”    

Além de Marechal Thaumaturgo, os Ashaninka também estão presentes em Feijó. Por lá eles moram na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira. Sua língua é a Aruak. Nos tempos pré-colombianos, os Ashaninka faziam parte do poderoso império Inca, que se espalhava dos Andes até a selva amazônica. Ainda hoje eles também estão presentes no outro lado da fronteira, no Peru..


Ancestralidade retomada



A chegada do europeu ao continente teve como impacto não apenas o estabelecimento de fronteiras entre um povo que era um só. Este contato com o homem branco afetou sobremaneira o modo de vida destas populações, além do genocídio ocasionado por encontros nem sempre amistosos, além das doenças “importadas”.      

A intensificação do contato dos povos indígenas da Amazônia – em especial no Acre – com o homem branco (a partir do começo do século 20) os forçou a perder seu modo de vida tradicional. Este perda ocorreu não de forma voluntária, mas forçada pelos donos dos antigos seringais que escravizavam essas populações na extração do látex, impondo a eles sua visão de mundo cristã-judaíca-ocidental.

Desta maneira, acabaram por abandonar sua espiritualidade baseada no culto e adoração às forças naturais da floresta, mais os modos de sobrevivência alimentar dentro da floresta.

Acostumados a tirar o sustento a partir da caça, da pesca e dos roçados, foram proibidos pelos “barões da borracha” de exercerem tais atividades para comprar tudo o que necessitavam nas casas de Aviamento, os locais nos seringais onde eram vendidos alimentos, suprimentos e ferramentas, criando um ciclo de dívidas entre seringueiro e seringalista que sempre deixava os primeiros impedidos de abandonar os seringais até que todos os débitos fossem quitados - sendo isso quase nunca possível.

Com o passar das décadas, a economia da borracha faliu e os seringais voltaram a ser aldeias, nas áreas já ocupadas pelos povos indígenas séculos atrás. Com a saída dos patrões, a influência cultural ocidental ocorreu por meio de missionários evangélicos na tarefa de realizar uma “neocatequização” dos índios. Este contato afetou sobretudo a relação dos povos indígenas com sua espiritualidade e ancestralidade.

Nas últimas décadas, contudo, os povos indígenas vêm recuperando e reforçando o modo de vida dos antepassados, valorizando toda a sua ancestralidade cultural. Contudo, ainda restam as marcas de séculos de colonização ocidental, em especial na relação com a produção alimentar. Muitas comunidades abandonaram práticas como a caça, a pesca e o roçado para depender dos alimentos industrializados vendidos nos mercados das cidades.

A invasão de seus territórios por caçadores e pescadores clandestinos reduz a oferta de alimentos. Obrigados a viver estes tempos em isolamento dentro das aldeias, eles necessitam recuperar a maneira de viver de seus avós e bisavós para ter alimento suficiente para toda a comunidade, por um tempo indeterminado. Este é um processo que nem sempre é fácil, demandando tempo para uma readaptação e coleta daquilo que foi plantado na terra.  A macaxeira e a banana são dois dos principais alimentos da dieta indígena. 

Quem tem sentido na pele essa readaptação são os Yawanawá do rio Gregório, em Tarauacá. Eles também estão sem ir a cidade para evitar a contaminação pelo coronavírus. Até uma barreira foi construída no rio para impedir o fluxo de pessoas entre as aldeias e o centro urbano. O município tem 105 casos confirmados da Covid-19.   

“Esse momento difícil que a humanidade está passando nos faz conectarmos com a nossa essência. Esse momento difícil que a humanidade está passando nos faz conectarmos com a nossa essência”, diz a liderança Biraci Yawanawa, o Bira, em entrevista ao blog no começo do mês.  

“Nós somos um povo conhecedor de muita medicina. Quando apareceu esses remédios da indústria da farmácia, dos hospitais, nós esquecemos todo o nosso conhecimento. Viramos preguiçosos de nosso saber da floresta. Agora precisamos nos reconectar com o nosso saber, nosso conhecimento, com a nossa ciência. Para mim é um momento de repensar toda a nossa história”, completa.



A Covid-19 e os povos indígenas



O autoisolamento tem sido crucial para proteger os indígenas acreanos do coronavírus. Oficialmente a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não apresenta casos de contaminações ou mortes no Acre. O órgão só leva em consideração os casos ocorridos dentro das aldeias. Nas cidades, contudo, há informações de que ao menos cinco deles testaram positivo, sendo das etnia Huni Kuin e Jaminawa.

A realidade não é a mesma em toda a Amazônia. Os casos mais graves são registrados entre os povos indígenas do Amazonas. Segundo dados da Sesai, até sábado (23) havia o registro de 695 indígenas testados positivos para a Covid-19, com 34 mortes. Há em análise 220 notificações.

 Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) estes dados estão subnotificados, pois a secretaria não leva em conta os índios que moram nas cidades, mais expostos ao contágio. Nas contas da entidade, 103 indígenas já perderam a vida para o vírus e outros 610 estão contaminados. Ao todo 44 diferentes povos foram atingidos pelo novo coronavírus. 

As principais vítimas são os Kokama, moradores da região do Alto Solimões, no Amazonas. Oficialmente, o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Solimões registra a morte de 18 indígenas. Segundo as lideranças do povo, este número é muito maior pois muitos estão morrendo sem atendimento adequado nas cidades, em especial em Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.  (colaboração de Arisson Jardim) 


Leia Também:  Coronavírus leva indígenas do Acre a "fechar aldeias" e interromper turismo 



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