Páginas

terça-feira, 28 de setembro de 2021

S.O.S Acre

 A Amazônia no Acre pede socorro  


No Brasil, quando se fala em políticas de proteção da Floresta Amazônica, muito se atribui apenas ao governo federal a responsabilidade. A partir do momento em que a Presidência da República é ocupada por alguém com visão totalmente antiambiental e anti-indígena, é bem mais fácil jogar todo o ônus da atual devastação do bioma nos ombros de Brasília. Todavia, é importante ressaltar que a Amazônia Legal é formada por nove Estados com governos regionais autônomos, e que esses governos também têm muita responsabilidade direta em proteger a floresta.

Vejamos o que acontece aqui, no pequeno e quase invisível Acre, no extremo oeste da Amazônia brasileira.  O Estado, que por 20 anos exerceu certo protagonismo na preservação de sua cobertura florestal, hoje é referência naquilo que há de pior em termos de política ambiental. O ritmo sem precedentes de devastação da Amazônia no Acre é consequência tanto do desmonte das políticas de proteção do meio ambiente promovida pelo governo federal quanto pelo local.  

Por aqui, a estratégia de deixar a boiada passar foi adotada com muito mais antecedência pelo governo de Gladson Cameli (PP) do que aquela exposta por Ricardo Salles diante de um país assustado com a pandemia da Covid-19. Ainda durante sua campanha para governador, Cameli tinha como promessa fazer do agronegócio o carro-chefe da economia acreana. Para isso, ele garantia desburocratizar e flexibilizar as normas ambientais do Estado. Também muito se dizia em tirar a fiscalização do pescoço de quem quer produzir.

A principal missão de Gladson Cameli ao assumir o governo do Acre, em janeiro de 2019, era destruir todo o arcabouço institucional de proteção da Amazônia construído durante as duas décadas de governos do PT. Tal política gestada durante o chamado governo da floresta de Jorge Viana (1999-2006), conhecida como florestania, passou a ser o inimigo público número um de Gladson Cameli. Na visão dele, a florestania era responsável por colocar o Acre na miséria, apontando o agronegócio como solução mágica.   

Assim foi feito. Num de seus primeiros eventos públicos já como governador, Gladson Cameli desmoralizou a atuação dos agentes do Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac), afirmando que ninguém precisava mais pagar as multas ambientais porque “agora quem está mandando sou eu”. A fala de Cameli foi o sinal verde para a abertura da porteira, e a boiada avança sem dó desde então. O discurso de Cameli ocorreu no município de Sena Madureira, que hoje figura entre os campeões de desmatamento e fogo dentro da Amazônia brasileira.

De acordo com o último boletim do desmatamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Sena Madureira foi o quinto município da Amazônia Legal que mais derrubou floresta em agosto de 2021. Aliás, o Acre foi o terceiro Estado que mais contribuiu para a destruição do bioma mês passado; foram 236 km2 de Amazônia destruídos no pequeno Acre; em julho, já tinham sido outros 313 km2 de mata devastados.

Conforme o Imazon, entre agosto de 2020 e julho deste ano, o Acre viu desaparecer 927 km2 de Floresta Amazônica. Os números são estarrecedores se tratando de um território tão pequeno como é o Acre, quando comparado ao gigantesco vizinho Amazonas e ao Pará. Até 2019, o Acre ainda tinha ao menos 86% de seu território amazônico intacto. Ao se olhar os dados do Imazon e do Inpe, percebe-se que o desmatamento avança justamente para as áreas com maior cobertura florestal intacta.

Depois de Sena Madureira, Feijó e Tarauacá são os municípios com os maiores registros de áreas desmatadas e focos de calor desde 2019; isso não apenas dentro do Acre, mas entre os demais municípios do Norte.

Quando analisamos os dados das queimadas, observamos que a maior quantidade de focos de calor desde 2019 se concentra justamente nestes três municípios, localizados em regiões de uma Amazônia ainda bem preservada. Em 2021, conforme o Boletim de Queimadas do Inpe, Feijó, Tarauacá e Sena Madureira lideram o ranking do fogo. É sobre essa região do Acre que avança a “fronteira agrícola”, o “arco do desmatamento”.

Após todo o leste acreano ter sido devastado para a abertura de fazendas de gado nos últimos 40 anos - com a política da ditadura militar (1964-1985) de “ocupar” a Amazônia -  agora a devastação avança rumo ao oeste de floresta intacta. A exploração madeireira legalizada por meio de planos de manejo nada sustentáveis também causa impactos imensuráveis. Agora, a atividade vai ganhar ainda mais intensidade com a proposta do governo Gladson Cameli de entregar milhares de hectares de florestas públicas para “exploração comercial”.  

A política do governo Gladson Cameli de patrocinar projetos de abertura de estradas em regiões hoje isoladas e preservadas é outro fator para um desmatamento quase sem controle no estado. O projeto mais ameaçador é o da construção da estrada entre Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade acreana, e Pucallpa, capital do departamento peruano de Ucayali.

Caso de fato saia do papel, a rodovia provocará a destruição de uma das regiões mais intocadas do bioma por meio da grilagem, da extração de madeira, do garimpo e do tráfico internacional de drogas. A rodovia é uma grave ameaça para a preservação da Amazônia, independentemente das linhas fronteiriças.

E é assim, no caminho de rodovias e com as porteiras escancaradas, que o Acre dá a sua infeliz contribuição para o aumento da destruição da mais importante floresta tropical do mundo - tão importante para mitigar os efeitos da crise climática. Uma crise climática já vivida pela população local com enchentes e secas acontecendo com mais frequência e maior intensidade. De mocinhos passamos a ser vilões na proteção do bioma. A Amazônia no Acre clama por ajuda.


Este artigo foi publicado originalmente no site ((o)) eco

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Invasões sem fronteiras

Rodovia no Peru ameaça territórios indígenas no Acre 

 

TI Kampa do Rio Amônia: após ser invadida por madeireiras numa passado nem tão distante, Ashaninka temem novos impactos (Foto: Secom/AC)

 

Ao menos 30 terras indígenas no Brasil e no Peru, localizadas nas bacias dos rios Juruá, Ucayali e Tamaya, estão ameaçadas pela retomada das obras de recuperação da rodovia UC-105 situada no lado peruano. Indígenas do estado do Acre alertam que a região ficará cercada por diversas frentes que trarão devastação ambiental e social. Além da retirada ilegal de madeira, outras atividades de elevados efeitos sociais e ambientais tendem a ser impulsionadas, como a mineração e a indústria petrolífera. O tráfico internacional de drogas também tende a tirar benefícios da rodovia.  


Preocupados com os impactos que a reabertura da estrada provocará em suas terras nos dois lados da fronteira, os indígenas do povo Ashaninka se reuniram em agosto passado para denunciar o caso por meio do dossiê “A Estrada Ilegal Nueva Italia – Puerto Breu: Uma Grande Ameaça para os Povos Indígenas do Yurúa, Alto Tamaya e Alto Juruá”.

No lado brasileiro, quatro terras indígenas e uma unidade de conservação estão ameaçadas pelos impactos da rodovia: TI Ashaninka do Rio Amônia, TI Arara do Rio Amônia, TI Kaxinawa/ Ashaninka do Rio Breu e TI Jaminawa Arara do Rio Bagé e Reserva Extrativista do Alto Juruá.

A rodovia foi construída no final da década de 1980 por uma empresa petrolífera norte-americana, mas foi utilizada ao longo dos anos 1990 pelas madeireiras para o transporte das toras, pressionando o lado brasileiro até os anos 2000.

A liderança Francisco Piyãko foi uma das vozes a denunciar a invasão do território Ashaninka pelas madeireiras peruanas já naquela época. Com 87 mil hectares, a Terra Indígena (TI) Kampa do Rio Amônia está no município de Marechal Thaumaturgo, no Acre, no limite fronteiriço entre Brasil e Peru. Para Francisco Piyãko, os impactos sociais e ambientais com o retorno da extração de madeira – a partir da recuperação da UC-105 – tendem a ser bem mais graves e preocupantes do que os ocorridos no passado.

Além da retirada ilegal de madeira, outras atividades de elevados efeitos sociais e ambientais tendem a ser impulsionadas, como a mineração e a indústria petrolífera. O tráfico internacional de drogas também tende a tirar benefícios da rodovia.  

“Estamos passando por um momento muito preocupante. Diante de todos os conflitos que a gente já teve aqui nesta fronteira, este é o pior. Nós vivemos em 2005, mais ou menos, uma situação muito tensa de invasão de madeireira em nosso território. Mas foi só por um período”, diz a liderança do povo Ashaninka, em entrevista à Amazônia Real. “Vão estar trazendo para a região um conflito eterno”.

Com a reconexão rodoviária entre Nueva Italia e Puerto Breu, no departamento peruano de Ucayali, a pouco mais de 10 km de distância da faixa de fronteira, e, consequentemente, da TI Kampa do Rio Amônia, a liderança avalia que a estrada é uma ameaça não apenas para seus parentes no Peru, como também para os Ashaninka e outros povos do lado brasileiro. “Acabou a nossa paz.  Não vai ser uma luta para tirar os madeireiros da região. Eles vão estar assentados ao longo da estrada.”

A proposta, conforme Francisco Piyãko, é que essas famílias [de madeireiros] ganhem lotes de terra para que cultivem coca para os laboratórios dos cartéis do tráfico. O relatório aponta, a partir de imagens de satélite, o aumento na área de cultivo da coca, bem como a abertura de pistas de pouso, de onde a cocaína peruana é exportada para o mundo.

A UC-105 é uma rota do tráfico internacional de drogas. É nessa porção da floresta peruana que se concentra parte do cultivo da folha de coca e os laboratórios para o refinamento da cocaína. Do lado brasileiro, a facção criminosa Comando Vermelho domina toda a logística da compra e distribuição da droga. Os rios e igarapés servem como rota para o entorpecente chegar até as cidades acreanas e outros mercados no país.

“Depois desta estrada feita eles vão assentar as famílias e tomar conta da região. É do lado do Peru, mas o impacto é muito direto para nossa comunidade, vai tirar nossa tranquilidade, a nossa paz. Nós vamos ficar numa situação muito difícil”, afirma o líder indígena. Uma de suas preocupações é com a degradação pela qual o rio Amônia passará com a intensificação da atividade madeireira e do garimpo. É do Amônia onde os Ashaninka retiram água para consumo e a pesca.

Durante as décadas de 1980 e 1990, quando a extração de madeira esteve em seu auge dentro do território, os Ashaninka também tiveram impactos sociais e culturais. Por conta da presença dos trabalhadores brancos das empresas, os Ashaninka por muito pouco não perderam seu modo de vida tradicional – deixando de lado a língua e as vestes – além de problemas com o alcoolismo.  

“Nossos rios estão ameaçados de ser contaminados. E não é só a comunidade Ashaninka que vai estar prejudicada. São todos os que moram no Juruá, indígenas ou não indígenas”, ressalta Francisco Piyãko.

Segundo a denúncia dos Ashaninka, a recuperação da UC-105 atravessaria uma extensão de 107 km dentro de terras indígenas, que no país vizinho são chamadas de comunidades nativas. A preocupação se dá com a expansão dos impactos nas duas margens da rodovia.  

Presidente da Organización Regional de Aidesep Ucayali (Orau), entidade que representa 15 diferentes povos indígenas dentro do departamento peruano, Jiribati Ashaninka Diques afirma que a ausência de estudos de impactos sociais e ambientais na reabertura da UC-105 – além da falta de consulta prévia – acabam por agravar ainda mais a situação para as comunidades do entorno.  


Leia a reportagem completa na Amazônia Real e veja mais depoimentos de lideranças do Peru