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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

fronteiras fechadas

Após 10 anos,  haitianos desistem do Brasil

 

Imigrantes pelas ruas de Iñapari, após forçaram passagem em barreira policial na ponte Brasil/Peru (Foto: Alexandre Noronha/Amazônia Real)

 

O sonho de viver no Brasil se foi. Mas haitianos e outros imigrantes, a maioria africanos, enfrentam agora o pesadelo de não poder sair do país. Dez anos depois de cruzarem a ponte sobre o rio Acre, na divisa com o Peru, eles desistiram de refazer a vida em uma nação mergulhada em crises, onde já não conseguem arrumar trabalho ou ganhar o suficiente para o sustento. “Vou embora do Brasil porque o dinheiro é pouco”, resume o haitiano Wislet Jules, 43 anos, que ainda assim se sente grato pela acolhida em sua chegada. “O Brasil recebe todo imigrante. Dá comida e cama. Não temos problemas aqui.”


Mas gratidão não garante a sobrevivência quando as contas não fecham. Jules morou os últimos sete anos em Cuiabá, capital do Mato Grosso. Realizando serviços gerais, ele conseguia receber apenas para sustentar mulher e filhos. Só que nos últimos três anos os trabalhos se tornaram escassos. “Eu pagava 450 reais de aluguel, mais as contas de água e luz e para comer. Não tinha dinheiro para mandar para os filhos que ficaram no Haiti”, afirma.

Essa história tem poucas variações para cada uma das quase 400 pessoas que estão no município acriano de Assis Brasil, na fronteira com a província de Iñapari, em Madre de Dios, no Peru. O movimento de retorno dos imigrantes se iniciou há cerca de três meses, conforme as coisas foram se tornando mais difíceis no lado brasileiro.

Se antes o Acre era a porta de entrada, agora virou a de saída. Mas por conta da pandemia da Covid-19, o governo do Peru decidiu fechar as fronteiras para os imigrantes. Policiais e soldados do Exército do país vizinho bloqueiam a entrada de estrangeiros na margem direita do rio Acre – mesmo que seja apenas para uma breve passagem. “Nós não queremos ficar no Peru, queremos apenas passar”, garante um jovem de Guiné-Bissau que passou a morar na ponte.

Durante três dias, a reportagem da Amazônia Real acompanhou o drama dos imigrantes que tentam sair do Brasil. No dia 16 de fevereiro, houve um confronto entre os imigrantes e as forças de segurança do Peru. Cansados após estarem três dias no relento sobre a ponte, eles tentaram furar o bloqueio formado por escudos e cassetetes.

Numa luta desigual, eles acabaram sendo empurrados de volta para o Brasil. Com os corpos marcados por hematomas, os olhos vermelhos por conta do gás lacrimogêneo, mulheres e crianças também vítimas de agressão – alguns ensanguentados e outros caídos ao asfalto exauridos pelo confronto -, os imigrantes voltavam ao pesadelo de viver os dias ao sol, à chuva, aos mosquitos, além do risco de serem infectados pelo novo coronavírus, na ponte da Integração.

A grávida haitiana Maria*, de 36 anos, foi ferida no braço direito por um golpe de cassetete. Ela e o marido tentam atravessar a fronteira com nove crianças. Cinco são de Maria e os outros quatro do primeiro casamento do marido. Antes de morar na ponte, os dois trabalhavam em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, como diaristas. Juntos, eles conseguiam uma renda de até 2 mil reais.  Mas o dinheiro passou a ser insuficiente para fechar o mês.

“O que a gente ganhava só dava para pagar aluguel, para comer, pagar a luz e a água. Nós estamos procurando um futuro melhor. Não é porque o Brasil é ruim que estamos mudando. Os brasileiros também estão saindo em busca de um lugar melhor. Nós vamos sair com muito respeito, e se lá não der certo vamos voltar. Amo o Brasil de coração”, diz Maria, que pretende chegar ao México.

O eletricista haitiano Abel*, de 23 anos, morava em Guarulhos, interior de São Paulo, e trabalhava na capital paulista. Todos os dias só de transporte gastava 15 reais, entre ônibus e metrô. Ele e a mulher – uma haitiana que conheceu no Brasil –  vivem no país há três anos. Nesse período, ela nunca conseguiu trabalho. “O dinheiro que ganhava era só para sobreviver. Não sobrava nada para gente ter uma vida social, passear, ir a um shopping. Era só para pagar as contas e comer. Não conseguia nem enviar uma ajuda para minha mãe no Haiti”, relata.

Sem conseguir trabalhos nos últimos anos, o marfinense Soro Drissa, de 40 anos, quer chegar ao Canadá. No Brasil, ele trabalhava como ajudante de pedreiro. Sua mulher, já mãe de duas meninas, está grávida. O casal não sabe quanto tempo vai levar até um destino final, nem em qual país nascerá o próximo filho.  

Drissa e a mulher emocionaram a todos que acompanharam aquela terça-feira (16) de batalha na fronteira. A mulher não se sentiu bem e se deitou na rua.  Ao encontrar a mulher quase desacordada, ele se agarrou a ela, beijando a barriga. A cena não sensibilizou o comandante da operação peruano, que ordenou aos soldados para tirá-lo à força dali, agarrado pela blusa e calça. 


Leia reportagem especial completa na Amazônia Real

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Questão de fronteira

 Indígenas isolados que vivem no Peru se refugiam no Brasil 

 

“Nunca aconteceu uma aproximação tão intensa de indígenas isolados no lado brasileiro.” O sertanista José Carlos Meirelles fala com a segurança de quem, desde os anos 1970, trabalha com povos isolados do Acre. No fim de janeiro deste ano, chegaram até ele notícias de que um grupo se aproximou de uma aldeia no Alto Rio Iaco, na Terra Indígena (TI) Mamoadate. Os Manxineru da aldeia Extrema, a última dentro da TI, se depararam com vestígios e ouviram assobios como num sinal para não avançarem mais. Para especialistas ouvidos pela Amazônia Real, é muito provável que sejam os Mashco Piro, que formam o maior grupo de indígenas isolados nesta região fronteiriça e também do mundo.


Os Mashco Piro costumam ficar no período intenso de chuvas na região sul da Amazônia nas partes mais altas e secas. Já nos meses de estiagem, que se estende de abril até o fim de setembro, descem para as partes baixas. Eles são conhecidos por se movimentarem em uma vasta área de floresta – que vai das cabeceiras dos rios Madre de Dios (o Madeira no Brasil) – atravessando o rio de Las Piedras ao Taumanu – e indo até as nascentes dos Rios Acre, Juruá, Chandless, Iaco e Purus. Nesse momento, portanto, deveriam estar longe do território brasileiro.

“Algo deve estar acontecendo para eles se aproximarem tanto do lado brasileiro, pois no Peru, quando [os invasores] topam com índios isolados, eles tocam chumbo”, arrisca o sertanista Meirelles. “Pode ser que estejam procurando no Brasil uma área mais tranquila, e que não falte caça. Pode ser que estejam apenas passando um tempo escondidos. Devem estar se sentindo pressionados.”

Essa pressão pode decorrer de atividades como garimpos, exploração de gás e petróleo, extração descontrolada de madeira e a forte presença do narcotráfico na Amazônia peruana. Mas os Mashco Piro também acabam sendo forçados a se deslocar pela pressão desenvolvimentista dos governos.

A fronteira Brasil-Peru – com extensão de 2,8 mil quilômetros – é uma das mais ameaçadas por explorações econômicas ilegais e projetos de infraestrutura defendidos pelos governos dos dois países. Um dos que ganharam força desde 2019 é a construção de uma rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, a segunda maior do Acre, e Pucallpa, capital do departamento de Ucayali.

O traçado da estrada passa por uma das regiões mais ricas em biodiversidade em dimensão global. E é nesse vasto território que se registra a maior presença de povos indígenas em isolamento voluntário do mundo, incluindo os Mashco Piro nas cabeceiras do rio Juruá.

Outro projeto de grande impacto é a conexão rodoviária entre as províncias de Puerto Esperanza e Inãpari, no departamento de Madre de Dios. A rodovia vai atravessar áreas naturais protegidas no Peru e estaria bem próximo da fronteira com as TIs Mamoadate e Cabeceira do Rio Acre.

“Os Mashco Piro vão ficar bem no meio do traçado da rodovia. A rota tradicional deles vai estar afetada por ramais de madeireiras e de garimpo”, alerta o indigenista José Frank de Melo, assessor técnico do Setor de Geoprocessamento da Comissão Pró-Índio (CPI-Acre). 

Em junho de 2014, quando um grupo de isolados fez contato com os Ashaninka da aldeia Simpatia, no alto rio Envira, também região de fronteira, eles estavam em busca de um local mais seguro para fixar moradia.

Agora considerado um povo de recente contato, os isolados do Xinane relataram que chegaram ao lado brasileiro após serem expulsos por invasores do lado peruano. O sertanista Meirelles participou do processo de aproximação deles com os Ashaninka. Formando um grupo de ao menos 35 pessoas, hoje eles vivem numa base da Fundação Nacional do Índio (Funai) na TI Kampa e Isolados do Rio Envira.

Já o grupo que se aproximou dos Manxineru na TI Mamoadate, no mês passado, não é o mesmo do Envira. Isso porque os isolados do Xinane falam uma língua do tronco linguístico Pano, enquanto os Mashco Piro são falantes do tronco Arawak, o mesmo dos Manxineru. Para Meirelles, essa estadia numa área perto da aldeia Manxineru não é por acaso. Os Mashco Piro ainda se caracterizam por andar em grandes grupos, podendo chegar a mais de 200 pessoas.  

“O caso de querer fazer contato, acho mais remoto. Mas eles sabem onde estão. Assim como os Manxineru já observaram eles, os Mashco já estão observando os Manxineru há muito tempo, já ouviram que falam uma língua parecida com a deles. Eles não estão ali por acaso. Sabem que estão seguros ali”, explica Meirelles.

Um efeito causado pelo desmatamento para a abertura de garimpos e a retirada de madeiras nobres na Amazônia peruana é a redução na oferta de alimentos. Tanto assim que a área do quase contato entre os Manxineru e os isolados peruanos é conhecida pela fartura de caça. Com os novos moradores às margens do igarapé Paulo Ramos, os Manxineru também buscam outras regiões para caçar. 


Leia a reportagem completa na Amazônia Real

Colapso transfronteiriço

Enchentes podem agravar quadro de pandemia na fronteira, alertam cientistas 

 

Rio Acre em Rio Branco ultrapassa cota de alerta (Foto: Fabio Pontes)
 

Cientistas com atuação na tríplice fronteira Brasil-Bolívia-Peru e que integram o grupo MAP (Madre de Dios, Acre e Pando) emitiram alerta sobre o risco de colapso na região por conta do agravamento da pandemia em consequência das enchentes de rios e igarapés que podem desabrigar milhares de famílias. De acordo com carta elaborada pelo grupo, o transbordamento dos mananciais ocasionado pelo alto volume de chuvas tende a aumentar o número de pessoas infectadas pelo coronavírus.


Como muitas famílias precisam deixar suas casas durante a inundação, sendo levadas para abrigos formando aglomerações, a tendência é de que o contágio ocorra de forma mais intensa. Este aumento de contaminados pode ocorrer no momento em que o sistema público de saúde enfrenta um colapso com hospitais superlotados e sem vagas de UTI Covid.

“Durante uma pandemia, como a da Covid-19, tal proximidade [de desabrigados] pode desencadear um colapso dos sistemas de  saúde  pública  com  uma  transmissão  acelerada  da  doença  no  mesmo  tempo  em  que  a  capacidade hospitalar e o apoio da Defesa Civil estão comprometidos”, diz o documento do grupo MAP.

Nesta quarta, 10, o rio Acre ultrapassou a cota de transbordamento, atingindo a marca dos 14,03m. Vale ressaltar que o rio é o limite natural que separa as fronteiras dos três países. Para os especialistas, muito mais do que apenas fechar as fronteiras, os governos sub-regionais devem intensificar os diálogos entre si para conter os efeitos da pandemia e da enchente na região. Eles lembram que cidades como Cobija, Brasileia e Epitaciolândia têm elevada integração social, cultural e econômica, numa relação de interdependência.

“Controlar as fronteiras com sabedoria, dado a interdependência entre as populações.  Soluções sem  ser  bem  pensadas  podem  resultar  em  problemas  múltiplos  e  piores  do  que  o  problema original”, apontam os cientistas como uma das soluções para enfrentar o problema da pandemia x enchente.

As outras duas medidas mais práticas defendidas é a antecipação para isolar pessoas com sintomas da Covid-19 que sejam enviadas para abrigos - para evitar a contaminação de outros indivíduos -, além da coordenação e compartilhamento de informações entre os três governos de fronteira nas áreas de saúde e defesa civil.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

In Memoriam

 Fernadno Katukina, cacique Nôke Kôi, que fez da educação a resistência de seu povo 

 

(Foto: Odair Leal/Governo do Acre)

 
Na tarde de 19 de janeiro, o cacique Fernando Rosas Kapi Icho Katukina recebia, em seu braço direito, a primeira dose da CoronaVac. Usando um imponente cocar feito com penas de arara e um colar (matte) de elevado valor espiritual, a liderança indígena decidiu se voluntariar para incentivar o povo Nôke Kôi a tomar a vacina. Ele próprio já havia sido infectado em 2020, e sabia da importância de lutar contra a Covid-19. Mas Fernando Katukina não pode receber a segunda dose do imunizante, prevista para 16 de fevereiro. Na madrugada desta segunda-feira (1º), ele sofreu uma parada cardíaca e morreu, aos 56 anos.

“Há 11 anos, ele lutava contra um quadro de diabetes bastante grave e há quatro veio a ser diagnosticado com hipertensão, tendo falecido por volta das 4 horas em sua casa, na Aldeia Campinas, vítima de uma parada cardíaca”, diz a nota do Dsei Alto Juruá, responsável pelo atendimento médico nas sete aldeias da TI Campinas/Katukina. Habitada por 756 pessoas, a aldeia é cortada ao meio por um traçado de 18 quilômetros da BR-364, que interliga a capital Rio Branco a Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. Fernando Katukina morreu na aldeia Campinas (Kamanawa), a mais populosa dentro do território indígena e a 68 quilômetros da sede urbana de Cruzeiro do Sul.

Tão logo a notícia da morte de Fernando Katukina passou a circular, negacionistas tentaram ligar o fato a possíveis efeitos adversos da vacina. Foram, inclusive, ancorados pela imprensa local, que publicou manchetes como “Morre o primeiro indígena a tomar a CoronaVac no Acre” sem a devida contextualização. Fake news relacionadas à morte da liderança – criminosas -, chegam em um momento em que muitos indígenas do Acre e de outras localidades se recusam participar da imunização.

Tanto o Dsei do Alto Rio Juruá quanto a Coordenação Regional do Juruá – da Fundação Nacional do Índio (Funai) – deixaram claro que Katukina morreu de parada cardíaca. Em nota de pesar, o distrito sanitário lamentou a perda e deixou claro que Fernando Katukina era acompanhado por uma Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) e por especialistas.

A disposição da liderança de oferecer seu braço para receber a primeira vacina entre os povos indígenas do Vale do Juruá tinha muito mais do que um valor simbólico. A vacinação era também um ato político por conta da presença do governador Gladson Cameli (PP) naquela quadra esportiva de um colégio de Cruzeiro do Sul. Katukina queria servir de exemplo para os quase 24 mil indígenas acreanos.