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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Proximidade estratégica

 De olho em recursos internacionais, governo Cameli busca aproximação com movimento indígena


Governador Gladson Cameli reunido com lideranças do movimento indígena; proximidade tenta desfazer imagem negativa na área ambiental (Foto: Governo do Acre)


Após quase dois anos ocupando o Palácio Rio Branco, enfim o governador do Acre, Gladson Cameli (partido indefinido), busca uma aproximação com o movimento indígena do estado. Isso depois de ele ter extinguido* a Assessoria dos Povos Indígenas - ligada à Casa Civil até o fim das gestões petistas - e de pouco ou quase nada ter feito por estas comunidades durante o período mais crítico da pandemia do novo coronavírus. 

Essa proximidade, todavia, não é resultado de uma mudança de paradigma do atual governo, eleito em 2018 com o discurso de destravar os mecanismos de proteção ambiental para fazer do agronegócio o grande carro-chefe da economia acreana. O resultado desta política tem sido o Acre alcançar níveis recordes em desmatamento e queimadas desde o ano passado. 

A guinada do governo Cameli de receber o movimento indígena no Palácio Rio Branco é estratégica; enfrentando um déficit orçamentário e diante das previsões de um 2021 nada positivo para a economia, o governo vai bater à porta de investidores e governos internacionais em busca de recursos. A contrapartida dos estrangeiros, lógico, é a manutenção da Amazônia em pé. 

Como não tem sido capaz de controlar o desmatamento, o governo Cameli busca colocar ao seu lado aqueles que melhor preservam a floresta: os indígenas. O desmatamento dentro das 34 terras indígenas acreanas - que respondem por 14% do território - chega a menos de 1%. E essa abertura de área está relacionada ao uso dos roçados, de onde é tirada a subsistência das comunidades. 

O governo afirma ter R$ 15 milhões para aplicar em projetos de gestão e monitoramento das terras indígenas. Este dinheiro é oriundo de projetos iniciados ainda nos governos petistas em parceria com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). O Acre ainda dispões de alguns outros milhões de euros enviados pelos alemães por meio do banco de fomento KFW. Como o estado não tem conseguido ficar abaixo da meta de desmatamento estabelecida pelos europeus, o governo pode perder a grana. 

Ao buscar essa aproximação com o movimento indígena e executar projetos que levem benefícios para as aldeias, Gladson Cameli sinaliza ao BIRD, KFW e outros investidores internacionais que o Acre respeita o meio ambiente e seus povos tradicionais, sendo um lugar seguro para se aplicar dinheiro em projetos que proporcionem o chamado desenvolvimento sustentável. 

Enquanto faz estes acenos verdes, o governo também patrocina obras de infraestrutura que contribuem para o avanço do desmatamento, colocando em risco a manutenção de ao menos 87% de Amazônia que cobrem o território acreano. 

Uma delas é a rodovia entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, no Peru, cujos danos ambientais são irreversíveis. Por sorte o Ministério Público Federal entrou em campo para conter a tentativa do governo de abrir a estrada sem a devida consulta aos povos indígenas - os mesmos recebidos por Cameli em seu gabinete palaciano.  

Um dia após receber as lideranças indígenas, Cameli postou em suas redes sociais fotos da abertura de uma estrada entre Feijó e Envira, no Amazonas, que terá como efeito imediato a grilagem de terras públicas, crime que está em ascensão no Acre, justamente nestas áreas vizinhas à BR-364 entre Rio Branco e o Vale do Juruá. Não se sabe se essa rodovia de 90 km conta com estudo de impacto ambiental. 

Como já escrevi aqui, confusão e ambiguidade são as marcas da atual gestão, e na área ambiental não poderia ser diferente. Enquanto prega uma coisa para tranquilizar os gringos, na prática atua de forma inversa. Os dados do Inpe objeto de incontáveis artigos neste blog estão aí como prova disso. Após um 2019 recorde em desmatamento, 2020 também entra para a história como o pior em registro de queimadas na última década. 

Deste jeito não tem visita a aldeias ou recepção honrosa de lideranças indígenas no Palácio Rio Branco que convença os investidores estrangeiros de que o Acre está cumprindo a lição de casa na proteção da mais importante floresta tropical do mundo. 

Menos discursos e fotografias, e mais prática, governador!     


*(Obs: A Assessoria dos Povos Indígenas foi recriada ainda no passado, mas colocada na Secretaria de Assistência Social, numa clara visão do atual governo de que política indígena é assistencialismo)


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Emergência climática

 A mudança climática é agora 


O mês de outubro vai caminhando para o seu final, e nada das chuvas chegarem com a sua devida intensidade comum para a época do ano. Afinal de contas, era para estarmos vivendo o começo do “inverno amazônico” nesta porção mais sul da Amazônia. A realidade que estamos vivendo aqui, todavia, é outra. A água que cai do céu está demorando cada vez para dar as caras; quando vem não tem a mesma força de outros tempos, e vai embora mais cedo do que o normal. 

Com menos chuvas, os rios ficam em níveis críticos por um período maior - comprometendo o abastecimento das cidades - e a floresta perde mais água. Sem umidade, ela deixa de ter a capacidade natural de se autoproteger das queimadas feitas em roçados, pastagens ou áreas de desmatamento recente nas bordas. É a maior concentração de água no solo, subsolo e na vegetação que impede o fogo das queimadas de avançar floresta adentro. 

Com menos dias de chuva e com mais dias de muito sol e elevadas temperaturas, o processo de evaporação realizado pela floresta se acelera, ficando seca. Com menos umidade na atmosfera, as árvores vão “sugar” toda a água no seu entorno, seja no subsolo ou nas folhagens. Com isso, cria-se o que os cientistas chamam de “estresse hidríco”. 

As queimadas feitas apenas em roçados passam, a cada ano, a ter mais chances de se transformarem em incêndios florestais, já que haverá muito material combustível dentro da mata pronto para pegar fogo. Os argumentos palacianos de que há histeria com o fogo na Amazônia por ele ocorrer apenas em áreas agricultáveis caminham para ser mais uma, entre tantas falácias proferidas pelo atual governo brasileiro. 

O sul da Amazônia - onde está o Acre, Rondônia, parte do Amazonas, além dos departamentos de Pando (Bolívia) e Madre de Dios (Amazônia) - é a mais vulnerável a sofrer com os impactos das mudanças climáticas. Alterações que já passamos a viver no nosso dia. Como apontam os especialistas, a tendência é de estas secas severas passarem a ser mais comuns, acompanhadas de enchentes também expressivas. 

A última grande cheia vivida no Acre foi em 2015, quando milhares de famílias em diferentes municípios ficaram desabrigadas pelo transbordamento do rio Acre, com impactos ainda na Bolívia e no Peru. De lá para cá houve cheias, mas nada de transbordos assustadores. Por se tratar de um rio que depende exclusivamente das chuvas para manter seu nível alto ou baixo, as enchentes estão mais raras com menos água vinda dos céus. 

Em contrapartida, o período que ele passa com volume crítico fica estendido. O rio Acre é responsável pelo abastecimento de 70% da população do estado. Sua condição fica ainda mais crítica pelo fato de já ter perdido grande parte de sua mata ciliar para o desmatamento ao longo das últimas 40 décadas, além do esgoto das cidades jogado com pouco ou nenhum tratamento. 

Em pleno "inverno amazônico" o nível do rio Acre chegou bem perto do volume mais crítico já registrado, em setembro de 2016, ano de El Niño. Faltaram apenas dois centímetros para a quebra de recorde em outubro. Os tempos estão mudando. E boa parte dos principais rios do estado (incluindo as bacias do Juruá e Purus) está ou em situação de alerta ou atenção em fins de outubro, quando já deveria estar num nível seguro. 

Enquanto o Acre passa a sentir cada vez os efeitos das mudanças climáticas, o governo local nada faz para amenizá-los. Ao contrário. Desde 2019 o Acre vem tendo níveis recordes de desmatamento e queimadas impulsionada pela atual política de fazer do agronegócio o carro-chefe da nossa economia, transformando em cinzas toda uma floresta que pode gerar muito mais recursos do que um boi por hectare.

O ano de 2020, definitivamente, consagra-se como o mais trágico da década em registro de queimadas. No dia 26 deste mês, segundo o Inpe, o Acre superou os nove mil focos detectados. Até o dia 18 já tínhamos 248 mil hectares de cicatrizes de queimadas, também a maior área em 10 anos.     

E, sim, o aumento do desmatamento aqui tem efeitos diretos não apenas nas chuvas do sul maravilha, mas sobretudo em nós, amazônidas. Com menos floresta temos menos água sendo mandada para a atmosfera, o que reduz a quantidade de chuvas tão necessária para a nossa sobrevivência, do gado e da soja nas fazendas. Essa é a lógica. 

Os atuais mandatários do Acre e dos demais estados do Norte precisam entender que já vivemos uma emergência climática. Os sinais estão aí. É preciso garantir a proteção da floresta para o clima retomar seu equilíbrio. O Acre já tem sua potencialidade para a economia do campo. Não é preciso mais desmatar um único hectare. Precisamos de políticas de valorização da economia de base florestal - assegurando valor e mercado - para garantir renda às famílias da floresta. 

Essa não é a economia do futuro, é a economia do agora, assim como são as mudanças climáticas.  


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Outubro sem água e com muito fogo

Com outubro quente e seco, queimadas na Amazônia estão 200% superiores


Além de queimadas recordes em 10 anos, Acre também teve a maior área atingida pelo fogo na década: 248 mil ha


Após 2019 já ter sido crítico para a proteção da Amazônia com a chegada ao poder de grupos políticos em Brasília e nos estados da região com uma agenda antiambiental, em 2020 a situação ficou agravada com a temporada quente e seca estando mais intensa e prolongada. As primeiras chuvas de outubro - mês de transição para o “inverno amazônico” - estão fracas e mal distribuídas, o que favorece o prolongamento do uso do fogo para além da temporada oficial de estiagem, de junho a setembro. 

Entre primeiro e vinte de outubro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)  identificou, em todo o bioma Amazônia, 12.774 focos de queimadas. Na comparação com os mesmos 20 dias de outubro do ano passado, os focos estão 211% superiores; naquele período foram 4.103 focos. De 1 de janeiro a 20 de outubro, a Amazônia tem 88.804 focos de queimada - aumento de 25% em comparação com igual intervalo do ano passado.  

Durante os 31 dias de outubro do ano passado, o Acre, por exemplo, teve 354 focos; faltando pouco mais de uma semana para o mês acabar já são 1.478.  Entre os nove estados da Amazônia Legal, o Acre ocupa a quarta colocação no ranking do fogo de outubro, à frente do Amazonas, que tem território dez vezes maior, e também enfrenta um 2020 recorde na quantidade de queimadas, sobretudo nos municípios ao sul, na divisa com Acre e Rondônia.  

Com o clima alterado que retarda o início de um “inverno amazônico” mais robusto, o impacto do fogo em 2020 é maior. De acordo com o  Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama), da Universidade Federal do Acre (Ufac), a área queimada no estado este ano é a maior já registrada na última década. 

Entre julho e o dia 18 de outubro, o Acre tem 248.200 hectares de terra queimada, chamadas de “cicatrizes”. O número se alia a outro recorde: 2020, segundo o Inpe, também é o mais grave em dez anos em registro de focos de queimadas: 8.879 do começo do ano até aqui. A quantidade só perde para 2005, quando o Acre e todo o sul da Amazônia foram impactados por uma forte estiagem causada pelo aquecimento das águas do Atlântico, fenômeno que se repetiu em 2010 e agora em 2020. 

O fenômeno é conhecido pela sigla em inglês AMO, cuja tradução para o português é Oscilação Multidecadal do Atlântico. Seu principal efeito é a redução da umidade na parte mais sul da Amazônia e uma concentração maior ao norte. Além das condições ambientais propícias à proliferação do fogo, também há o ambiente político de desmonte das estruturas de estado que deveriam atuar para a proteção da Amazônia, o que agrava o quadro. 


domingo, 11 de outubro de 2020

A mudança para pior

 Mudanças climáticas e políticas comprometem futuro da Amazônia - e dos amazônidas 


A cada dia que se passa, nós moradores da Amazônia, sentimos os efeitos das mudanças climáticas em nosso cotidiano. As temperaturas que já são altas de janeiro a dezembro estão cada vez mais elevadas. Para piorar, as chuvas ficam mais raras. É um clima quase de sertão na maior floresta tropical do mundo. Isso, por si só, desequilibra todo o ecossistema da região, agravada pela intensificação da ação humana. As alterações do clima, aliadas às políticas que fragilizam a proteção ambiental, fazem aumentar as dúvidas sobre a sobrevivência da Amazônia e seus 25 milhões de habitantes nas próximas décadas.

E aqui, neste canto do planeta chamado Acre, temos sentido muito os impactos das mudanças do clima e da aceleração  do processo de destruição da floresta ocasionado por um novo grupo político que assumiu os rumos do estado em 2019, carregando o que há de mais velho no pensamento político-econômico. Enquanto sofremos com um clima mais quente e seco em pleno período de transição para o “inverno amazônico”, os satélites do Inpe não deixam de captar o crescimento dos focos de queimadas. 

Este é o pior ano em uma década no registro de fogo em território acreano. Já superamos até 2010, visto como o mais crítico no período. Assim como agora, há dez anos enfrentávamos os efeitos de uma alteração do clima ocasionado pelo aquecimento do oceano Atlântico. Conhecido pela sigla em inglês AMO, seu efeito é reduzir a quantidade de chuvas na região sul da Amazônia. 

Entre 1 de janeiro a 10 de outubro de 2010, o estado teve 8.338 focos de queimadas. Agora, em mesmo intervalo de tempo, são 8.673. O que mudou de lá para cá? Quem ocupa a cadeira de governador. Naquele 2010 o Acre era governado por Arnóbio Marques de Oliveira Júnior, o Binho Marques (PT). Militante petista dos tempos de Chico Mendes e Marina Silva nos seringais, Binho deu continuidade à política de florestania implementada pelo antecessor, Jorge Viana (PT). 

Entre um dos objetivos dessa política estava a proteção da floresta contra o avanço da ação humana. Uma década depois, o Acre é governado por Gladson de Lima Cameli, cujo endereço partidário atual é desconhecido. Em 2018 foi eleito pelo Progressistas prometendo fazer do agronegócio a locomotiva da economia acreana, sepultando a florestania dos tempos petistas. 

Sua principal promessa para o setor era flexibilizar as regras ambientais do estado e tirar a fiscalização realizada pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac) do pescoço de quem queria produzir no campo. Em março de 2019, já como governador, Cameli declarou - em um ato público - que ninguém mais precisava pagar as multas do Imac “porque agora quem está mandando sou eu”. 

O resultado está aí: o Acre passou a quebrar recordes atrás de recordes quanto ao desmatamento e as queimadas. Em 2019 a área de floresta que veio a chão foi a maior da década. Em 2020, o rastro do fogo em solo acreano também já é o pior. Os efeitos das modificações no comportamento do clima ficaram agravadas pela mudança do ambiente político que estimula e deixa na impunidade quem agride a natureza. 

O governo nega que estimule tais práticas. Mostra que atua no combate aos crimes contra o meio ambiente. Apresenta até um centro integrado de gerenciamento, o Cigma. Ao mesmo tempo recebe em seu gabinete parte do setor ruralista insatisfeito com a atuação do Imac, cobrando a flexibilização da lei ambiental prometida na eleição de 2018. Cameli responde que trabalha para reduzir a burocracia, e o fogo vai ardendo pela zona rural.     

Todo este componente também é piorado com o cenário político em Brasília, cujo presidente e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, trabalham para a boiada passar sem o mínimo pudor. O desmonte do Ibama e ICMBio tem impacto devastador para a proteção da Amazônia, incluindo até as unidades de conservação que, em tese, deveriam estar livres desta degradação. 

A Reserva Extrativista Chico Mendes, no sudeste acreano, é a que mais queima hoje na região. Já são mais de mil focos dentro da unidade, fragilizada por falta de políticas do governo estadual e federal para o fomento à economia de base florestal. 

Enquanto a borracha e a castanha se desvalorizam, o boi fica a cada dia mais competitivo. O resultado é a transformação   dos seringais em pasto.  E ainda tem o efeito do projeto de lei (PL 6024) da deputada Mara Rocha (PSDB) e do senador Márcio Bittar (MDB) que desafeta áreas da Resex para beneficiar seus maiores desmatadores. 

O clima está mudando. Não me lembro de ter passado por um outubro com temperaturas tão quentes como nestes dias. Nesta época deveríamos estar convivendo com as primeiras chuvas de nosso inverno. Contudo, elas estão raras. As chuvas estão caindo em quantidade cada vez menor e num intervalo de tempo mais curto. Com isso, a floresta perde umidade; os rios ficam em níveis críticos. 

Na contramão, o fogo não para de se expandir. Fogo que, diga-se, é resultado não da ação da natureza, mas do homem. O homem que agora se sente respaldado pelo governador e pelo presidente para transformar a floresta em pasto, crente de que não será punido.  A “punição” passou a ser um tal Programa de Regularização Ambiental (PRA) que, na prática, não é cumprido pela grande maioria dos produtores. Ninguém quer saber de recompor a floresta desmatada, reduzir o pasto.

Com estes dois fatores atuando ao mesmo tempo - um clima diferente e a política de “passar a boiada” - aumenta-se o ceticismo sobre o futuro da maior floresta tropical do mundo, essencial para se manter a sobrevivência humana. Para justificar sua política do agronegócio, o governador do Acre disse que é fácil falar em preservação da Amazônia “quando se tem que colocar comida na boca de 26 milhões de amazônidas”. 

A se manter este ritmo de devastação da floresta, caro governador, não saberemos quantos amazônidas vão entrar em sua contabilidade para garantir comida nos próximos anos. Não dá para sobreviver sem as chuvas que alimentam nossos rios e irrigam o grão plantado pelo homem do campo. Sem floresta não há vida. Essa é a equação.     

        


quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Fumaça internacional

Na tríplice fronteira, Acre tem até oito vezes mais registros de queimadas em 2020 


Área queimada em fazenda às margens da BR-317, que interliga o Acre à Bolívia e ao Peru (Foto? Jardy Lopes/2019)


@fabiospontes 

Além de passar a não dar o melhor dos exemplos em termos de preservação da Amazônia dentro do Brasil desde o ano passado, o Acre também é boa referência na tríplice fronteira com a Bolívia e o Peru. Dos três estados que formam a região conhecida pela sigla MAP - Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia), o estado brasileiro foi o campeão em registro de focos de queimadas em 2020, tendo até oito vezes mais casos do que os vizinhos. 

De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora o fogo no MAP, o Acre teve, entre 1 de janeiro a 6 de outubro, 8.062 focos de queimadas. Logo em seguida está Madre de Dios, com 1.524 focos, e Pando com 1.346 focos. Sozinho, o Acre representou 73% do total das queimadas captadas pelos satélites do Inpe na tríplice fronteira. 

Este protagonismo do estado no uso do fogo para limpeza de roçados ou áreas com recente desmatamento desmistifica o argumento usado ao longo dos últimos anos de que a fumaça inalada pelos acreanos é oriunda das queimadas nos países e estados vizinhos. Em agosto, o Acre superou até Rondônia e Mato Grosso na quantidade de focos. De possíveis importadores de fumaça tóxica, o Acre passou a exportar ar poluído para a vizinhança. 

Em setembro do ano passado, produzi reportagem especial mostrando os impactos das queimadas na Amazônia formada por Brasil, Peru e Bolívia. Naqueles tempos sem pandemia era possível ir de um lado ao outro da fronteira; agora elas estão fechadas e sem previsão de reabertura. Já em 2019 o Acre também era o grande patinho feio na preservação da floresta entre os três países. 


Leia a reportagem especial: 


O Fogo sem Fronteiras 


domingo, 4 de outubro de 2020

Uma história de resistência

Pandemia e os povos indígenas sete meses depois


Ti Kampa do Rio Amonea, do povo Ashaninka; isolamento e modo tradicional de vida evitam chegada do coronavírus (Foto: Agência Acre) 



@fabiospontes


O Brasil chega ao sétimo mês de efeitos da pandemia do novo coronavírus. Até este começo de outubro são mais de 145 mil vidas perdidas para a Covid-19. O número poderia ser bem menor se o país tivesse contato com uma política e estratégia nacionais de enfrentamento ao problema. Porém, desde o começo, lá em março, o governo de Jair Bolsonaro atuou para boicotar todas as medidas sanitárias adotadas por governos estaduais e prefeituras para conter o contágio. 

Preferiu tratar a doença como uma “gripezinha” cujas mortes não iam passar de 800. Ultrapassamos mais de 100 mil em seis meses, com o genocídio podendo ter sido bem maior caso as lideranças locais tivessem seguido o mesmo caminho do presidente da República.  

A pandemia não fez distinção de raça, credo, condições financeiras ou localização geográfica. O coronavírus chegou até as comunidades mais isoladas e remotas da Amazônia, como as aldeias indígenas. Os índios brasileiros ficaram ainda mais vulneráveis diante de uma política claramente anti-índigena adotada pelo governo desde janeiro do ano passado. 

Não sabemos ao certo quantos deles perderam a vida ou foram contaminados pela nova doença. O governo deixa de fora da contabilidade oficial os casos de indígenas que moram nas cidades, considerando em suas estatísticas apenas os aldeados. Mesmo assim, também se trata de um dado impreciso diante da incapacidade do estado levar atendimento de saúde de qualidade às comunidades em locais de difícil acesso, esquecidas do restante do país.    

De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em todo o país estima-se em 837 índios mortos pela Covid-19, com 34.816 contaminados. São 158 diferentes povos afetados. Destes números, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), 670 mortes ocorreram aqui na região. O número se explica por a Amazônia ter a maior população indígena do país. 

No Acre, ainda conforme a entidade, são 27 mortes e 2.161 casos confirmados. Há registros de casos entre 14 das 16 etnias do estado. Desde o começo acompanhei o impacto do coronavírus entre os 24 mil indígenas acreanos que, além de sofrerem com a ineficiência do governo federal, ainda sentem o desprezo do governo local, deixando para agir apenas em agosto, e mesmo assim de forma atabalhoada. 

Para relembrar toda essa situação de março para cá, fiz uma seleção das principais reportagens publicadas aqui no blog sobre o tema. Foi e tem sido uma cobertura desafiadora. Toda apuração ocorre a distância, via telefone, conversando com as lideranças via WhatsApp desde suas aldeias nas localidades mais distantes do estado. Foi assim com a liderança Bira Yawanawa. Das cabeceiras do rio Gregório, em Tarauacá, ele contou como os Yawanawa adotaram um lockdown da floresta, construindo uma cerca no rio para controlar a entrada e a saída das embarcações.  

Não fossem essas medidas simples de autoisolamento adotadas pelos líderes, o impacto da Covid-19 entre as comunidades indígenas teria sido bem maior em toda a Amazônia. Outra medida de resultado foi recorrer à medicina tradicional, produzindo chás a partir das infinitas folhas e raízes da floresta. Muitos daqueles que apresentaram sintomas da doença foram tratados apenas com os chás e as rezas dos pajés. 

A preservação das tradições e conhecimentos seculares destes povos da Amazônia nunca se mostrou tão importante como agora. Infelizmente, parte desta memória foi perdida com a morte dos mais velhos e velhas. Agora, aos jovens cabe a missão de manter vivo tudo aquilo que aprenderam. Somente assim vão ter a sabedoria necessária para estes tempos de resistência a ataques promovidos por aquele que deveria protegê-los.   


Confira    


Coronavírus leva indígenas do Acre a "fechar aldeias" e interromper turismo


Sem assistência, Jaminawa que vivem nas cidades voltam para aldeias sem fazer exames





























quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Áreas (nem tão) protegidas

Com desmonte do ICMBio, áreas protegidas da Amazônia têm aumento de queimadas 


Flona Jamanxim e Resex Chico Mendes lideram o ranking do fogo no bioma; as duas unidades são alvo de projeto de desafetação e pressões políticas locais  


Floresta derrubada e queimada em seringal da Resex Chico Mendes, em Xapuri, campeã do fogo em 2019 e vice em 2020 (Foto: Fabio Pontes/2019)


@fabiospontes

Com a continuidade do processo de desmonte das estruturas dos órgãos ambientais conduzido pelo governo Jair Bolsonaro, os registros de focos de queimada dentro de unidades de conservação na Amazônia aumentaram em 2020. Entre janeiro e setembro deste ano foram detectados 3.953 focos nas áreas protegidas federais dentro do bioma.  A quantidade é 20% superior à registrada em igual período de 2019, com 3.290 focos. A Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, no Acre, e a Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, no Pará, se revezam nas duas primeiras posições entre as unidades mais afetadas pelo fogo. Em 2020 a UC paraense ficou na primeira posição, com 882 focos. 

Após ser a campeã das queimadas em 2019, a Resex Chico Mendes ficou em segundo, com 667 focos; ano passado foram 784 pontos. Os dados são do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A prática do queima nestas áreas tem como objetivo principal a ampliação de áreas para a criação de boi. Há uma grande pressão das fazendas de gado no entorno. 

Vale ressaltar que, além de sofrer com o desmonte dos órgãos que deveriam protegê-las, as duas unidades são pressionadas por interesses políticos locais para reduzir suas áreas, a chamada desafetação, para beneficiar o setor da agropecuária. 

Em novembro do ano passado a deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC) apresentou  projeto de lei (PL 6024) que retira de dentro da Resex Chico Mendes as áreas de moradores que transformaram os antigos seringais em médias e grandes fazendas de gado. Dois deles já foram condenados pela Justiça para deixar a reserva, mas recorrem da decisão. 

Sem previsão de a matéria ser votada pela Câmara, a deputada tem pressionado a presidência do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para que essas áreas deixem de integrar a Resex. A tucana diz agir em nome de “pequenos produtores rurais” que já desenvolviam a agropecuária antes da UC ser criada, em março de 1990. 

Este é o mesmo argumento usado por quem quer diminuir o tamanho da Flona do Jamanxim, assim como também houve o trabalho de pressão política sobre o ICMBio. Em sentença de 2018, a Justiça Federal proibiu o órgão de definir novos limites para a Jamanxim, o que só pode ser feito com aprovação do Congresso Nacional. Desde 2017 o PL 8107, que modifica os limites da Flona Jamanxim, tramita pela Câmara. 

Além da Resex Chico Mendes, o PL 6024 ainda atinge o Parque Nacional da Serra do Divisor, localizado em uma das áreas mais bem preservadas da Amazônia. O objetivo é fazer com que a unidade deixe de ser um parque e se transforme numa Área de Proteção Ambiental (APA), cujas regras de proteção são bem mais flexíveis. 

O efeito da proposta já é sentido com o aumento dos registros de queimada. Até setembro foram 104 focos dentro do parque; em igual intervalo de tempo do ano passado o Inpe registrou 60 focos. O Parque da Serra do Divisor está, até aqui, entre as 10 unidades de conservação da Amazônia mais impactadas pelo fogo. 

Há ao menos dois meses a gestão da unidade é feita de forma cumulativa; além do parque, o servidor do ICMBio ainda precisa dar conta de duas reservas extrativistas: a do Alto Juruá e a Riozinho da Liberdade. Somente a Serra do Divisor tem  uma área de 837 mil hectares. A Resex do Alto Juruá é a sétima entre as 10 mais queimadas em 2020 na Amazônia, com 126 focos. 

O ICMBio é o órgão responsável pela gestão das unidades de conservação do país e, assim como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), passa por um acelerado processo de desestruturação pelo governo Bolsonaro. 

No Acre, o ICMBio conta apenas com oito funcionários concursados; destes, seis atuam diretamente nas 11 unidades de conservação federais do estado. Este acúmulo de áreas protegidas nas mãos de um único chefe faz parte da nova estrutura desenhada pelo Ministério do Meio Ambiente, que acabou por fragilizar ainda mais a atuação.  Cada estado antes contava com uma coordenação regional. Essa estrutura foi extinta, e toda a gestão das UCs no Norte é feita a partir do escritório em Santarém, no Pará. 

Na terra de Chico Mendes o instituto ainda tem seis cargos comissionados (DAS), alguns deles nas chefias das UCs, mais estagiários e os brigadistas contratados para atuar apenas nos meses das queimadas. Como atestam os números do Inpe, o trabalho deles não foi suficiente para apagar o fogo alimentado pelo desmonte da política ambiental brasileira promovido pelo governo Bolsonaro. 


Leia mais: PL da bancada da motosserra acelera degradação da Resex Chico Mendes