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sexta-feira, 23 de junho de 2023

A maldade da grilagem

Governador de Rondônia considera “maldade” ter o maior cinturão verde do país entre o centro-oeste e a fronteira boliviana


TI Karipuna, que forma cinturão-verde no oeste de RO bastante pressionado pela indústria da grilagem (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Montezuma Cruz

Dos varadouros de Porto Velho

Um tanto na contramão dos Objetivos do Milênio, o governador de Rondônia, coronel Marcos Rocha (União Brasil), parece  não ter encontrado o esquadro, o compasso e o prumo para recompor esta parte da Amazônia Ocidental brasileira da série de agressões cometidas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro - e da qual ele próprio, como bolsonarista que é, ajudou a fomentar ao longo dos últimos quatro anos. “Fizeram uma maldade com Guajará-Mirim: 93% a 94% da área são de preservação; eu tinha que conseguir fazer com que as pessoas tivessem emprego e renda, que movimentasse a economia lá”, discursa num vídeo Rocha, ao lado da deputada estadual Taíssa Sousa (PSC). 

Guajará-Mirim, na fronteira brasileira com a Bolívia, situa-se a 362 quilômetros de Porto Velho. É homônima de Guayaramerín (Beni), cidade boliviana do outro lado do rio Mamoré. Disse o governador que recentemente retirou o ICMS da gasolina e do diesel dentro de Guajará-Mirim, ou seja, os moradores e as empresas fixadas nesse município fronteiriço terão o benefício.

Enquanto ele fala no vídeo gravado em seu gabinete, a deputada esboça um sorriso tão amarelo quanto o casaco que usava quando se avistou com o chefe do Executivo. A base eleitoral-política da parlamentar é o município da fronteira - ponto final da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, cujos trilhos e pontes ainda são vistos ao longo das BR-364 e 425. 

Rocha admite que a obtenção de crédito de carbono poderia contribuir para a consolidação da renda de Guajará-Mirim, apesar dos mais de 50 milhões de metros cúbicos de madeira de lei roubados das suas terras indígenas.

“Como Guajará-Mirim tem 94% de sua área preservada obrigatoriamente, de repente pode ganhar recursos justamente por isso” – projetou sem nenhuma estimativa oficial. Informou que esteve em Brasília, onde tratou do nó górdio da RO-420, estrada-parque Ariquemes-Nova Mamoré: “Queremos asfaltá-la.” “Já tive um parecer [de quem?] praticamente favorável; será feito um estudo, mas percebi que vai dar certo. Federalizar a 420 e a 421 passa para mim. Isso vai facilitar muito até para o governo federal.”

A estrada-parque possui 30 metros de largura e sua construção interrompeu vários igarapés ou intermitentes. Parte de seu traçado passa por dentro do Parque Estadual de Guajará-Mirim, uma das unidades de conservação mais ameaçadas pela grilagem dentro de Rondônia.  

“Passo a passo a gente vai conseguindo abrir o caminho pro Pacífico através dessas ações”, disse, talvez ignorando que o Estado do Acre já construiu parte da Rodovia Transoceânica há quase duas décadas.
Em 1976, quando o governador era criança no Rio de Janeiro, a 421 era conhecida como “rodovia da cassiterita” e não raro utilizada por narcotraficantes para negócios de fachada nessa região de Rondônia.

Não é novidade alguma que a grilagem de terras e a exploração ilegal de madeiras corre solta no município de Buritis - outro município citado por ele no vídeo, e que seria beneficiado pelo seu "pacote de bondades" no asfaltamento e abertura de estradas numa das regiões de Rondônia mais impactadas pela invasão de UCs e terras indígenas.  Como também já é de conhecimento público, a abertura de estradas e ramais (chamados de linhas em RO) serve como principal indutor para o avanço do desmatamento na Amazônia.

Buritis, ao lado do distrito de União Bandeirantes, acabam servindo como uma base logística para essa indústria da grilagem na região centro-oeste de Rondônia. A área, não por acaso, está localizada na tríplice divisa Amacro: Amazonas, Acre e Rondônia - definida como a nova fronteira do desmatamento na Amazônia.  Entre as áreas mais invadidas estão a Resex Jaci-Paraná e a Terra Indígena Karipuna, que passou a ser alvo de operação da Polícia Federal para expulsar madeireiros e grileiros.
 
No Mapa da Violência, o município de Buritis aparece como o 15° mais violento do Brasil. Relatório divulgado entre 2010 e 2012 aponta 79 mortes causadas por arma de fogo, o que representa uma taxa média de 78,8% para cada 100 mil habitantes. Os resultados daquele período até agora ainda não foram divulgados.

Em janeiro deste ano, o perímetro urbano da RO-420, no trecho do distrito Nova Dimensão a Nova Mamoré começou a receber 60 quilômetros de patrolamento, limpeza lateral e encascalhamento. A obra é do Departamento de Estradas de Rodagem de Rondônia (DER), conhecido por “balcão da campanha política” pela reeleição de Rocha.

 

Um parque grilado e desmatado 

O Parque Estadual de Guajará-Mirim está invadido há décadas, reconheceu o ex-governador Confúcio Moura (MDB), hoje presidente da Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado Federal. Ele próprio um dia desabafou: “Não aguento mais a invasão do território dos Uru-eu-wau-wau, Rondônia está impotente diante dessa situação”. Imagine-se com o Parque. Foi durante a festão Confúcio que Rondônia mais criou unidades de conservação estaduais - agora alvos da bancada ruralista-bolsonarista da Assembleia Legislativa (ALE-RO). 

Logo, o asfaltamento que pode ser visto com deslumbre pelo governo e por alguma parcela da população de Guajará-Mirim, tem tudo para ser mais um nó górdio nos próximos meses. A prometida desintrusão do Parque – que deveria ser feita pela Secretaria Estadual do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) – até hoje está no papel, seguindo-se o faroeste entre ocupantes de áreas sempre resistindo ou atacando a polícia.

Julio Dalponte, da Universidade de Brasília, doutor em biologia animal, lembra em depoimento ao jornal eletrônico (o)eco que em fevereiro de 2014 houve a cheia histórica do Rio Madeira e em consequência dessa emergência um percurso de 11,5 Km dentro do Parque – antes uma trilha fechada e de tráfego limitado – foi transformado em estrada. “Chegou a haver um embate entre a Justiça Federal e o Governo de Rondônia, que paralisou a abertura dessa via”, ele recorda.

Júlio foi contratado pela Sedam para elaborar um projeto técnico que atendesse à Lei Complementar nº 762, de 27 de fevereiro de 2014 e que pudesse ser executado o mais rapidamente possível. Seu trabalho resultou no rastreamento contínuo de pegadas, “o mais eficaz no caso”, no que constatou 28 espécies de mamíferos de médio e grande porte – com massa corporal acima de 1Kg – que efetivamente cruzaram a estrada, e 368 eventos de travessia bem-sucedida por indivíduos dessa espécie durante o estudo. Listou ainda 40 espécies de mamíferos de médio e grande porte, dos quais, nove em espécie de extinção: anta, ariranha, cachorro-vinagre, macaco-aranha de cara preta, onça-parda, onça-pintada, queixada, tamanduá-bandeira, tatu-canastra.

E alerta: “Com base nessa Lei, o governo do estado conseguiu ir em frente com a obra; essa lei permite a construção de estradas-parque em Unidades de Conservação, dede que o projeto desse tipo de via contenha um estudo prévio de impacto socioambiental.” 

“Não foi o que aconteceu, assinala Dalponte: a abertura da estrada foi feita da noite para o dia, desamparada de qualquer estudo ambiental prévio. Ela atravessa a porção norte do parque, para viabilizar a conexão entre os municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré, garantindo o acesso pelas regiões de Ariquemes e Buritis.” As zoopassagens propostas dariam prioridade aos corredores de fauna, evitando-se ou reduzindo-se, desta maneira, atropelamentos.

Segundo o biólogo Paulo Bonavigo, primeiro-secretário da Ação Ecológica Guaporé (Ecoporé), a castanha, lembrada pelo governador, tem sua produção concentrada em terras indígenas e nas unidades de conservação de uso sustentável (como a Reserva Extrativista do Rio Cautário) e beneficia o município, proporcionando renda.  Essa “maldade” feita contra Guajará-Mirim não foi lembrada pelo governador Marcos Rocha. A venda da castanha está entre as principais fontes de renda para as comunidades indígenas e ribeirinhas do município - um dinheiro obtido sem a necessidade de colocar boi ou soja no lugar da floresta. 

Nem Associação Comercial, nem Receita Federal revelaram até o momento o volume da safra anual e que mecanismos podem ser adotados para que o produto atenda diretamente ao mercado dos Estados Unidos. 

“A isenção de impostos sobre produtos florestais em Guajará-Mirim foi, na verdade, resultante da luta do terceiro setor e de castanheiros, contra atravessadores de empresas”, diz Paulo Bonavigo.
Verdade, ela não provém de nenhuma política pública da Secretaria Estadual da Agricultura. Esta, por sua vez, nem divulga o preço do quilo do látex extraído em Unidades de Conservação e nem esclarece a quantas anda o investimento da Permian Global.

Essa empresa foi autorizada pelo governo estadual a pagar R$ 1 mil por mês a cada família de sete comunidades da região do Rio Cautário – entre Costa Marques e Guajará-Mirim – sob a exigência de conservar a floresta nativa visando ao crédito de carbono que aquela empresa pretende negociar no mercado internacional. 

Uma CPI da Assembleia Legislativa, pelo visto, deverá revelar esse aspecto muito cinzento desde 2021.



SAIBA MAIS


● Situado na parte centro-oeste do estado de Rondônia, abrangendo afluentes da bacia do Rio Jaci-Paraná, o Parque Estadual de Guajará-Mirim foi criado com uma área original de 258.813 hectares, mas perdeu 53.601 ha com a existência de títulos definitivos de propriedade da terra.


● Abrange afluentes da bacia hidrográfica do Rio Jaci-Paraná, nos municípios de Nova Mamoré e Guajará-Mirim. Faz parte da porção leste do Corredor Ecológico Guaporé/Itenez-Mamoré e é adjacente aos limites da T.I. Uru-eu-wau-wau e do Parque Nacional dos Pacaás Novos.


● O Parque serve de tampão, barrando grande parte da pressão de atividades humanas que vêm do eixo da BR-364 e está inserido em uma região de grande diversidade biológica, abrangendo quatro estações ecológicas sul-americanas: 1) floresta úmida tropical; 2) florestas úmidas do sudoeste da Amazônia; 3) florestas úmidas de Rondônia e Mato Grosso, além de pântanos e florestas de galeria do Departamento de Beni, na Amazônia Boliviana. (Fonte: portal ((o)) eco)

 

Entenda mais sobre o ambiente político de Rondônia, um dos principais redutos do bolsonarismo dentro da região Norte, junto com Acre e Roraima. 

 

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