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domingo, 27 de setembro de 2020

A rodovia da destruição (mais uma)

Cruzeiro do Sul/Pucallpa: uma rodovia de resultados econômicos duvidosos, mas de  danos sociais e ambientais concretos 



Parque Nacional da Serra do Divisor: UC será impactada por rodovia e é alvo de PL que o transforma em APA (Foto: Fabio Pontes/2019)


@fabiospontes 

A semana que passou foi de muita ambiguidade e confusão no governo acreano de Gladson Cameli (partido indefinido, outra confusão) no que diz respeito à questão ambiental. Aliás, ambíguo e confuso são os dois atributos da atual gestão em todos os setores. Enquanto na quarta Cameli recebia a visita do vice-presidente, Hamilton Mourão, para mostrar as ações desenvolvidas pelo Acre no combate ao desmatamento que não para de crescer, no fim de semana a agenda com ministros de Jair Bolsonaro (sem partido) foi para tratar de projeto que pode ser visto como um dos mais desastrosos para a proteção da Amazônia - não só a brasileira. 

Ao lado do ministro caçador de unicórnios Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e de Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Cameli cumpriu agenda em sua cidade natal, Cruzeiro do Sul, para tratar do projeto de interligação rodoviária da capital do Juruá - como é conhecida - com a cidade peruana de Pucallpa, departamento de Ucayali.  

Caso de fato saia do papel, a rodovia terá seu traçado passando dentro daquela que pode ser considerada uma das últimas áreas mais bem preservadas da Amazônia no continente. E isso não é uma hipérbole. Na Bacia do Rio Juruá também está concentrada uma das maiores concentrações em biodiversidade do Planeta Terra, como atestam estudos científicos. Por ali há espécies ainda desconhecidas pela Humanidade. 

Aquela densa selva amazônica dos dois lados da fronteira é a casa para dezenas de povos indígenas contactados e daqueles que optaram por viver em isolamento voluntários. Ao se olhar de cima por imagens de satélite toda a região de rios, serras e floresta que separa Cruzeiro do Sul de Pucallpa, tem-se uma dimensão do impacto que uma rodovia pode ocasionar. Como sabemos, as estradas são o principal vetor de expansão da destruição da Amazônia - e não importa em qual lado da fronteira elas estejam. 

Até agora não se tem o projeto concreto do traçado da rodovia, prometido para ser entregue até o fim do ano pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit). A rodovia tem como principal entusiasta o líder da bancada da motosserra, o senador bolsonarista e ex-marxista Márcio Bittar (MDB). Junto com a deputada federal Mara Rocha (PSDB), Bittar é autor do Projeto de Lei 6024 que transforma o Parque Nacional da Serra do Divisor em Área de Proteção Ambiental (APA), cujas regras de preservação são bem mais brandas do que um parque. 

A unidade de conservação está justamente no caminho da rodovia. O PL foi apresentado com a justificativa de eliminar a barreira legal para a construção da rodovia. Todavia, o decreto de criação do parque (de 16 de junho de 1989) já previa a possibilidade da passagem de uma estrada por aquelas bandas. 

O verdadeiro interesse em rebaixar a Serra do Divisor para APA é a de explorar as suas riquezas da superfície e subterrâneas, incluindo o gás xisto. Bittar também é entusiasta da atividade minerária e extrativa das pedras que compõem aquele cenário de serras que separam o Brasil do Peru.  

Ao que tudo indica, o entusiasmo pela estrada Cruzeiro do Sul/Pucallpa se dá de forma mais intensa muito mais (e talvez apenas) do lado de cá da fronteira. Pucallpa não precisa nem um pouco desta interligação com o Acre, por já possuir rodovias que a conectam com todo o Peru. E, sejamos sinceros, não temos nada a oferecer para o mercado de Ucayali.   

Até o momento não se sabe qual seria o empenho do governo peruano em também tocar o projeto. A agenda do chanceler Ernesto Araújo aqui foi o sinal da disposição de Brasília em iniciar as negociações diplomáticas com Lima. A dúvida é saber até onde os vizinhos estariam dispostos a tirar alguns milhões de soles de seu orçamento para bancar o empreendimento. 

A rodovia da integração entre Acre e Peru construída na primeira década dos anos 2000 teve praticamente toda a sua construção arcada pelo governo brasileiro. Estaria o posto Ipiranga com disposição para liberar alguns milhões e até bilhões de reais para um empreendimento de resultados econômicos questionáveis? 

Lá de cima percebe-se que os peruanos estão totalmente de costas para a fronteira amazônica com o Brasil, muito mais voltados para sua relação histórica com o oceano Pacífico. Para Cruzeiro do Sul a estrada também não demonstra trazer grandes benefícios, pois o município está conectado ao restante do Brasil pela BR-364. 

A interligação com o Pacífico é o principal argumento dos atuais líderes acreanos para defender a ligação rodoviária de Cruzeiro do Sul com Pucallpa, apresentando como a grande redenção econômica do estado. Apresentam tal argumento como se fosse a descoberta da pólvora, a invenção da roda. Contudo, o Acre já tem uma conexão com os portos peruanos por meio da Rodovia Interoceânica, ou a Carretera del Pacífico, que até hoje também não nos trouxe a redenção econômica tão prometida por seus idealizadores (os petistas). 

Portanto, não existe nenhum argumento lógico do ponto de vista ambiental, econômico e logístico para uma rodovia cujo único legado seria a devastação de um dos últimos santuários da Amazônia. Já não bastasse as consequências de uma política desastrosa para a proteção da maior riqueza acreana, o governo Gladson Cameli atua para bancar uma estrada que ligaria o nada a lugar-nenhum. 

“Vai ser uma esculhambação total. Não vai ter controle de nada. A expansão das margens de desmatamento vai ocorrer de maneira intensa. Se hoje o órgão ambiental [ICMBio] não tem controle, imagine com uma estrada. Vai ser pura especulação fundiária. Isso vai servir para facilitar a invasão de terras públicas”, disse Miguel Scarcello, secretário da SOS Amazônia em entrevista ao blog em julho. 

O governo Gladson Cameli proporcionaria muito mais desenvolvimento e garantiria a “comida na boca dos amazônidas” - como ele próprio afirmou essa semana - se investisse em políticas públicas de valorização dos produtos florestais tão abundantes no Vale do Juruá e tão subestimados. Garantir mercado e preço a estes produtos é assegurar renda e qualidade de vida para milhares de acreanos que vivem na floresta sem ser preciso destruí-la para colocar boi ou soja. 

Ao invés de querer privilegiar o grande agronegócio que beneficia apenas um punhado de ruralistas, Cameli deveria centrar esforços para fortalecer a agricultura familiar, que é quem realmente coloca comida na boca dos amazônidas. Indo no sentido contrário, prefere deixar como legado projetos que contribuem para acelerar a devastação da mais importante floresta tropical do Planeta. 



Imagem de satélite mostra a separação entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, formada por uma selva intocada - até agora (Fonte: Google Earth)



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