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quinta-feira, 24 de junho de 2021

Os caminhos de Cameli - até o Peru

 Peru não quer saber de nova rodovia para o Brasil; o Acre, sim 


A decisão do governo peruano em não apostar no projeto de construção de uma rodovia entre as cidades de Pucallpa, em seu departamento de Ucayali, e Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do Acre, caiu como uma pá de cal sobre as intenções dos bolsonaristas acreanos interessados em “passar a boiada” numa das regiões mais intactas da Amazônia. Após os lamentos iniciais, todavia, vieram as reações e as tentativas desesperadas de garantir alguma sobrevida.     

Se antes o governador Gladson Cameli (PP) tinha uma postura mais discreta em relação à estrada, agora o aliado do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) decidiu vestir a camisa da causa. É o que ficou claro em sua entrevista ao site ac24horas ao comentar a decisão de Lima de dizer não a um dos empreendimentos que mais colocam em risco a preservação da Floresta Amazônica - já vítima de uma política antiambiental patrocinada por Bolsonaro e que a leva a taxas recordes de devastação. 

Mostrando contrariedade com a decisão do governo peruano, Gladson Cameli disse estar disposto a ir até Lima para convencer os vizinhos sobre a importância da interligação rodoviária entre o Acre e Ucayali.  “Não pode parar por uma questão do Peru**, o que nós temos que fazer é tentar identificar onde está o gargalo, até porque é estranha essa posição deles [governo peruano], muito estranho esse posicionamento. O quê uma estrada vai trazer de prejuízo para os dois países?”, comentou Cameli. 

A resposta à pergunta do governador foi dada na última terça, 22, pelo ministro do Meio Ambiente do Peru, Gabriel Quijandría, em entrevista à imprensa internacional no país: contribuirá para aumentar o desmatamento e fortalecer o narcotráfico. Afinal de contas, é nesta porção de selva fechada do Peru que se concentram os maiores laboratórios para a produção de cocaína. Uma rodovia ali seria a redenção para o crime organizado - de ambos os lados da fronteira. 

Gladson Cameli sabe muito bem desta realidade, pois desde 2016 o Acre está no centro de uma guerra sangrenta entre as principais facções criminosas do Brasil pelo controle da rota do tráfico da droga produzida no Peru e na Bolívia. O Vale do Juruá, região onde o governador nasceu, é a mais impactada pela guerra do narcotráfico, justamente, por estar na fronteira com a zona peruana da produção de cocaína. 


O ministro peruano do Meio Ambiente também desmistificou a tese defendida pelos bolsonaristas idealizadores da estrada que ela proporcionará desenvolvimento econômico para os dois lados da fronteira. “Uma obra de infraestrutura não é uma estratégia de desenvolvimento”, resumiu Quijandria. “Se não tenho claro sobre que tipo de desenvolvimento quero alcançar em um território e não tenho claro sobre as características desse território, provavelmente estou almejando uma infraestrutura de que não preciso.". É preciso explicar mais? 
    

Daqui um mês, o Peru terá um novo presidente. Ao que tudo indica será Pedro Castilho, o mais votado numa eleição presidencial acirradíssima, disputada voto a voto. Atualmente a junta eleitoral avalia todos os recursos impetrados por ambos os candidatos; até a conclusão desta análise não será possível proclamar o vencedor. Mas com 100% dos votos apurados, Pedro Castillo obteve 50,125% dos votos; sua adversária, Keika Fujimori, ficou com 49,875%. 

Vindo da região central do Peru e de origem indígena, Castillo é definido como um político de esquerda; outros o classificam como de extrema-esquerda por suas posições radicais. No campo das ideias não é o mais dos progressistas: se posiciona contra a liberação do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. 

Na área ambiental - tema pouco debatido pelo eleitorado peruano - não se sabe ao certo a posição do possível novo presidente. Ao assumir a Casa de Pizarro (a sede do governo peruano) no dia 28 de julho, Castillo tende a fazer uma reviravolta na política e na economia do país, como prometeu durante a campanha eleitoral. 

O clima político no país vizinho não é o dos melhores. Os peruanos ainda estão muito divididos. O Peru também é um dos países atualmente mais afetados pela pandemia da Covid-19. Portanto, não será agora - nem talvez esse ano - que o governador Gladson Cameli terá a oportunidade de ser recebido pelo novo mandatário - muito mais preocupado em resolver os problemas internos. 

Portanto, até lá, a construção de uma nova rodovia entre Brasil e Peru ficará engavetada. Os dois países já contam como uma conexão via estrada, por meio da Rodovia Interoceânica, na parte sul do Peru, também na fronteira com o Acre. Essa interligação foi apontada na justificativa das autoridades de Lima para se opor ao projeto da rodovia Pucallpa-Cruzeiro do Sul. 

Aliás, essa é uma questão que nem está na pauta de prioridade dos peruanos. Conversando com uma colega jornalista peruana, ela explicou que a principal preocupação do país é com o impasse no resultado das eleições e com a pandemia da Covid-19. 

Até o Peru e o mundo voltarem ao normal - assim como o Brasil em meio à tragédia da Covid - as populações que moram numa das regiões mais preservadas da Amazônia (incluindo os povos indígenas isolados) estarão protegidas - bem como toda a sua riquíssima biodiversidade. As falas de Gladson Cameli de que respeitará todas as regras para garantir a proteção ambiental do entorno da rodovia têm o mesmo valor que uma cédula de três reais. 

É justamente no seu governo que o Acre enfrenta as maiores altas na taxa de desmatamento da Amazônia. A abertura de uma estrada na porção mais preservada do Acre - cujo propósito pregado é exercido por outra já existente - apenas acelera a devastação, representando um verdadeiro desastre ambiental e social.     


**Gladson Cameli disse que o projeto da rodovia não pode parar “por uma questão do Peru”. Nas relações internacionais existe o princípio máximo do respeito à soberania de cada Estado, da autodeterminação e da não intervenção. Portanto,o Peru é soberano nas suas decisões. Este tipo de situação se resolve com diplomacia, não fazendo beicinho. 


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