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domingo, 16 de agosto de 2020

A estratégia genocida

Se a pandemia matasse todos os índios, eles estariam comemorando, afirma líder Ashaninka sobre governo Bolsonaro 


Na avaliação de Francisco Piyãko, discursos e práticas do atual governo brasileiro passam a impressão de que a morte de indígenas pelo coronavírus seria a estratégia para a apropriação dos territórios tradicionais


"Nós somos muito fortes e estamos muito bem preparados para resistir." (Foto: Governo do Acre)



@fabiospontes 

A ineficiência do governo Jair Bolsonaro (sem partido) em conter o avanço do novo coronavírus sobre as comunidades indígenas do país é uma estratégia para causar o maior impacto possível nestas populações e, assim, pôr fim aos seus territórios tradicionais. Essa é a avaliação da liderança Francisco Piyãko, do povo Ashaninka, do Acre. 

“Qualquer doença que vier para matar os povos indígenas eles vão comemorar. Para eles, seria um ganho muito grande se os povos desaparecessem com esta pandemia”, afirma Piyãko. Até agora ele tem liderado um processo bem-sucedido de contenção do coronavírus entre o povo Ashaninka morador das aldeias da Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, no município acreano de Marechal Thaumaturgo. 

Entre as ações desenvolvidas por eles está a ajuda aos Ashaninka que moram no outro lado da fronteira, no Peru. Os Ashaninka são descendentes do Império Inca e habitam esta região da Amazônia dividida por fronteiras imaginárias pelo colonizador europeu. 

Segundo Francisco Piyãko, não fossem as medidas adotadas pelas próprias populações indígenas para enfrentar a pandemia - como o autoisolamento dentro das aldeias e o uso de tratamentos tradicionais a partir de plantas da floresta - o impacto da Covid-19 teria sido bem mais devastador. “Se não tivéssemos força para suportar esta doença, teria sido um genocídio mesmo.” 

Nesta entrevista ao blog, concedida via ligação por WhatsApp desde uma área Ashaninka conhecida como Centro Yorenka Ãtame, Piyãko ainda comentou sobre a importância dos povos indígenas na preservação da Amazônia em meio ao mais novo avanço da destruição da floresta, com aumento recorde do desmatamento e das queimadas que ameaçam se transformar em grandes incêndios florestais. 


Leia a conversa: 


Quais aprendizados o isolamento social nas aldeias a que os povos indígenas tiveram de se submeter para escapar da pandemia do novo coronavírus trouxeram?    

Piyãko: Eu acho que todos os povos indígenas tiveram oportunidade de perceber a importância que tem o seu território, os seus costumes e tradições. Deu para fazer uma reflexão muito grande, porque por muito tempo tivemos dificuldades de compreender estes valores. Até hoje vivemos uma relação meio que confusa nos negócios ou num meio de vida fora da aldeia. O isolamento nos fez voltar um pouco para entender o porquê de aquele território protegido, rico de alimento, com suas roças tradicionais e seus conhecimentos tradicionais, não sentiram tanto impacto. Tem o seu conhecimento. Sem dependência de fora, então não sentiram tanto o impacto. Agora, aqueles que tinham uma dependência muito forte com a cidade, que viveram muito pouco a sua origem, o seu mundo, eles sentiram mais. Dá para perceber esta diferença. É um momento para uma grande reflexão sobre estes valores, e que talvez sejam uma oportunidade para se reconectar com seus princípios e para a valorização de seu território, para valorizar sua autonomia do ponto de vista do abastecimento e uma série de coisas.


E para os Ashaninkas do Rio Amônea, como está sendo essa experiência?

Piyãko: Na história do povo Ashaninka teve muitos momentos de enfrentamento de situações como esta, e creio que na história de outros povos indígenas também. Teve o tempo do sarampo, da coqueluche, da catapora e outras doenças que apareceram aqui na região e que mataram bastante o nosso povo, quando ainda não tinha vacina. Para enfrentar isso fazia o isolamento e esperava por anos até este tempo passar para poder retomar o contato. Então, agora, o nosso povo tem duas moradas, uma na aldeia e outra de refúgio. Cada família tem uma roça e uma casinha lá num cantinho, e num momento como este vai para este lugar. O que aconteceu agora foi uma demonstração que chamou muita atenção para nossa própria organização. Não esperávamos esta crise. Tivemos que reorganizar nosso comportamento. As famílias, de maneira individual, iam até a sede do município [Marechal Thaumaturgo] para buscar os benefícios de aposentadoria ou Bolsa Família. Então quase todas as famílias iam para a cidade de dois em dois meses. Mas, quando isso [a pandemia] aconteceu, a gente fez uma reunião e foi tomada uma decisão coletiva de que ninguém vinha mais. Enquanto esta doença estiver acontecendo ficou decidido que a organização assumiria o abastecimento através da cooperativa. A cooperativa centralizou todo o abastecimento na aldeia. Qual seria o básico para isso: passar um, dois ou três anos sem ir para a sede. Toda a necessidade de deslocamento será feita através de comissão representando o coletivo. Então a gente fez uma lista de prioridades, como o sal, o isqueiro, coisas básicas. Dez itens atendiam a demanda porque nossa comunidade tem um estoque muito grande [de alimentos a partir dos roçados]. Depende pouquíssimo de fora, de alimento ou vestimentas. Muitas coisas não são necessárias. Historicamente já temos esta estratégia, e até agora isso funcionou. Tanto que a gente não tem nenhum caso lá na aldeia [da Covid-19]. 


Como foi o efeito da pandemia na relação de vocês com os Ashaninkas que vivem na fronteira peruana?

Piyãko: Quando a gente está numa situação de guerra, a gente busca encontrar pessoas que estão lutando por uma mesma causa. O povo lá do Peru também está nesta mesma luta, então nós procuramos fazer reuniões com eles e nos colocamos à disposição para ajudá-los, porque eles estão numa situação difícil. Todos os seus negócios são do lado do Brasil. Eles não têm estradas e nem como receber mercadorias por avião [pelo lado peruano]. Encontramos eles numa situação de não ter o sal, o isqueiro, o básico para sobreviver. Estavam numa aflição muito grande, e nós fizemos uma reunião grande, nos colocamos à disposição e fizemos uma doação de suprimentos para que pudessem atravessar estas dificuldades todas. Eles agradeceram muito e são parceiros nossos. Esta situação não foi a primeira em que os apoiamos. Mas foi muito marcante, pois eles esperavam que nós ficássemos isolados do lado do Brasil e não buscássemos mais contatos. Mas, fizemos o contrário, pois evitamos que a pandemia chegasse até eles e que dali chegasse até nossa comunidade pela fronteira.


Na semana passada, o STF aprovou a ação movida pela Apib obrigando o governo federal a auxiliar os povos indígenas que sofrem com uma estratégia ineficaz de conter o coronavírus nas aldeias. Que avaliação você faz deste momento político em meio a uma crise de saúde?

Piyãko: Falar do governo brasileiro com relação à pandemia é afirmar que ele não levou a sério em momento nenhum. É muito triste ter um governante que não respeitou [as medidas de evitar a proliferação do vírus] e sempre procurou fazer com que muitos o seguissem. O governo tem uma influência muito grande. O que ele fala, sendo ou não verdade, conduz muitas pessoas para um caminho. Deveria ter se colocado numa postura de representar o povo. A gente tem um Ministério da Saúde sem ministro. E um governo que atira para todo lado e ainda querendo responsabilizar os outros. A Apib está atuando para proteger, tenta chamar a responsabilidade do Estado. Porque eu tenho certeza que se não tivéssemos adotado nossas próprias medidas como a gente fez em todas as terras indígenas, seria muito pior, porque o Estado não chegou em nossas terras com medidas preventivas. Foi muito pouco, a gente só lamenta isso.


Então na sua avaliação se os próprios povos não tivessem adotado medidas de proteção a situação seria ainda pior?

Piyãko: Muito pior. A sobrevivência foi baseada na força da natureza. Foi nossa força que salvou muitas vidas, incluindo os que foram contaminados e escaparam. Baseados na força da natureza, nos conhecimentos, nas crenças e na medicina tradicional. Isso nos ajudou muito. Se não tivéssemos força para suportar esta doença teria sido um genocídio mesmo. Teria morrido muito mais gente. Nosso entendimento é o mesmo que a Apib está falando, de que eles queriam que as comunidades fossem contaminadas e se acabassem. Em muitos momentos está clara a posição do governo brasileiro, não de todo o governo, mas dentro da Presidência. Porque se não tivesse os órgãos de defesa dos direitos dos povos indígenas, o Judiciário, o Supremo, o Ministério Público, para defender, nós teríamos pistoleiros em massa entrando nas aldeias paras tomar este território.


Você fala sobre a questão das terras indígenas também? 

Piyãko: Eu sinto que não é simplesmente uma ignorância do governo. Há uma intenção clara. Se a pandemia matasse todos os índios eles estariam comemorando.


O governo Jair Bolsonaro teria interesse no extermínio das populações indígenas para se apropriar de suas terras?

Piyãko: De tudo o que ele falou eu entendo isso. O que ele falou e alguns ministros já falaram, o coronavírus veio de mão cheia para que pudessem botar a mão nas terras. Afirmo a partir da leitura dos discursos do Jair Bolsonaro e todos os ministros que compactuam com a leitura dele. Não tenho outra explicação. Qualquer doença que vier para matar os povos indígenas eles vão comemorar. Está mais que claro que querem isso. Mas, dentro do governo, há as instituições que ainda cumprem seus papéis no que está assegurado no direito dos povos indígenas. Mas a partir da Presidência e de alguns ministros, eles inclusive entraram com um processo de reestruturação na Funai, no Ministério do Meio Ambiente e outras instituições. Eu estou falando do primeiro decreto, de 1º de janeiro de 2019, o que eles falaram sobre as comunidades indígenas. Tem uma clara intenção, sim. Para eles seria um ganho muito grande se os povos desaparecessem com esta pandemia. Para se apropriar do território estão tentando com estratégias e decretos, anular processos de demarcação de terras indígenas. Então é isso. Eu estou falando de leitura que faço, mas se você pegar o histórico do Jair Bolsonaro e dos ministros, vai ver que não acabaram ainda [com os territórios tradicionais] porque temos leis e instituições que estão segurando. Eu não estou inventando isso. A gente está vivendo isso em pleno século 21 a postura deste governo atual, do Jair Bolsonaro. Tudo de ruim que acontecer eles podem comemorar. Esta pandemia se acabasse com as terras eles iam fazer uma grande festa, soltar fogos.


Como os povos indígenas vão sair deste processo? Temos ainda uma pandemia e mais dois anos de Jair Bolsonaro - isso se não for reeleito em 2022.  Qual sua avaliação para o futuro?

Piyãko: Eu acho que o Jair Bolsonaro não vai conseguir acabar com os povos indígenas. Nós somos muito fortes e estamos muito bem preparados para resistir e atravessar, porque eu estou considerando isso uma tempestade que vai passar e o sol vai brilhar mais na frente e vamos viver tempos melhores. Nós vamos sair muito mais fortalecidos porque está juntando duas coisas: a questão ambiental e os povos indígenas estão numa mesma posição em relação ao seu valor de importância. Mas a sociedade brasileira está percebendo, como o mundo está percebendo, o erro que este governo está cometendo. Então é uma reação natural daqueles povos e da sociedade brasileira e do mundo reagir e não permitir que o interesse dele avance. Pois o que está ali não é o interesse do povo, é postura de um presidente com um mandato, e este mandato vai passar. Vamos sair mais fortes, pois nossa aliança passa a ser maior, não vamos permitir que o que conquistamos ao longo do tempo seja derrotado em quatro anos. Só teria um caminho para ele vencer os povos, que seria usar a força do Estado brasileiro e pôr as Forças Armadas para matar os índios, pois de outro jeito não tem. Nós temos os meios. Ninguém está fazendo guerra, se armando para enfrentar o governo, mas temos o meio para colocar para a sociedade brasileira e o mundo o que estamos passando neste governo. 


Nós estamos assistindo a um processo acelerado de destruição da Amazônia no governo Jair Bolsonaro. Qual o papel dos povos indígenas na manutenção desta floresta em pé? 

Piyãko: Já foi provado que os povos indígenas, as florestas e o meio ambiente como um todo nunca tiveram problema. Vivem numa harmonia muito grande. Se tirar a floresta, destruir a floresta, queimar a floresta os povos indígenas vão juntos. Se quiser usar a Amazônia para ajudar na economia do país tem que atualizar a visão para o século 21, sair do século passado. Nós temos muitos recursos. Basta apenas investir em tecnologia, ciência, para que ela produza sem ser destruída. Ela é sustentável. Nós precisamos pensar que a Amazônia é muito produtiva do ponto de vista do ponto de vista econômico também, mas não pode ser pensada para a soja, para o gado, para o garimpo, para o formato que está aí, pois este formato já está ultrapassado. Não existe mais. Nós defendemos um modelo de desenvolvimento econômico que respeite os povos, as tradições da Amazônia   


Os Ashaninka do Amônea fizeram uma Live para arrecadar recursos para auxiliar outras comunidades indígenas e ribeirinhas neste momento de dificuldade ocasionado pela pandemia. Como está a campanha? 

Piyãko: Nossa Campanha Ashaninka Pelos Povos da Floresta tem uma proposta clara, entendemos que a pandemia não vai passar tão cedo, não tem tempo determinado. Baseado nesta realidade e conhecendo a realidade regional entendemos que o apoio não deve ser um sacolão [cesta-básica]. Temos que pensar em um kit que dê mais força e tempo para as pessoas se organizarem e enfrentar esta situação no médio prazo. Isso começa num trabalho interno de passar a se sentir mais responsável por ela própria, e não passar este cuidado, esta responsabilidade, para o governo cuidar deles. A gente está tentando chegar até estas pessoas da floresta que muitas vezes não têm o canal. Não podem colocar a sua voz para atender suas demandas e suas necessidades. A partir desta semana estamos recebendo os primeiros 400 kits e vamos fazer as primeiras entregas. Já atingimos quase 400 mil reais de doações e para nós é uma satisfação muito grande. É muito importante poder circular com este apoio. Tem áreas que a gente vem trabalhando, para que estas regiões contem com nosso apoio. Eles sempre contaram. A gente tem um espaço e a gente estava sentindo que estamos protegidos na nossa casa, nossa terra. A gente quer que toda população da floresta possa viver isso. A gente entende que o isolamento na cidade é cruel, ficar entre quatro paredes, esperando o tempo passar, saindo com medo nas ruas. Numa floresta, basta fechar para que não entrem e saiam, mas a vida dentro é normal, no rio, nas florestas, no roçado, na família. Não tem um isolamento como o da cidade.  


Acesse ao site da campanha Ashaninka 


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