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quinta-feira, 16 de março de 2023

o conflito do carbono

Interesse por mercado de carbono ressuscita conflitos agrários na Amazônia


Em Xapuri (AC) extrativistas são intimados a deixar área cobiçada por fazendeiro para investir em crédito de carbono. Região protagonizou "empates" liderados por Chico Mendes na década de 1980 

 


As áreas de floresta que foram palco de conflitos por terra na Amazônia, entre as décadas de 1970 e 1980, resultando na morte de lideranças como Wilson Pinheiro e Chico Mendes, voltam a protagonizar disputas entre os grandes donos de fazendas com extrativistas e pequenos agricultores. Um dos símbolos da resistência dos seringueiros acreanos pelo direito de permanecer em suas “colocações” durante a política de ocupação da região pela ditadura militar, a Fazenda Bordon, agora Fazenda Soberana, de 14 mil hectares, é outra vez o centro dessa disputa. 

Se há 40 anos os fazendeiros vindos do Sul e Sudeste do país – alcunhados pelos extrativistas de “paulistas” – chegavam à Amazônia com a missão de derrubar a floresta para transformá-la em pasto para o gado, em 2023 os conflitos com os moradores tradicionais acontecem com uma nova e inusitada justificativa: a preservação ambiental.

De olho em ampliar e diversificar seus lucros, fazendeiros do Acre investem em projetos de mercado de carbono. Para isso, destinam as áreas remanescentes de florestas dentro das propriedades, a reserva legal, para o chamado sequestro de carbono. Outra atividade explorada por eles com intensidade nos últimos anos é a extração de madeira por meio de manejo sustentável. Na Amazônia Legal, as propriedades rurais devem preservar 80% da cobertura florestal em suas áreas.

“Com essa expectativa de mercado de carbono está se gerando muitos conflitos agrários. Só esse ano já participamos de dois movimentos que tiram o sono dos trabalhadores. Um no município de Feijó e agora em Xapuri. Isso aponta para que seja motivo para muitos conflitos agrários daqui pra frente”, diz Antônio Sergione Freitas, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Acre (Fetacre). 

Ao se destinar a reserva legal da Fazenda Soberana para a venda de carbono, o fazendeiro Júlio César Moraes Nantes decidiu entrar com mandados de reintegração de posse contra as famílias de seringueiros que vivem na região ao menos desde a década de 1970. Elas afirmam viver na área que formava o antigo Seringal Nazaré muito antes da compra da propriedade pelo Grupo Bordon.

Em nota enviada à reportagem de ((o))eco, o advogado Matheus Silva Novais, que representa Júlio César Moraes Nantes, dono da Fazenda Soberana, afirma que essas famílias estão na área de reserva legal da propriedade, e que todos os antigos posseiros que ocupavam a outrora Fazenda Bordon foram devidamente indenizados. (Veja íntegra da defesa abaixo)

O seringal Nazaré ficou de fora dos limites da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. Criada após o assassinato do líder seringueiro para por fim aos conflitos por terra na região sudeste do Acre, e assegurar a proteção de quase um milhão de hectares de Floresta Amazônica, a unidade de conservação é vizinha às áreas reivindicadas pelo dono da Fazenda Soberana. Pelo menos 30 famílias de extrativistas e seus descendentes correm o risco de serem expulsas.

Entre eles está o seringueiro Antônio Cândido da Silva, de 70 anos. Em 1986, relembra ele, participou de um dos “empates”, junto com Chico Mendes, na Fazenda Bordon. Os “empates” eram a forma encontrada por seringueiros e seringueiras para resistir à transformação da floresta em pasto, e, consequentemente, serem expulsos. De braços entrelaçados, colocavam-se à frente de policiais e capatazes das fazendas para “empatar” o avanço do desmatamento.  

Após ter resistido a tantas pressões, Antônio Cândido, um extrativista de fala mansa e estatura baixa, agora se vê às voltas de ser obrigado a abandonar a colocação onde vive no Seringal Nazaré desde os anos 1970 por ordem da Justiça. 

O filho, Sebastião Silva, o Tião, já foi notificado no último dia 3 de março. Ele ganhou do pai uma área de 50 hectares para morar com a mulher e os filhos. A família ainda trabalha com a extração do látex e a coleta de castanha para sobreviver, além do roçado e a criação de animais.

“Naquele empate de 86 tava o Chico, tava a Marina Silva, tava o professor Mauro [Almeida] da Universidade de São Paulo, tava a Globo. A gente lutou por um mês e conseguimos o resultado que a gente queria. Eu estava lutando pela minha colocação, e na verdade não era só eu, era toda essa familiarada que morava lá naquela área”, diz Antônio Cândido.

“Tudo o que existe dentro daquela área lá foi através dessa luta que a gente fez em defesa do seringueiro, contra o desmatamento feito pela Bordon”, completa. “O juiz [Luis Gustavo Alcalde Pinto, da Vara Cível de Xapuri] deu prazo de cinco dias para o meu filho sair da área que eu dei para ele. Como pode isso acontecer dentro de uma área que é minha?”.

A falta de regularização fundiária do Seringal Nazaré é o que faz a Fazenda Soberana reivindicar a posse como reserva legal. Ao ficar de fora da Resex Chico Mendes, o antigo seringal não foi transformado num projeto de assentamento extrativista (PAE) pelo Incra, sendo essa a destinação da maioria dos seringais no entorno, incluindo o Cachoeira – outro palco dos “empates”.

Na região, o Seringal Nazaré ficou conhecido como “área branca” por estar fora dos limites da Resex Chico Mendes, e não ter passado por regularização fundiária. Com isso, as famílias de extrativistas e seus descendentes são chamados de “posseiros”, deixando-os em situação de insegurança jurídica.       

É o caso de Eldo Lucas de Moraes, de 35 anos, que mesmo já tendo sido funcionário de carteira assinada da Fazenda Soberana, também já foi intimado a deixar a área onde mora. Ele afirma não estar mais em sua casa com medo de ser preso pela polícia. “Eu não tenho para onde ir. Eu nasci e me criei aqui. Meus pais estão velhinhos e precisam de mim por perto com ajuda, levar eles pra cidade”, diz.

E foi do pai, um dos antigos seringueiros de Xapuri, que ele recebeu a área para viver com a família. A prática é bastante comum na região. Com as “colocações” (fatias dos seringais) divididas por estradas de seringas (com tamanho médio de 100 hectares), os extrativistas mais velhos acabam por fracionar áreas com filhos e filhas. Tudo feito de palavra, sem documentos, sendo uma herança de família.

Acusados pelo fazendeiro de praticarem danos ambientais que prejudicam seu projeto de mercado de carbono, os seringueiros de Xapuri e descendentes voltam a conviver com o medo de serem expulsos de terras onde construíram suas histórias.  


“Novos empates” 

(leia reportagem completa em ((o)) eco)

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