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sexta-feira, 28 de junho de 2019

O isolacionismo de Salles

Em aldeia no Acre, Ricardo Salles defende fim de ‘isolacionismo’ e ‘integração’ dos povos indígenas 

(Foto: Agência de Notícias do Acre)

Após passar parte da manhã da última quinta, 27, sofrendo para subir os barrancos do rio Acre – debaixo de um Sol escaldante - na capital Rio Branco para ver e sentir o odor de esgoto despejado sem tratamento no manancial - e culpar Marina Silva por tal situação - o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reuniu-se com lideranças indígenas do Vale Juruá durante a tarde.

A região, localizada no extremo oeste do Acre, é uma das mais bem preservadas da Amazônia e concentra uma das maiores biodiversidades do planeta. E é no Vale do Juruá que lideranças políticas do estado defendem a construção de uma rodovia que, literalmente, rasgaria a floresta para uma “integração econômica” com o departamento peruano de Ucayali.

E os principais impactados por tal empreendimento seriam as comunidades indígenas e ribeirinhas do Juruá, hoje já amedrontadas pela ação de facções criminosas que controlam os rios para o tráfico da droga produzida no Peru.

Para passar uma imagem de preocupação com os impactos que a construção da rodovia causará, Ricardo Salles cumpriu sua agenda na aldeia Ipiranga, do povo  Puyanawa. Sua terra indígena abrange o município de Mãncio Lima, o mais ocidental do Brasil.

A Terra Indígena Poyanawa seria uma das mais afetadas, já que o traçado da rodovia passaria a pouco mais de cinco quilômetros de distância. Desmatamento para grilagens e a entrada do gado são os resultados mais imediatos da construção de estradas na Amazônia. 


Os Puyanawa até se mostraram simpáticos ao ministro que integra um governo defensor da não demarcação de novas terras indígenas e a revisão daquelas já existentes. De um governo que transferiu a demarcação de terras da Funai para a mão dos ruralistas no Ministério da Agricultura - mas que por uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, voltou para o órgão indigenista.

Apesar do clima de paz e amor transmitido pela nota oficial, a liderança Fernando Katukina, do povo Katukina, deu um recado à visão preconceituosa que domina a extrema direita no controle político do país.

“Nunca fomos preguiçosos e sempre quisemos trabalhar com a floresta organizada, mas nunca tivemos o apoio do [Ministério do] Meio Ambiente. Sempre derramamos o nosso suor para receber da terra e só recebemos o nome de índios preguiçosos e violentos. Nós não somos [preguiçosos]”, disse ele.

“Nós não criamos sistemas florestais ou formamos os nossos jovens a ter o controle da terra. Apenas usá-la e respeitá-la, porque queremos construir nosso mundo melhor, para termos nossa qualidade de vida. Entendam que medicamento não é ter saúde. Queremos apenas qualidade de vida.”

A declaração ressalta a relação diferenciada dos povos tradicionais com a sua terra, e a importância delas para a sobrevivência das atuais e futuras gerações.

Como resposta, o ministro do Meio Ambiente voltou a falar sobre um dos pontos mais defendidos pelo governo Jair Bolsonaro: integrar os indígenas, acabando com o que chamam de “isolacionismo”. Para eles, os índios brasileiros vivem em situação de miséria dentro de suas aldeias, sendo massa de manobra de ativistas e organizações internacionais.

O fim deste isolacionismo na visão bolsonarista passa por acabar com as terras indígenas e permitir a exploração de minerais dentro daqueles já existentes, cujos danos seriam irreparáveis. Para os governistas, as grandes porções de territórios indígenas poderiam estar sendo usados para a criação de boi ou o plantio de soja.

“O isolacionismo não é desejável para o nosso governo. Ele não é o caminho para isso. Pelo contrário, é de harmonia. Vocês e nós somos todos brasileiros. E o tempo é de integração [...] não pode mais ficar no isolacionismo, porque este é um modelo fracassado, que leva ao atraso social e econômico às comunidades, como já comprovado em outras partes do mundo”, afirmou Salles.

“A história tem demonstrado que o Brasil é o país da união. E isso decorre do respeito às diferenças sociais, de cor e de raça. Esse é o momento do Brasil se ajudar. Não é fácil, nem muito corriqueiro, vermos um ministro numa aldeia, reconhecendo os valores, a cultura e a história dessas pessoas. Mas quando o presidente foi eleito, um dos grandes compromissos foi ajudar a todos.”

Não se sabe de qual ajuda e respeito às diferenças o ministro fala. Para a grande maioria das lideranças indígenas do país, este representa um dos momentos de maior retrocesso de suas conquistas. Fatiar uma Funai já sucateada entre um ministério dominado por ruralistas e outro por evangélicos não é a melhor das ajudas e nem respeito à diversidade.

Defender a construção de rodovias numa das regiões mais bem preservadas da Amazônia também não parece ser o melhor dos auxílios à população local. O passado e o presente mostram que estradas são os principais vetores para o aumento do desmatamento na região e da concentração de terras nas mãos dos grandes. Tal quadro só se agrava com um governo não muito preocupado com as questões socioambientais do Brasil.

O ministro do Meio Ambiente e seu notório despreparo precisa entender que, em alguns casos, o isolacionismo não é sinônimo de atraso, mas de sobrevivência. Que o modo de vida de quem está dentro da floresta é bem diferente de quem que, como ele, é oriundo dos grandes centros urbanos.

As populações indígenas da Amazônia são detentoras de uma grande riqueza construída não com o modo devastador adotado pela dita “civilização branca”, mas com o verdadeiro respeito às diferenças e o uso racional dos recursos naturais.


(Como moro em Rio Branco e estou bastante longe do Vale do Juruá, não pude acompanhar a agenda de Ricardo Salles. As aspas aqui citadas foram tiradas da reportagem oficial produzida pela assessoria de imprensa do governo do Acre.)

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