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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Crise carcerária na Amazônia

Massacres em presídios estão associados a violência institucionalizada

FABIO PONTES, para Amazônia Real 

Os massacres de detentos por uma organização criminosa em presídios de Manaus (AM) desencadearam revanches da facção rival em Boa Vista (RR) e em Nísia Floresta (RN) em menos de 15 dias neste início de 2017. As chacinas, com um total de 123 assassinatos com requinte de barbárie, estão associadas a uma violência institucionalizada no sistema carcerário brasileiro provocada pela ausência de legitimidade do Estado no interior das cadeias.

É o que diz a cientista social e pesquisadora da violência urbana e do sistema penitenciário no país, Marisol de Paula Reis Brandt, da Universidade Federal do Acre (Ufac), em entrevista à agência Amazônia Real.

Para Marisol Brandt, a não presença do Estado por detrás das muralhas das penitenciárias é a grande responsável pela atual crise no sistema prisional do país.

“O Estado deixou de cumprir suas prerrogativas legais, enfraquecendo o reconhecimento de sua legitimidade para impor ordem frente à população encarcerada”, diz a pesquisadora, que mestre e doutora pela Universidade de Brasília (UnB) e vice coordenadora do curso de pós-graduação em Gestão da Segurança Pública e Direitos Humanos da Ufac.

Esse vácuo, segundo Marisol Brandt, levou os presos e a administração das penitenciárias a adotarem um “código de ética”. Os detentos já praticam diversos crimes dentro das cadeias, que vão de assassinatos a torturas e ao consumo de drogas.

As facções criminosas, ramificações de organizações como o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, acabaram por assumir o controle nas penitenciárias das regiões Norte e Nordeste.

“É importante observar que na rotina prisional, existe um código de ética muito específico de convivência carcerária, entre os presos, e entre esses e a administração, um modus operandi informal que pode facilmente levar a comportamento abusivo e/ou criminoso. Isso ocorre, sobretudo, porque o Estado deixou de cumprir suas prerrogativas legais”, afirma Marisol Brandt.


Segundo ela, a violência nas cadeias é uma rotina e está associada à perda da visão de humanidade dos presos, provocando um “espiral de total embrutecimento”. “Essa forma de violência torna um circuito difícil de ser interrompido.”

Na avaliação de Marisol Brandt, a banalização dos direitos humanos provoca as cenas de barbárie como as de corpos carbonizados e sem cabeça de 38 dos 56 detentos mortos no Complexo Penitenciário Antônio Jobim (Compaj), em Manaus.  A Família do Norte (FDN), ligada ao CV, foi acusada pelo governo do Amazonas e assumiu os assassinatos no Compaj no dia 1º.

“Defender os direitos humanos é defender a própria lei. Para fazer isso, não é necessário vitimizar o preso, isentando-o de sua responsabilidade criminal, mas oferecer-lhe condições dignas para o cumprimento da sanção penal”, afirma.

De acordo com a pesquisadora, o desrespeito a conceitos básicos de dignidade humana ocorrem nas penitenciárias do Brasil, o que inclui a não garantia da integridade física de quem é sentenciado pela Justiça à perda da liberdade, com a vida destas pessoas em constante risco.

“Não poucas vezes, os documentos oficiais que versam sobre a situação prisional no país denunciam os maus-tratos, a tortura, a superlotação, a ausência de assistência médica, a morosidade no acompanhamento dos processos judiciais, entre tantos outros problemas aí recorrentes”, avalia a pesquisadora.

Marisol disse que o próprio surgimento do PCC nas cadeias de São Paulo, no início da década de 1990, foi uma forma na qual os presos encontraram para se opor à violência praticada pelos agentes do Estado.

O massacre de 111 detentos por policiais militares em 1992 na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, foi um dos motivos que levaram oito presos do Centro de Reabilitação Penitenciária de Taubaté (no interior paulista) a organizar o PCC.

 “[O PCC foi] criado sob o lema de ‘defesa dos direitos dos encarcerados do país’ e, em 1996, já dominava muitas prisões onde o número de filiados era bastante expressivo. Ele ficou quase três anos na clandestinidade, trabalhando em silêncio atrás das grades”, afirmou.

Se no começo o PCC atuava como forma de garantir o direito dos presos, depois passou a usar de métodos violentos e criminosos para se estruturar, usando do tráfico de drogas e da cobrança da proteção a presos como principal forma de financiamento.

“As facções criminosas assumiram o protagonismo de organização e de mando no interior dos presídios, de tal modo que aqueles que lá são recolhidos devem, obrigatoriamente, filiar-se a uma ou outra facção como estratégia mesmo de sobrevivência”, diz Marisol Brandt.


A pesquisadora da Ufac diz que essa tomada do controle pelas facções ocorre muito mais pela perda da credibilidade do Estado ante os presos – com o uso ilegítimo da força pelos agentes e a não capacidade de desmantelar o crime organizado – do que pela sua ausência em si.

“O problema não está na ausência do Estado, visto que ele se encontra de alguma forma presente nas prisões. O problema é que o estado, mesmo tendo pleno conhecimento da existência das facções, não conseguiu estrategicamente desarticular ou desestabilizar esses grupos, vendo ruir a sua credibilidade e legitimidade para atuar como autoridade central, acima das partes, e mediar os conflitos aí existentes”, afirma Marisol Brandt, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Ufac.

O Conselho Nacional de Justiça anunciou que fará um censo no sistema prisional para saber o número da população carcerária do Brasil. O último levantamento foi realizado em 2014 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, e revelou que o país tinha 622.202 presos e cadeias superlotadas.

 “O inchaço nas prisões é uma realidade dramática e está associado, em parte, a uma política de encarceramento adotada no Brasil, nos últimos anos, tendo como finalidade a ação repressiva da polícia e o aumento das condenações nos trâmites judiciários”, avalia a pesquisadora Marisol Brandt. De acordo com ela, essa prática brasileira vai de frente às adotadas por EUA, China e Rússia, que tentam diminuir suas populações carcerárias.

As pessoas detidas no Brasil têm um perfil claro. São, em sua grande maioria, jovens, negros e com poucos anos na escola. Sobre isso, afirma a socióloga especialista no tema: “O aumento de condutas criminalizadas e a exigência de maior controle sobre o crime/delito reforçam estereótipos que orientam o controle social e a seletividade de ação por parte do poder repressor”.

Para ela, este encarceramento seletivo é uma “solução penal” encontrada para um problema que, muito mais que econômico, é de ordem social. Na avaliação de Marisol Brandt, a tentativa de associar criminalidade com pobreza é uma visão, além de preconceituosa, perigosa.

 Leia a reportagem completa AQUI 

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