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quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Autogoverno do crime

Para Direitos Humanos, privatização de presídios no AM contribuiu para que facções "gerenciassem" sistema 


FABIO PONTES, para AMAZÔNIA REAL 

As mortes de 56 detentos dentro do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, poderiam ter sido evitadas caso o estado do Amazonas tivesse assumido seu dever constitucional de custódia dos cidadãos condenados pela Justiça à perda da liberdade, e não ter deixado nas mãos de facções criminosas a responsabilidade pelo “gerenciamento” do sistema prisional.

Essa é a conclusão à que se chega após a leitura de relatório elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), ligado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a partir de visitas aos principais presídios da capital amazonense entre 2015 e 2016.

A privatização da administração das cadeias do Amazonas não resultou em melhorias das condições estruturais e assistenciais por trás dos muros e grades. A ausência do estado com seu poder de polícia transferido para a iniciativa privada contribuiu para que os grupos criminosos assumissem o controle, colocando em prática um sistema de “autogoverno” capaz de deixar nas mãos dos líderes das facções o poder de vida ou morte dos presos.  

“Assim, pode-se afirmar que os presos das penitenciárias masculinas visitadas pelo MNPCT basicamente se autogovernam, criando regras extralegais ou ilegais que afetam drasticamente a segurança jurídica e a vida das pessoas privadas de liberdade. Esse quadro se torna ainda mais crítico para as pessoas nos ‘seguros’”, define o relatório, que também é de conhecimento do Ministério da Justiça.

Antes vinculada à Presidência da República, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos passou a ser subordinada ao ministério de Alexandre de Moraes desde que Michel Temer (PMDB) assumiu o governo. Nesta terça (3), ao lado de Moraes, o governador José Melo anunciou que a Polícia Militar retomará a segurança nos presídios amazonenses.

Inaugurado em 1999 como um presídio de segurança máxima, não é a primeira vez que ocorre matança no interior do Compaj. O estudo diz que numa rebelião de 2002, 13 presos foram mortos.  Já durante todo ano de 2015, 12 pessoas foram assassinadas nos quatro presídios de Manaus visitados pelos peritos do MNPCT.

A visita surpresa ocorreu em 10 de dezembro de 2015. Este era um dos momentos mais tensos do sistema carcerário amazonense. Semanas antes a Operação La Muralla tinha sido realizada pela Polícia Federal, com o desmonte do lucrativo esquema de tráfico de drogas comandado pela FDN, e que tinha ramificações na Colômbia e Peru.

Os líderes da facção foram transferidos para presídios federais em Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte. À época já se temia uma grande rebelião como represália à medida – que poderia resultar na execução de integrantes do PCC.

Segundo o relatório, a vida dos presidiários do Compaj que não pertenciam à Família do Norte (FDN) estava em constante risco pela falta de uma estrutura básica necessária que assegurasse sua proteção.

Os membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) são colocados em celas, alas e corredores definidos como “seguro”. Os locais, de acordo com o relatório, eram improvisados e não garantiam a mínima segurança.

Um destes locais funcionava entre as duas grades que dão acesso ao centro de triagem. Já nas “celas cativeiro”, a FDN fazia valer seu rigoroso regime disciplinar com torturas aos presos que desobedeciam algum das regras impostas. Entre as punições estava até as mortes de detentos.

“Dentro desse contexto, pelo fato de o Estado ser omisso em suas funções, os presos não tinham segurança jurídica e, mais grave ainda, seu direito à vida estava fortemente fragilizado”, diz trecho do relatório publicado em janeiro de 2016.      

“Em suma, ao mesmo tempo em que apresentava baixa ingerência no cotidiano das unidades, abrindo margem para a ação de facções criminosas, o Estado periodicamente se inseria nos cárceres através da utilização abusiva da força pelos agentes de segurança e de forças especiais de segurança, gerando práticas de tortura e maus tratos”, diz outro trecho.

Estas intervenções do aparelho policial só ocorriam em momentos de crise, como princípios de rebelião ou motins, e ainda em revistas periódicas nas celas para apreender celulares e drogas. Uma destas intervenções chegou a contar, inclusive, com a participação do Exército.

O relatório da Secretaria Nacional de Direitos Humanos afirma que 40 militares mais o comandante do Comando Militar da Amazônia (CMA) participaram de uma destas “batidas”, sem especificar em qual unidade ela ocorreu.

“Para além de forças de segurança pública estaduais, o MNPCT teve acesso a registros de unidades que apontaram para a presença de forças de segurança nacional em algumas destas operações, como o Exército. Além de armamentos normalmente usados por agentes de segurança pública, tais registros indicavam que foram utilizados um helicóptero e um drone. Isto é, um grande arsenal, de natureza altamente ostensiva, abrindo margem para que agentes públicos realizassem o uso excessivo da força.”

Nestas “batidas”, os presos são obrigados a ficar somente de cueca e sentados nas quadras dos pavilhões expostos ao típico intenso sol de Manaus, com alguns detentos sofrendo queimaduras na pele.

“Caso se mexam, as pessoas privadas de liberdade são agredidas pelos policiais. É comum a utilização de cachorros em tais operações e, também, a realização da técnica denominada “corredor polonês” quando da movimentação dos presos pela tropa”, afirma o relatório.

Além das violações de direitos praticadas pelas forças policiais, os presos ainda relataram situações de tortura praticadas pelos agentes penitenciários contratados pela empresa responsável pela unidade, a Unimazzare.

“Neste contexto, há uma alta rotatividade de funcionários pelas precárias condições de trabalho, o que favorece a ocorrência de tortura e maus-tratos. Isso porque, ao ser praticada uma violação, o agente responsável é demitido e outro logo assume o seu lugar. Essa alta rotatividade dos funcionários nas unidades dificulta a identificação dos agentes agressores, pois eles podem ter sido demitidos ou transferidos para trabalhar em outra unidade” aponta a análise.

Para o relatório da Secretaria de Direitos Humanos a baixa renumeração dos agentes (em média R$ 1,7 mil incluindo os benefícios) e a falta de uma perspectiva de carreira de estado facilita a corrupção destes servidores terceirizados, o que facilita na entrada de armas, drogas e celulares no interior dos presídios.

Reportagem publicada pela Agência Amazônia Real 


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